quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Sombras reflexas em água suspensa

O Viagente fugia da aldeia à velocidade que o corpo espancado permitia. A estrada rasgava-se inconsolavelmente para diante. O horizonte, escondido pelo cume da montanha, era um já ali intocável. O caminho subia e o caminhante já tinha poucas forças: teria que continuar por um meio de transporte que lhe aliviasse o cansaço físico. Adiante, havia uma pequena paragem de autocarros que parecia abandonada. Era apenas uma tabuleta ferrugenta, um eucalipto seco, um poste de iluminação e um banco de madeira carcomida. Não tinha horário afixado. A noite já ia longa, e hoje já não voltava a passar a velha viatura de chiadeira. Por isso, o Viagente resolve repousar lá. Descansaria aí, e apanharia a carreira que, certamente, haveria de passar pela manhã para a cidade, onde vivia o José – aquele amigo que tanta falta lhe faz agora. Sentou-se no banco de madeira, à luz do poste e, enquanto tirava o diário, olhava para trás. Tinha de ficar ali à espera. Esperou o suficiente para se encontrar no eu que tem em si. Tinha de falar consigo. Abriu o seu precioso diário e começou a escrever.


Querida amiga:
Dor… Como me dói, amiga, tudo o que me aconteceu. Novamente escrevo-te, mas não com pertinência. Foi uma criança. Devia estar a fazer tudo menos a escrever. Uma menina… Ela estava no chão, tão indefesa e eu não a podia ajudar, mas quis. Não sei por que é que continuo com estes disparates. Quis porque devia ser assim, mas não é. Escrever não me serve de nada. Não evita que seja mal tratado. Sinto nojo de mim. Hesito. Maldita a hora em que tropecei num ser tão vil. Sinto repugnância de ser homem. Partilho com aquela gentalha o simples facto de vestir esta mesma palavra de conceito. Amiga, conheci uma menina que escondia indignidade. Sou um objecto de abordagem fácil. Merda, simplesmente. Para o mundo e para tudo. Fui estropiado. Ultrajado. Humilhado. Gozado. Roubado. Que morram todos… os homens, as mulheres, as aldeias, os cães. Nojo, sinto-me enjoado. Foi contigo, Cândida, que cantei aquela canção? Amiga, sabes qual é? Aquela que fala da bondade… Dor. Deixei na aldeia a minha humanidade. E agora estou aqui, sozinho contigo a meu lado, sem alguma vez te ter conhecido, ó sonho irreal. Cândida, pureza angélica, quem és tu? Onde estou eu no mundo? Na paragem de autocarro, de noite, só… Porquê, Cândida, por que é que te tornaram assim? Por que é que o Homem tem de fazer estas coisas? Por que é que tem de fazer sofrer os outros? A noite está fria, eu tenho frio, tenho frio porque me roubaram o calor da humanidade. Deixei-a contigo, Cândida… Onde a puseste? E tu, companheira amiga, sabes onde está? Onde está a humanidade da humanidade? Não sei, nem a quero. Simplesmente, eu não quero. Há tanta coisa que aprendi. Tanta moral que me ensinaram em casa, na Escola, nas conversas… Onde é que ela está? Quando é que ela deixa de ser palavras que se amontoam no lixo da acção humana? Não quero um dia poder imaginar que virei a ser como eles. Seria mau demais.
Querida amiga, foste tu que me disseste que o Homem era belo… Imaginaste-me uma humanidade inscrita desde os valores maiores. Eu acreditei, acreditei em tudo o que me tinhas dito. Mas não, enganaste-me… enganei-me! Nada do que me disseste existe. Apenas vejo um mundo de homens largados na sua estupidificação predatória. Não quero, eu não sou assim. Não quero pensar na possibilidade de me tornar num daqueles. Aqueles omens roubaram-me o mundo onde eles deviam habitar. Que homens são eles? Homens… porquê? Mas afinal tu estavas errada, amiga, eles são omens. Iguais aos homens. Bichos egocêntricos exploradores. Eu também sou omem? Igual a todos eles? Não, recuso-me a ser! Não quero ser jamais um (h)omem como estes! Sou carne da mesma carne, pensamento do mesmo pensamento, imagem da mesma imagem, mas não sou assim. Enoja-me concebê-lo; repudia-me acreditá-lo. Não posso crer que tenho nas minhas entranhas os ardis trapaceiros que me fazem (h)omem. Prefiro não sê-lo. Mais-quero ser como os animais que se comem abertamente numa humana selvajaria. Luto, porque a vida me dói. Não posso estar num mundo em que se regozijam com o meu infortúnio – não quero estar. Mas estou e sei que simplesmente é assim, porque o é… Mas sou e estou, porque sei que não é assim.

Não quero ser assim. Eu acredito. Acredito que a amizade é o que me faz viver e o que me indica o caminho. Já me sinto melhor. Agora estou contigo, José. Ainda me lembro, quando nós jogávamos ao berlinde na escola. Lembras-te? Lembro tão bem, nós no recreio a cavarmos a terra com as mãos e a funcionária (como é que se chamava?) sempre a implicar com as nossas mãos sujas e impróprias para as tarefas escolares. Tinhas aquele teu berlinde da sorte que nunca te consegui “rapar”, mas quase… sabes bem que tenho razão, e que fizeste batota. José, José… sempre foste um traquina. Limpavas-me todos os meus berlindes e eu tinha de pedir ao meu pai para comprar mais. Não, espera, não era nada assim: eu ganhava-os na promoção da lixívia, não era? Quando nós jogávamos, no recreio, a afinarmos pontaria à vida, (E que pontaria…) acertaste tão bem no meu berlinde como na minha amizade. Foi com o teu berlinde da sorte, não foi? Não, espera, agora me lembro, foi com o meu berlinde da sorte.
Depois deixámos os berlindes naquela caixa que guardavas por baixo da cama para podermos segurar as outras coisas que a vida nos vai pondo nas mãos. Crescemos, aprendendo palavras que condiziam com as coisas que ambos víamos: a realidade construía-se-nos próxima e semelhante – isso é tão bom. Foi nessa altura, acho eu, que soubemos o que queria dizer amizade e nunca mais esquecemos. Foi em tua casa, não foi? que cometemos a loucura de desafiar o mundo e toda a sua autoridade. Sim, lembro-me, José, foi no teu terraço. Roubámos um cigarro à tua mãe e fomos tossir para a eira. Loucura, amigo… loucura de ter um companheiro para fazer o que não se pode. Não fumávamos, não nos interessava fumar. Nem sequer sabíamos fumar. Soprávamos no cigarro, sem entender que era ao puxar que púnhamos a vida dentro nós. Ainda não a tínhamos. E agora? Já puxas nos cigarros? Há tanto tempo… também não é preciso: por vezes um sopro de nós sobre o momento, suspende-o eternamente. E nós fizemo-lo. Gritámos ao mundo, em conjunto, que podíamos ser adultos ainda que em corpo de criança, juntos, lado a lado para a tarefa ser mais leve e divertida. Companheiro, há quanto tempo… Ficaste para sempre gravado no meu primeiro cigarro. Estás na minha memória viva, que recordo todas as vezes em que me quero encontrar. Tropeço em ti, quando olho para trás e me quero ver. Estás sempre lá, com a mão no bolso para não perderes o berlinde da nossa amizade.

Querida companheira, a ti retorno mais uma vez, tu que te sentas sempre com o tempo das águas calmas para me ouvires. Já me sinto melhor, amiga; já me sinto melhor agora que estive com o José. A amizade é um cobertor quentinho, daqueles de pêlo macio que nos afagam e envolvem a pele num abraço de conforto. Sei que não valerá a pena voltar-me para o passado com a tristeza de uma folha de Outono quando cai para o chão húmido. Tenho o calor da humanidade em mim todas as vezes em que me sinto no mundo amparado pelos meus amigos (ainda que a sua presença seja quase espectral). Ando, caminho, avanço e confio que no ali está sempre um alguém muito querido, que me espera com a ternura de um abraço, mesclada com a fortaleza de um beijo. Sabes amiga, aqui desde esta carta que nos aproxima na distância a que estamos, eu pude ser feliz apesar de tudo, porque apesar de todas as coisas injustas que o homem faz, haverá sempre alguém com quem poderemos ser verdadeiros; alguém com quem possamos descansar do peso da maldade, como se ela fosse uma ilusão que ficasse lá fora (lá fora, onde a vida acontecesse, não cá dentro, onde eu sou com os meus amigos).
Pressinto que ainda existo para alguém e não apenas em mim, e muito menos para mim. Há quem ainda ponha mais um prato na mesa para me servir um caldo; há quem não vacile em estancar a sua vida, porque sabe que a minha se cruzou com ela. Já me sinto alegre, companheira, sinto-me útil por ir ajudar um amigo. Não há maior prazer na vida do que dar. Eu quero dar. Quero dar desde o mais íntimo de mim. Amiga, de todas as verdades que procuro, tenho, desde já, certeza de uma: a busca de felicidade, se isso importa alguma vez na vida de alguém, principia com a procura de amigos.
Estou calmo, mas não resignado; estou tranquilo, mas não apaziguado: o José precisa de mim, das minhas palavras, simplesmente da minha presença com olhos que ouvem. Estou a ir, José, já vou…

Minha amiga, beijo-te, com a confiança de um até breve…


E finalmente, pela manhã, chegou a camioneta.

André Matias
Ricardo Oliveira

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A granítica aldeia de Cândida

A sombra do humano

A lágrima não tivera tempo para cair no frio das pedras. Já na rua, como Pôncio soberanamente ordenara, o Viagente era levado, como se de um malfeitor se tratasse. Por momentos, vinha à memória os passos daquele que fora recebido por entre um júbilo de palmas e aclamações, para depois ser dado à morte. Por entre espadas e varapaus de injúrias e calúnias, o Viagente é empurrado para o meio da praça da fatídica aldeia. Desorientado da sua sorte, a sua tontura de turbilhão intensifica-se pelo vazio que sente. O fora da taberna era gelado, como uma gota de geada cortante, sólida, aguda, fina em dor. Os habitantes da localidade cercavam o Viagente, apertando-o de encontro às suas muralhas. Muralhas mal guardadas… Eram defendidas por um general que se preocupou em salvar a vida de um soldado, descuidando a integridade da cidade. E a cidade parece estar quase a ser tomada. O exército acerca-se, toda a aldeia vai invadir o seu território para o pilhar.

Toda a aldeia… excepto um ancião que descansa como a capela que fica na praça, por baixo de um carvalho. A praça mostrava-se pequena e asmática. E o assalto começa. O Viagente tomba, vendo por entre a multidão de braços e pernas o pelourinho solitário. Perdera a cabeça, o pelourinho, vítima de uma outra guerra que o Viagente desconhecia. O capitel afundara-se nos tempos, nos tempos em que a justiça ainda se passeava pelas regadeiras outrora viçosas dos campos desta aldeia. O ancião olhava-o e a capela ao lado em silêncio.

Em silêncio… o Viagente quer parar de ouvir toda aquela gente, querer parar de pensar, silêncio… Silêncio para não escutar os ruídos que o Homem faz quando segue um caminho errado. O Viagente via-se mergulhado em águas turvas, em que braços de algas o sufocavam. Não entendia. Tudo era estranho e improvável como o voar de andorinhas em Dezembro. Não percebia… Por entre os apupos, foi entendendo a razão pela qual aqueles campos não viam mais o bafo quente dos bois a pastar, nem o ondear terno e pachorrento das searas. Aquela aldeia era o único ponto de passagem possível por entre as montanhas. Afinal aquela aldeia vivia do saque aos viajantes que por lá seguiam para a cidade. É uma aldeia de gente que se senta por cima do trabalho dos outros e não se incomoda em os magoar. E tu Cândida? Silêncio… Quero o silêncio da capela e olhar daquele ancião! Ao lado do teu pai, sorris para a minha desventura. Mas tu não tens culpa. És um isco que vai ser comido pela própria aldeia. Não eras nascida quando o pelourinho ainda tinha o capitel, por isso não sabes, não sabes que sou vítima de uma injustiça.

A turba cerca o Viagente e arrasta-o para os degraus do pelourinho. Ele bate com a cabeça e deixa cair o seu cajado. O cajado fica no chão como sustentáculo morto. Será assaltado e despojado de todos os seus bens. O Viagente não resiste, deixa levar-se pela força das gentes. Pôncio é quem comanda. É ele quem pilha os bolsos daquele homem perante os olhos gulosos da população. Todos aguardam ansiosos pelos tesouros que aquele viajante devia ter. O ancião também aguarda, mas não estava ansioso. Os seus olhos já tinham visto demais. Um padre passa altivo; dirige-se para a capela sem prestar muita atenção. E Cândida fala com o pai. De que falas? Pôncio arranca do alforge condenado a bússola e o mapa para ele não mais se encontrar. Nada mais havia de valor ali. Irritado, arremessa-os.

O Viagente segura o alforge com todas as suas forças para proteger o diário, mas Pôncio ignora o gesto e vê preso ao seu cinto um saco que prometia o desejado tesouro. Rouba-lhe o saco, abre-o. Era afinal um odre e o seu conteúdo apenas água. Exasperado, despeja-o em frente da população, desprezando o seu valor. Era apenas a água fresca daquele ribeiro, em cujas margens o Viajante escrevera. É impossível que este pobretana não tenha nada de valor com ele!!! Na capela, a missa começa: o padre, indiferente, dera início à celebração eucarística para um punhado de beatas que não encontrariam jamais as portas de um paraíso celeste. Mas o ancião não vai. Permanece junto à árvore, olhando por entre as folhas fragmentos de humidade que as últimas chuvas, tão longínquas, deixaram. A água era vida que caía nas frinchas da pedra empoeirada; ela escoava-se como uma espécie de extinção anunciada. Cândida olhava a água mas não entendia. Não entendia por que estava o Viagente abraçado ao diário. As gentes da aldeia, nervosas pelo saque que não foi, precipitam-se para o homem indefeso em golpes furiosos. Batem-lhe na cabeça, no estômago; ele não larga o diário, mas ninguém quer saber; batem-lhe nos braços, nas pernas; ele não larga o diário, mas ninguém quer saber, porque ninguém se apercebe que o outro existe e também sonha e também deseja e também quer ser feliz e também o Viagente não larga o diário: está preso à vida e ela a ele. Cândida não entendia… não podia entender. Também ela queria o dinheiro que não havia na bolsa do Viagente. Na missa há cânticos, continuando alheia à imolação. A aldeia abate-se sobre ele e cai-lhe a gaita-de-foles.

Não havia nele mais nada; não tinha mais nada para esquadrinhar… Os bolsos estavam vazios, o alforge revirado, o odre seco. Ali estava em despojo. Perante isto, o Viagente foi abandonado como uma mina velha de ouro, cujo filão fora explorado até à exaustão. As pessoas da aldeia, insaciadas, deram-lhe o desprezo. Encolhido, no chão, o Viagente sofre no corpo menos do que no espírito. Tinham-lhe aberto uma ferida enorme, do tamanho da maldade. Por todo o corpo, o sangue quente encharca-lhe a roupa como um desespero. Mas ele não cede. Dói-lhe tudo. O diário está protegido, a gaita-de-foles a seu lado e finalmente a fúria do povo parece amenizar. A boca sabe-lhe a sangue; é um sabor amargo, este o da vida. De repente, surge nos olhos deste homem o espectro do cão, sentinela da aldeia. Este aglomerado de casas nada mais tem do que a geada cortante do desprezo. Estou como tu, triste animal, ferido na essência de existir…

A população já vai. As ruas iam-se despindo das gentes, até se desnudarem quase por completo de vida. Ficariam tão-só as pedras da estrada calcadas pela Cândida que não obedecerá ao chamamento do seu pai. Já vou!!! Só fico aqui para ver uma coisa… O Viagente estava engessado pelo frio que começava a cair no vale. O dia tornara-se colossalmente pequeno; era já a tarde que caminhava para uma noite escura em consternação. O povo deve ter ido assistir ao final da missa que agora está na apoteose da comunhão: Deus é comido pelo homem… menos pelo ancião que continua junto à árvore, como um último habitante de uma terra de onde todos já partiram há muito. O Viagente mal se consegue mover, mas estica o braço para segurar a gaita-de-foles. Não é capaz, o braço não se mexe e dói tanto! Cândida não foi para a capela. Ainda está ali a olhar aquele homem. Parece não compreender. Não compreendes, Cândida, mas a vida dói tanto! Por vezes, tentamos chegar a uma simples gaita-de-foles e não podemos, e isso é tão doloroso! Mas Cândida não sabia, ela era demasiado nova e, na juventude, toda a dor são agruras da ficção: coisas que só se vêem nos filmes. Ela aproxima-se. Olha o seu companheiro nos olhos; parece não ligar ao ancião como se ele fosse apenas uma espécie de algo que estava na paisagem, mas não existia. Ela aproxima-se, baixa-se, debruça-se para o Viagente, estica a mão para a gaita-de-foles com facilidade e afasta-a um pouco dele. Os seus olhares fixados um no outro… e ela sorri. Cândida, afinal, sabia. Sabia que o (h)omem se aproveita dos que trabalham, porque é naturalmente oportunista; sabia que o (h)omem tende para o materialismo, porque ama o fácil e o vão; sabia que o (h)omem é um animal tendencialmente predador, que se socorre da sua inteligência para sugar ardilosamente todas as presas que o rodeiam; sabia que o (h)omem não perde o sono ao saber que explora o seu semelhante; sabia que o (h)omem não deixa viver o sonho de um mundo mais bonito. Aos poucos, o som vertical do “h” já não se ouve, por isso o omem nada significa. Sopra um silêncio triste e acobardado de onde se deveria sentir Humanidade. Cândida ri para os olhos tristes do Viagente, põe o pé na gaita-de-foles e parte-a. Porque o sabia. Sim, Cândida, tu sabias…

O Viagente reage, levanta-se e cresce para Cândida. O estalar fundo da companheira que lhe dera momentos de folia e harmonia estava também ali, estatelada – partida. Foste tu, Cândida, tu… Este tu caiu no pelourinho como uma chicotada que há muito não tinha lugar: era a condenação de toda uma gente que inquinara a possibilidade de ser de uma criança. Eles estão num tu que não existes. És simplesmente má. As palavras indignas do Viagente suavizam-se perante a injustiça de que foi vítima. Tu és má, sempre o foste desde o princípio. Tu és desprezível como todos os outros habitantes desta aldeia miserável. Sim, Cândida, não te sobra nada da criança que devias ser. Tu és a mesquinhez. O Viagente não chora, afronta Cândida. Eles estão sós: esta é a única purgação possível para estes dois seres, que mais uma vez se encontram numa bolha de um tempo não vivido. Afrontou-a, mostrou-a a si própria, como um espelho que queima ao reflectir a verdade. E ficaste só Cândida. Não tens o teu pai, nem o Pôncio para te apoiarem com a sua maldade egoísta. Estás só, aí, nua em ti, com um nada cheio de crueldade, que nem imaginavas ter. O ancião ainda observa atento a cena, agora com uma ligeira esperança num brilho esquecido do olhar. Tu sabias, Cândida, sempre soubeste, o que iam fazer a esse viajante e nada te fez parar. És vil, garota fingida! Aproxima-se ainda mais da miúda a mancar, mas não lhe bate. Vira-lhe as costas e recolhe os restos da gaita-de-foles. Não vales nada.

Cândida não se comove. Permanece como uma pedra, como se todas as palavras do Viagente viessem de um país estrangeiro do qual ela desconhecesse a língua. Por isso fica, enquanto ele se afasta no frio da tarde. À sombra da árvore, o ancião observa as cores escorrentes daquele quadro que agora se desmancha. Cândida não o vê; ele era um mendigo que decora a aldeia, mas que não existe enquanto pessoa; um adorno feio na vida bonita do dia-a-dia. O Viagente virou costas e partiu sem verter uma lágrima. Estava por dentro ressequido por uma dor desértica. Lá no fundo, imóvel como o carvalho que lhe servia de consolo, continuava o velho. De carnes gastas pela malícia humana, e por um desespero de impotência, ele estava ali, cínico e céptico. O Viagente saía da aldeia dolorosamente apoiado no seu cajado, passa pelo ancião e trocam um fugaz olhar impotente. Ele segue viagem para longe, para bem longe dali. Afasta-se. Cândida está parada, estanque no seu ser como uma inevitabilidade. Por momentos, o ancião viu-se projectado naquele homem que agora partia da aldeia amputado dos seus haveres, mas que levava nas suas mãos a gema da essência humana. Mas o ancião quer correr, quer alcançar o Viagente para lhe dizer… para lhe dizer “Tu podes fazer! Tu ainda acreditas, nunca deixes de acreditar! Esta aldeia, a minha aldeia já teve terras férteis e homens que as cultivavam, já teve crianças e país que as ensinavam…” E o Viagente vai… O ancião lançava o olhar para o alcançar, corria parado por baixo do carvalho, numa perseguição impossível. “Tu podes fazer! Podes fazer o que nunca fui capaz. Estes homens… esta criança… ainda há esperança! Fica… fica para lhes mostrar que a humanidade é imperfeita, mas vale a pena. Fica para lhes dizer que… que o egoísmo é o princípio da decadência! Fica, porque esta aldeia pode ser bela se cá morar um homem que sinta o sopro vertical do h como um vento que o faz viver.”

Nessa tarde que impertinentemente se mostrava húmida, o ancião relembrava os efeitos abrasivos que o viver lhe trouxera. Também ele um dia pensou que seria possível levar nas mãos um sorriso ternamente infantil e cheio. Porém, carregou um fardo, um fardo de inóspita vitalidade, que o homem tem no íntimo da sua imperfeição. E desacreditou: não mais tornou a ver nas pessoas a beleza, porque nunca a tiveram; não mais sentiu o afago de uma mulher, porque aqueles braços feminis o empurraram para a escuridão de um abismo… Buscou para sempre a sabedoria e a força na solidão daquele carvalho que fincara as suas raízes numa terra defeituosa. Viu-se a um espelho interior… o ancião via-se no Viagente como fora, mas que desistira de o ser.

Mas o Viagente vai. E segue, e anda, passo após passo, ofegando pelo caminho que tarda em vir, pois sabe que a beleza que um dia o velho negou está agora ali, dentro das suas mãos. Brilhante mas cristalinamente opaca, a gema que leva é toscamente bela: é essência de um homem bom, que todos os dias se faz na esperança de um sono interior.

Na distância do horizonte, avança um corcovado, fincando no chão a força do seu cajado; para trás fica rasgada na poeira a sombra de um homem erguido.

André Matias
Ricardo Oliveira

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A granítica aldeia de Cândida

Um anjo caído
asda
ccO Viagente segue com a criança a seu lado para a aldeia, empurrado pelo imperativo e pelo apertar árduo das falanges minúsculas da pequena criatura. As casas desmaiavam-se na rua, única, principal e ditadora. Era a rua central: por ali se passa, nela se vai, com ela se anda. A rua era estéril, onde nem as ervas daninhas ousavam esgueirar por entre as fendas dos paralelos. À volta estavam casas de granito, quase impedindo a passagem. As suas pedras desprendiam-se e interrompiam a estreita rua como se nunca tivesse havido passagem por ali. Ela era estreita, por isso Cândida e o Viagente caminhavam em fila, embora nunca desprendessem as mãos. Havia uma casa tão velha! Parecia anterior à rua. As portas fechadas e as janelas emparedadas assinalavam um vandalismo anunciado. Os seus tijolos graníticos ainda sustentavam o resto do telhado, mas não… não vivia lá ninguém. Fora uma boa casa. Era grande. Tinha dois currais por baixo, mas só silêncio. Não se ouviam os animais. A casa vazia e na rua nenhum indício de vida.

ccTodas as casas tinham uma cor desmaiada e carcomida pelo sol, como se ele teimasse em sugar os últimos resquícios de brilho das pedras. Embora arranjados, os lares não vertiam efervescências de alegria viva. Não tinham janelas e as fechaduras tristes das portas resguardavam-se maniacamente da estrada. Como se tivessem recebido esconjura divina, becos de casas asmáticas asfixiavam-se em atropelo. Fios de putrefacção maculavam as pedras com um odor insalubre. Abundava a escuridão nas pequenas frinchas do casario. O pensamento do Viagente estava escuro como as frinchas. Ele procurava alguém, uma pessoa que os pudesse auxiliar. Decerto que alguém haveria de conhecer Cândida. Era impossível que isso não acontecesse. O posto da guarda também não haveria de ser muito longe. Numa aldeia tudo é perto, tudo é ali, sem que haja um além. Mas não havia ninguém e não encontrou… e o posto da guarda não apareceu, nem existia.

ccNo entanto, há um ruído que fura o silêncio; um som que perfuma de humanidade o povoado. O Viagente e Cândida caminham. Há uma porta aberta. Eles caminham. Uma casa aberta e o calor de uma conversa. Avançam. Entram! Era uma taberna, onde quatro homens trocavam cartas de sueca à luz baça dos copos de vinho. Estavam ali, junto da lareira extinta, por entre o fumo dos cigarros que lhes turvava as feições. As mesas eram simples e toscas de um pinho sujo e gasto pelos cotovelos de homens rudes. Ao fundo o balcão erguia-se como um púlpito que não encontrava orador. Dois homens tristes sorviam uma evasão de inconsciência na aguardente. Ninguém falava. O silêncio descia desde o tecto de madeira e teias de aranha para a boca dos fregueses. O Viagente sem soltar a pequena Cândida de suas mãos estava aturdido. Queria falar com alguém, mas toda a aldeia parecia abandonada em silêncio. O posto da guarda sumira-se por entre as casas e nada mais havia do que aquela pequena taberna. Ouvia-se uma música de ausência que incomodava o Viagente; ousando interromper o bater enfadado das copas, não se deteve: Onde é o posto da guarda? Ninguém responde. Onde é o posto da guarda?! pergunta ansioso ao silêncio. A sua voz ecoou desfazendo-se na eternidade do granito; as copas foram seguidas pelas espadas e paus dos olhares. Responde-lhe um silêncio de ninguém.

ccDe dentro surge o taberneiro, o Pôncio, vetusto homem que desloca a sua majestade sobre uma bengala com punho em prata trabalhada barrocamente. Perante a sua aparição no balcão, respeitosamente, o colégio dos anciãos retira o boné em sinal de reverência, enquanto em certa estupefacção o Viagente, agarrando a mão da criança menos para a confortar do que para se segurar, se dirige na sua direcção. O senhor sabe dizer-me onde é o posto da guarda? Finalmente… chegaste! afirma o taberneiro. Confuso, o Viagente recua. Procuro o posto da guarda! Ela foi… O pai dela, sabe onde está? O taberneiro insiste, O que lhe fizeste? Mas insurge-se numa pergunta: Vais dizer ou não onde é a guarda? Vindos do deserto de pedras caladas, um pequeno tumulto invade a taberna. Quem é este? O que faz a Cândida com ele, Pôncio? Erguera-se de entre o anonimato da gente uma voz grave. Aturdido, o Viagente para se proteger encosta a cabeça da menina ao seu colo.

ccGermano, sossega. A tua filha já está connosco. Pôncio acalma o pai da criança, o tal que o Viagente com uma sofreguidão de justiça procurava: Vamos a isto! Já temos o que queremos. Um tremor abana as pernas daquele que encontrou Cândida. Uma torrente de nada avassala-o, afogando-o. Cai para um não-infinito. E eram tantos sonhos. Estatela-se contra um vazio imenso de uma luz negra, oca, que lhe queima o chão. Tantos ideais sugados para o abismo. Era o Mundo a girar tanto. O Viagente ali parado e tudo a rodar. Cai. Parado. Cai para o nada. Para o vazio. Rodopia, passando-lhe por entre os dedos destroços da sua justiça. Cai desamparado, sempre. Cândida era a última esperança de humanidade no meio dos cacos do seu mundo. Procura-a. Ainda estava a seu lado, tímida e de cabeça baixa. Agarra a sua mãozinha fria com as forças de um moribundo. Cândida!... Olham-se nos olhos. Ela sorri levemente, seca, indiferente, adulta, de alto. O que nos fazem, Cândida? A miúda a estourar de gozo não conteve uma gargalhada estrondosa, arrancando-lhe violentamente a sua mão e correndo, filial, para o regaço do pai.

ccPor instantes, no estancar que o turbilhão do tempo permite, toda a realidade que havia construído desapareceu. Desabou… Uma gota de água, temperada de sal triste, tenta esgueirar-se por entre uma pálpebra desiludida. Mas um empurrão forte degola o único gesto de piedade que o Viagente poderia dar ao seu ser. Cândida… porquê? Tão linda, tão indefesa! Tu és tão frágil e vou salvar-te! Mas não… turvam-se os olhos para não ver a verdade, cinge-se-lhe a boca, guardando as palavras que não quer dizer. E uma lágrima, aquela que vem desde a lembrança da voz tímida daquele ser indefeso. Um punho empurra-o. Não pode chorar. Alguém o atira para fora da taberna. E nem poder sequer chorar por ti, Cândida...

ccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccAndré Matias
ccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccRicardo Oliveira

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

A granítica aldeia de Cândida

Os olhos...


Percorreram não muitos passos até chegar às primeiras casas. A estrada esganava-se por entre fragas que teimavam em não deixar a humidade se dissipar. Os dois caminhavam decididos. No meio de uma propriedade vazia, murada por pequenas pedras erguidas por mãos que já não conheciam o tempo, perdia-se um animal. Sumido pela neblina matinal, não se distinguia de pronto: apenas traços de um quadrúpede de pequeno porte, com costelas salientes e pêlo continuamente sujo e sem brio. Pelagem preta-gasta, patas toscas e desarranjadas, o bicho entretinha-se em engano escavando no lodo um osso sumido. É um cão! Insosso e destemperado, arrastava-se à entrada da povoação, mostrando uma idade avançada, onde o coxear da sua pata traseira dizia os maus-tratos de alguém.

Cândida e o Viagente não se detiveram, porém um cão nunca dorme. Persegue-os e Cândida parece indiferente. Ladra aos pés do Viagente. Este, embora apressado, estanca a marcha para tentar perceber o animal (talvez tenha fome). A fraqueza latejava-lhe nas pernas e um ladrar solto mas tosco esvaiu-se novamente da sua boca. Cândida parece incomodada. Sem se aperceber disso, o Viagente pousa a mão sobre a cabeça daquele cão e cruza o seu olhar no dele. Que triste és! Lágrimas eternas daquelas que se colam à vida como se toda ela fosse sofrimento. Tanta tristeza! Dor desde a profundeza do seu ser, desde o momento em que o teu amigo dono te deixou. De onde vem tanta mágoa? Afaga-lhe o focinho, mas o cão não sorri. Cândida está perturbada.

Este animal foi mesmo maltratado! Não tanto como eu!... O Viagente percebe a mensagem que Cândida lhe quis transmitir e decide retomar a direcção da aldeia. Lançou um último olhar ao seu amigo triste e sorriu-lhe. Sorriu-lhe com aquele sorriso de quem sabe que a vida é injusta, que ela pesa, que dói desde o momento em que nos entregamos a ela. Sorri o Viagente e o cão percebe, não nos lábios, mas nos olhos. O Viagente desliga as mãos do pêlo. Dá-lhe um impotente sorriso de compaixão para justificar todas as maldades, um sorriso para acariciar tudo o que faz sofrer. O cão percebe e não sorri: olha agora Cândida e desvia. Os seus olhares tocaram-se, sim. O Viagente sentiu nas pupilas de olhos canídeos um ardor, um sentimento. Não o entende, não o podia entender – é simplesmente um cão, um cão. A estrada solitária era a única veia da aldeia. Por ali se entrava, por ali se saía. O homem e a menina continuam a andar, já é manhã e é urgente encontrar as autoridades aldeãs. O Viagente dá-lhe a mão e segue caminho. No entanto, os diálogos inacabados são como espectro que nos perseguem durante os sonhos e o cão agarra-se às pernas do Viagente. Não o morde, apenas lhe puxa as calças, suplicante. Cândida agarra a mão do seu companheiro com uma força que ele nunca lhe vira. O Viagente sacode-o, tenta livrar-se do pobre animal, agora animado por um espírito de desvairada sandice. O Viagente, fiel de insólita balança, pende para um dos pratos. O cão perderá mais esta batalha. Continuará, lazarento, a sofrer a sua pena de enjeitado. Seguem para a aldeia.

André Matias
Ricardo Oliveira

quarta-feira, 4 de julho de 2007

A granítica aldeia de Cândida

Na estrada, o Viagente prossegue a sua caminhada. Acompanhavam-no fantasmas de uma conversa que tivera com um companheiro. Adensavam-se nas frases do seu pensamento. O que se passaria com o José? Soubera que o seu amigo de infância entristecia no amor com quem partilhava a vida. Momentos tão bonitos viveram: loucuras de juventude… pedalar até à exaustão, deixar a cidade claustrofóbica e explorar os montes nunca antes vistos por qualquer ser humano… pernoitar, cantando à lua músicas que escreviam no espaço o nome Amizade… Mas o que se passaria com o José? Um amigo tem de aparecer! E o Viagente segue caminho, fortalecido com as suas novas sandálias.

A estrada adensava-se por entre contornos descontínuos de montes que perderam há muito o contacto da enxada. Os terrenos conheciam, agora, o abandono frio das ervas daninhas que já não eram pastos para rezes famintas. Vegetavam ao longe árvores tristes que não frutificavam. O caminho, que se esgueirava por entre socalcos, obrigava-se a apertar. Erguiam-se como uma catedral eucaliptos, que coavam a luz do dia como vitrais, afunilando em ramos de ogiva o caminho, goticamente. A estrada subia, numa tranquilidade aparente, até ao cimo de uma formação granítica de cinzento sujo. Os traços da estrada estavam gastos e esquecidos; as sinalizações, de tinta sumida pelo sol, testemunhavam um desprezo pelo alcatrão andrajoso… Sobe a montanha pelo caminho largo que o eucaliptal lhe oferece. Sobe com facilidade. Ao lado, a terra árida dos eucaliptos esgana-lhe a garganta. Estanca a marcha junto a uma vetusta árvore e bebe um pouco de água, para que a paisagem se torne mais viva. No entanto, a dureza granítica esmaga-lhe a vontade e recomeça a marcha, agora quase correndo. O caminho estreita e um perfume de medo enche o ar. Medo de quê? Estaria doido? Estava só, na floresta, era dia, nada havia a temer! Mas aumenta a passada por entre a ordem mercantilista dos eucaliptos. O caminho é agora um carreiro. Corre para o topo: talvez lá de cima veja as razões para o seu receio.

O Viagente tinha conseguido, enfim, atingir o cume do monte, que não era a ara da natureza salvífica que conhecera em outros contextos. À sua volta, as montanhas desenhavam-se em aridez estranha, esquecida e moribunda. Numa garganta de arestas em granito, a estrada descia para um vale. Com tez de trilho, o caminho vertiginava-se numa inclinação estranha. Ao longe, o monte amortalhava fatalmente a luz do dia que findava.

Esta estrada era a única possibilidade de seguir para cidade… era estranho que não se fizesse uma alternativa, mais ligeira, menos íngreme, mais ténue que agilizasse o tormento das curvas serpenteantes pelas escarpas. O vale era tendencialmente escuro, umbrio, desprezado pelo bafo do sol. As terras estavam gastas pelas lambidelas fustigantes de um vento gélido de Inverno e por tórridas brisas estivais.

Desce.

Junto à berma, uma criança sofria, prostrada exangue na folhagem face à sua impotência de resistir. O Viagente precipita-se; segura-lhe a cabeça. Os olhos estavam fechados e o louro do cabelo confundia-se com a sujidade do solo. O que te aconteceu?! O azul que se abriu dos olhos da menina lembra-lhe o paraíso que nunca encontrara: os olhitos lacrimejavam os gritos mudos da sua dor infantil. Toca-lhe o rosto macio e suaviza uma lágrima com o carinho do seu dedo. Cuidadosamente, coloca a cabeça dela no seu colo e afaga-lhe o cabelo liso e comprido. Limpa o sangue de uma ferida que rasgava a beleza primaveril. Comove-se e revolta-se. Quem teria tido coragem?!... O sangue descia pela face como um pecado pela humanidade. Divinamente linda e marcada eternamente pela atrocidade humana. O sangue descia tão rápido como a cólera subia no Viagente. Rota, desfalecida, ele olhava a menina deitada. O vestidinho azul-bebé, tão grande como a sua infância, conspurcado por manchas escarlates, destapava os joelhos rasgados… O que te fizeram, pequenina? Ela não fala, sucumbida pelo medo e pelo espanto. Abraça-a sofregamente e grita para dentro em desespero lacrimejante: Justiça! Os seus braços e as suas perninhas pareciam ter sido arrancados do seu corpo de menina com uma brusquidão abrupta e selvagem.

É breu. A menina esconde o rosto com as mãos, envergonhada, e ergue-se numa tentativa de fuga superior às suas forças. Ele segura-a, mas ela debate-se até à exaustão. Depois, fecha os olhos e dorme, recostando-se sobre o seu colo como um anjo indefeso. O Viagente deixa escorregar umas gotas de água sobre os seus lábios frágeis. A pouco e pouco, a menina desperta. Pousa um beijo na sua testa, mas ela rejeita-o abruptamente. Tem calma, pequenina…, já passou…, está tudo bem… Como te chamas? Ela olha-o intensamente desde o azul dos seus olhos. Cândida. Pobre menina que foste arremessada do teu pedestal de alvura, como te puderam profanar?!... Ele sorri para a doçura da voz. O que te aconteceu? Os lábios da menina contraem-se nervosos e chora violentamente contra o seu peito. Ele guarda-a junto ao coração, tentando no gesto o conforto que as palavras não sabem. Chora e o Viagente comove-se. Abraça-a para a proteger, ser angelical, de todas as maldades. O que te aconteceu, Cândida? A menina ergue os olhos até encontrar o olhar daquele homem, e soluçante o meu pai, chora, o meu pai…, as palavras ficam-lhe presas à dor. O meu pai…, soluça e chora (as frases lacónicas lancetavam-no), …queria brincar comigo, mas doía…, procura no olhar dele a profundidade do seu ser, …e porque eu não deixava, bateu-me… e bateu, até me aleijar… Chora copiosamente. Seca, desamparada, atirada com desencanto, a frase ecoou no Viagente como se fosse um silvo de comboio agudo e estridente dentro de um túnel sem fim. O pior de todos os cenários acabava de se erguer perante si. A menina, pequeno anjinho destruído, mostrava-lhe num relâmpago como a maldade do homem pode ser tão nitidamente crua, frígida e real.

Ele não podia permanecer imóvel, petrificado perante estas palavras… Tinha de fazer algo, enfrentar esse ser demoníaco, obrigá-lo a pagar pelas consequências indeléveis dos seus actos. Irreflectidamente, num estado de obstinação superior, pega na menina ao colo, e sussurra-lhe: Não tenhas medo! Está tudo bem… Em passos decididos, ardente de justiça, pega nela e segue para a aldeia. E vão… seguem viagem durante a noite, desenhando-se na sombra um quadro dramático de dor: uma criança indefesa, fingindo-se adulta, segurando um anjinho a quem lhe roubaram as asas é apanhado, como um passarinho que caiu do ninho, quando aprende pela primeira vez a voar.

Com Cândida no seu colo, o Viagente tentava que ela se animasse. Cantava uma música que ouvira de sua mãe. Era uma cantiga de embalar. A noite já ia alta, mas Cândida teimava em permanecer acordada. Imprevisivelmente, ela reconheceu a canção e juntou a sua voz à dele. A noite estava escura. Não havia luar. Apenas duas vozes rasgavam o silêncio da mata. A estrada descia. Seguiram caminho por entre os paralelos embebidos em verdete de águas estagnadas. Escorregadio, difícil, esvaído, o caminho levaria este par, de insólito encontro, à aldeia onde vivia Cândida. Até à última gota de sangue, com ela ao colo, as forças percorriam-lhe as veias em ímpetos soluçantes de um quase desespero. Andou alguns quilómetros, carregando um peso que incorporava na inocência, à procura de um sentimento que acreditava existir…

Envolto por um ar abafado do nevoeiro, vê-se do alto em que estavam um aldeamento. É aqui que vives? Mas Cândida já dormia, pura como um anjo. E o Viagente seguiu para o fundo do vale. A noite diluía-se agora em ténues raios de luz, que não tinham a força temerária de trespassar esse manto de humidade. Rodeada por fragas escabrosas, a aldeia escondia-se por entre as paredes asfixiantes de um granito cinzento e sujo, onde as micas não ousavam reflectir a luz do sol. Era um pequeno povoado enclausurado entre duas montanhas, em que o granito das pedras ameaçava esmagá-lo; diante, galgavam algumas terras que talvez tivessem sido cultivadas noutro tempo, mas que estão estéreis. O caminho, único, que atravessava a aldeia até à outra encosta, serpenteava os precipícios das gargantas. As casas, empoleiradas em pedras, não tinham hortas nem galinheiros. Estavam sós, tristes e sem calor, aconchegadas do vento pela encosta que impedia que o sol raiasse. Ao longe, onde ainda estava o Viagente, agora com a menina pela mão, a aldeia parecia camuflada nas pedras, como se estivesse morta. O caminho estreito dirigia-se para o centro. Animados pelo raiar do dia, desceram vertiginosamente em busca de justiça.
André Matias
Ricardo Oliveira

sexta-feira, 13 de abril de 2007

O Viagente

O sol nascente soprava o primeiro calor sobre o verde trigueiro, pincelava tons quentes no rosto do Viagente que errava, vigorosamente, tacteando palavras com pés descalços. A paisagem era verdadeira desde o princípio de si até ao limite da sua existência – havia um halo de ser que o impelia a abrir os braços até ao horizonte. Perto, um regato descia os degraus cavados nos seixos, comprometendo o trigo numa música ondulante, que o Viagente cantava. Em harmonia, frases virginais em melodia salpicavam de finitude o temperamento vital da vontade humana. Animado pela interioridade da sua existência, calcorreia a terra batida dos antepassados, lavrando o traço da sua silhueta com os pés.

A erva ameniza o seu carácter e leva-o à constatação da sua verdade. Em acção-pensante, olha a água, dando-se à luz, em presenças sincopadas, em cada passo que constrói. Sou um pedaço de verdade que partilha do pluriverso da humanidade.

Nesta aparente diminuição do ser, encontra o seu limite existencial – universal e diminuto. Existe em encruzilhada! Eis um bom momento para decidir o caminho. No cruzeiro-chão, a terra batida era cravada pelos passos do Viagente, os olhos no chão curvam-lhe o dorso com o fardo da decisão. Por onde seguir? Que caminho escolher? Sobre a esquerda, a estrada alongava-se rectamente, palmilhando um muro que lhe acabava a visão. Do outro lado, o cajado fendia a secura quente que o vento trazia. Diante, o horizonte estava plantado junto à ansiedade. Havia um sopro de vontade que lhe cadenciava os passos.

Segue Viagem, pisando trilhos de linhas que carroças deixaram presas ao tempo. São chiares e rangeres… restos de uma música tocada por um outrem passado. Músicas deixadas em liberdade infinita, que ousa tanger. Salta, brincando em tonalidade de um Sol maior, compassando-se em quaternários. Percebe nas palpitações ulteriores a presença do Homem, por isso deseja preencher os silêncios com as notações pulsantes de si. Energicamente, aproxima com doçura os lábios da boquilha. Solta, de dentro de si, um sopro seminal, fecundando a eterna companheira gaita-de-foles. De talhe rústico, cinzelada pela mão experiente de um formão de décadas, incorporava nas suas madeiras as modas das gentes. Esta pousava docemente à ilharga direita do Viagente, assumindo-se como uma irrefutabilidade na vida. A sua forma curvilineava o corpo do homem, num erotismo dialéctico de entrega. Era a sua parceira de todos os momentos; companheira nas pulsões vitais, insuflada em carícias, no amargor da solidão e no êxtase de uma alegria comunitária. Dormia a seu lado, em sensual abraço e acordava eroticamente, lançando Música ao silêncio. A circunstância é revestida de melodias compostas por notas de outras eras. A sequência que deixa passar por entre os dedos exprime-o sem espaço nem tempo. Rasgando a urdidura diacrónica, dançam consigo corpos trigueiros ao som de uma vida ainda não tocada.

E caminha, com dedos dialogantes pela gaita-de-foles. Uma fogueira centrava misticamente a comunicação entre velhos amigos. O ar sonorizava-se numa melodia composta por guitarras, adufes e uma gaita-de-foles distante do tempo e em união. Circularmente, corpos moreno-tisnados, semi-despidos, dançavam. Raparigas de rosadas faces incitavam as carnes à folia, ao som de um tempo telúrico. As cores do fogo alimentavam matizes na pele parcamente coberta. Eram elas que sentiam a música desde os confins do Universo até à presença de si. Dançavam bacantemente, espargindo vontade de Vida. Era uma fogueira: crepitavam ritmadamente taliscas de pinho verde, aromatizando em perfumes feminis o espaço. As chamas aqueciam a memória e as saias levantavam ao vento da Música. Era o encontro de harmonia com um lado escondido, que esperava na ansiedade momentos comunitários.

E caminha… O regato descia em sorriso os degraus cavados nos seixos da memória, lapidando as arestas graníticas da existência. Avançava numa determinação certa de uma foz desconhecida. Seco de sentir, o Viagente aproxima-se, chegando o odre vazio, que tinha preso ao cinto, à água que escorregava. Bebe. Na sua garganta seca, caem-lhe gotas puras de essência de vida: mata a sede. Mergulha-se em plenitude, confiado na preciosidade do conteúdo. Renasce numa esperança de se encontrar. Enche o odre e renova a vontade de existir em Viagem. Recomposto nas energias vitais, ignora o caminho que deva ser trilhado. Caminhar… Mas por onde? Qual o sentido? Há sempre um valor por baixo da aparente terra que pisa, uma moral que se estende… em nós. Tira o mapa onde habitam as estradas plausíveis e as que estão na possibilidade do seu ser. Tantas e de tão árdua leitura!... Afinal, qual é o norte? Sou? quem? Vou? por onde? Agarra-se, suando, à bússola guardada meticulosamente no alforge, que magnetizava o seu querer ser. Ela aponta-lhe a sua direcção, o seu Norte: sair ao encontro de alguém. A Vida só existe quando falamos com alguém. Direcciona a sua rota para o povoado mais próximo, avançando para ele resoluto.

Orientado pelo alto de um cata-vento que mostrava as oscilações dos elementos, calcorreia os lajedos humanizados. Neles cresceram gerações de homens que ambicionaram encontrar-se no campanário que altaneiramente lhes dava a fugacidade do tempo. À sua frente uma igreja. Gentes passeavam pelo adro. O relógio parado marcava a hora que nunca chega. No tanque, em águas cristalinas de esperança, lavavam-se cueiros de homens a haver. Nas pedras do caminho batucavam cascos de gado pachorrento, que ordeiramente seguiam o seu pastor. O almofariz na botica esmagava com o pilão drogas que minimizavam as agonias dos enfermos. Pedras quinadas de um dominó secular matavam o tempo aos velhos que, na placidez de uma vida feita, aguardavam pela estrela da noite. Dois anciãos sentados no banco olhavam o passado nas crianças que brincavam ao futuro; uma mãe abraçava o filho desde o primórdio da existência, sussurrando-lhe a verosimilhança de uma vida. À frente, as crianças brincavam à malha com a lenda dos velhos. Uma vendedeira apregoava palavras que se suspendiam em repetição. Ao lado, uma criança derruba a malha e um velho sorri. Conta, agora, uma história. História escondida algures atrás dos ponteiros parados do relógio da igreja.

Impelido sempre para o adro do campanário, o Viagente procura a hospitalidade de um acolhimento. De pés inchados e desgastados pela eternidade de uma caminhada, busca abrigo num conforto do sapateiro. Homem de labor, de mãos calejadas pelo martelo que cinzelava o cabedal rude, foi ensinado pelas gerações a conferir liberdade àqueles que queriam andar.

Na oficina pairava um ar fétido e inebriante de colas e graxas. Está escuro. O sapateiro imergido na sua arte apercebeu-se da entrada de um alguém. Cindidos pela distância do balcão, o artesão perguntou ao que é que vinha. Meras palavras, saídas a custo, perguntaram, com intuito apenas de saber se era possível fazer umas simples sandálias, daquelas de couro, com palmilhas resistentes mas leves, era capaz de as fazer? Está escuro. E o sapateiro ergue-se por trás do avental de couro roçado. Um traço de luz imergia de um cristal vítreo, iluminando a sua face. Distinguiam-se cicatrizes por cima do suor. Suava pelos poros o cansaço do trabalho. Em tronco nu, aproxima-se do balcão. O avental de couro protege-o da imensidão do seu corpo. Olhava o Viagente que recebia a luz nas costas. Como uma lixa, a voz constrangia-o. As barbas duras prolongavam curtas palavras que ainda ecoavam: ao longo destes anos sempre o fiz, com a esperança de dar sandálias àqueles que caminham, enquanto daqui os vejo ir e partir. O ferro em batimentos sincopados latia um tilintar entre o martelo e o couro rude, mas ávido de ser humanizado. Em tiras suaves a peça foi esculpida, até dar formas a rudimentares calígulas de resistência intemporal. Entre pausas de colcheias, o sapateiro perguntou por novas que decerto o Viagente teria, tradição de almocreve, reminiscência de um Mercúrio alado em metáfora. O cheiro a cola e a graxa deixam de perturbar o Viagente. Falam amenamente sobre a Viagem que este iniciara. Finalmente, recebe as sandálias e sai da oficina.

Cá fora, no adro, os velhos à espera do relógio parado da igreja. Já não havia crianças. Os velhos olham a torre. E o apelo da vendedeira está ainda preso aos ponteiros. Mas os velhos não querem comprar nada, permanecem sentados à espera. O Viagente segue, em passo lento, elegendo o caminho plausível. O povoado está em silêncio. As pessoas estão recolhidas no calor do lar, deve ser hora do jantar. Na distância, retrocede o olhar para eternizar os momentos. Mas sabe que não pode parar, ainda não é tempo. Há ainda um sentido para encontrar. Caminha. A estrada saída do povoado crescia até aos interstícios do horizonte. Acalentado pela suavidade humana das sandálias, sentia-se agora confiante para continuar a labuta da sua jornada. O pó da estrada parecia-lhe menos agreste, o calor das pedras não o perturbava na sua incursão. As plantas dos seus pés, até então em chaga, tinham a confiança de um progresso. Em campo aberto, o trilho era interrompido pela continuação do ribeiro onde matará a sede. O Homem tinha edificado uma pequena ponte românica, maciça pelo tempo, de pedra granítica cinzenta, sulcada pelas rodas de carroças. A sua curvatura impedia, momentaneamente, de vislumbrar o resto do caminho. Estanca a marcha, senta-se numa pedra que a ponte lhe havia cedido. Parado no seu recato, retira do alforge o diário para nele se inscrever.

Domingo, Junho.

Querida companheira,

Aqui sentado, pouso finalmente a minha vida, suspenso em estagnação. É o momento de me viver.

Há muito que me tenho procurado nas flores e no vento que me fustiga a cara. Sinto-me todas as vezes em que tenho vertigens de mim e tropeço no olhar de cada sentimento. Temo as vezes em que me perco em reflexões etéreas que não me encontram. Já é longo o caminho e ainda não sei qual o destino que procuro. Olho em volta, na ânsia de encontrar o sentido, não sei… Talvez o sentido que a paisagem tem de ser. Talvez o sentido dela em mim, não sei! O tempo tem-me castigado as carnes em feridas contínuas, indeléveis no tempo: vicissitudes daqueles que não temem seguir pelos espectros criados no Homem. Os caminhos são espelhos onde se esboça a ânsia de me sentir. Tenho medo do que me desconheço, afunilado num tempo que é o meu, mas que o não escolhi; num lugar em que existo, mas que não o procurei. Erro, vacilante, pelos grãos de uma ampulheta que tem descarregado vidas de homens.

Perdido, caminho sem destino por entre os trilhos que a vida oferece. Já canso, mas sinto uma vontade de continuar. Finalmente, ao longe, a presença de um outro igual surgiu na esperança de um povoado. Os passos sorriem na ponta dos meus dedos nus. Corro, andando, sôfrego de sentir o afago subtil e fragrante de uma pele. Há tanta coisa em que penso, em que sinto. Sou uma criança aconchegada à lareira na noite de natal.

No povoado, procurei o sapateiro. E foi lá a minha revelação.

Abri a porta da oficina. Nas cicatrizes dele vi-me em igualdade. A luz nublada circunscreveu-nos em uno. Outro-me em ti, sapateiro, e sei que isto é verdade. Não entendo bem o que digo, mas é tão real. Vou-me sabendo num tu que não se mostra, arrancado a ferros de um ventre sepulcral. Não te expões, dás-te somente nas batidas escravizadas do martelo, que bate seco em pregos de andar. As palavras, por vezes, não conseguem tudo aquilo que pretendo. Ainda te ouço falar…

Sim?! disseste-o. E assim rasgaste a naturalidade de um cumprimento. Parecias triste, desgostoso com as oportunidades que a vida não te ofereceu. Perguntei-te se fazias sandálias de couro, simples, com palmilhas resistentes mas leves. Há anos que as faço. Falaste, num tom seco de amargura, em que se podia adivinhar um saber que te foi obrigado ao longo do tempo; um saber-prisão com que te foste enovelando até desencontrares a saída. Os teus olhos, apagados para a esperança, eram baços de tons sonho-esvanecido. Nas tuas palavras vislumbrei um espaço onírico, escondido atrás do brilho inexistente dos teus olhos. Estás resignado, bom sapateiro, com a vida que te foi possível. A tua circunstância amarrou-te à desesperança de um fazer não inteiro. Num sorriso de amarelo acre-limão desenhaste todo esse sentimento de um não-preenchimento que já não cabe em ti. O parado da frase fez-me encontrar-te estanque no princípio da viagem que nunca pudeste fazer. Não choras… Não choras, porque te instalaste nesse teu mister e nele vais alimentando os teus dias de concretização, vivendo na tarde da tua meia-idade. No teu jargão de monotonia arremessaste Deixa-me ver o tamanho do teu pé. Aliada à tua preocupação de uma frieza técnica, creio que ainda tens a curiosidade de saber as consequências explícitas de uma errância. Ofereci-te o meu pé descalço e gasto pela dureza da viagem. Mediste menos o pé do que as cicatrizes e desenhaste cada uma delas na vertigem da angústia que tinhas guardada atrás do avental. Esbatida no esboço de uma sola, quiseste em devaneio pensar como terias sido se a oportunidade te tivesse sido dada. São os resquícios da força flamejante que ainda te percorre, mas que já não te abraça num ímpeto de jovialidade. Por um momento, uma faísca de sonho iluminou a oficina.

Mas depressa compreendeste que a necessidade do teu ganha-pão te levava para a contrição do teu banco, assento que fora dos teus antepassados, que mais não te puderam deixar do que uma possibilidade de ser. Depositavas no teu serviço um empenho visceral, acalentando em mim a força que te tiraram. No entanto, uma pergunta surgia-te desde o tempo em que acreditaras poder trilhar o teu destino. Era uma pergunta que estava escrita por baixo da curiosidade. Uma pergunta que estava presa à infância, no tempo em que o silêncio da resignação dos homens ainda é impossível. Então… e o que é que contas? E eu contei… e uma chama brilhou nos teus olhos como o fascínio da descoberta. Mecanicamente, prosseguias o trabalho, unguentavas-te com as palavras que eu te aconchegava à face e sorrias. Um sorriso dos antigos… tão antigo como a tua infância. E sorrias, perfumado em leveza, aspirando a tua vida no momento em que as rugas ainda te não oprimiam. E contava entusiasmado mais contigo do que com a minha aventura. E tu trabalhavas na possibilidade irrealizável de uma concretização feliz. E sorrias fascinado com os mundos que te dizia. Sorrias para mim, genuíno e desprendido do que és. Sonhavas, certamente. Nesse local construíste um novo lar, encontraste uma mulher. Vejo-a por trás do brilho dos teus olhos. Como é bela! E estás abraçado a ela suspenso e leve como a vida deveria ser. Sorris e eu conto. O sonho é cada vez mais real; acaricias o trabalho como o corpo de uma mulher. Ainda sorris para o sonho que finalmente ousaste cobrar à vida.

Recebi, por fim, o fruto do teu suado labor. Entregaste-as briosamente em minhas mãos. Suavemente, toquei as tuas e auscultei o saber que elas guardavam nos calos. Foi um toque subtil e rápido, mas que me pareceu uma passagem de testemunho – a tua imortalidade em mim. Agarrei as sandálias e calcei-as para te corporizar na minha existência. Queria que viesses comigo também pela magia da minha leitura do mundo, embrenhado pelo meu respirar das coisas. A hora ia afastando-se no relógio da torre que teimava aquietar-se num infinito estático. Tinhas dito Ora aí estão. Faz uma boa viagem. Adeus…A este adeus que eu tinha a certeza de que não veria mais uma saudação de regresso, nada te disse. Como de um defunto, guardei uma última imagem de um tu vivo. Não importava o nosso reencontro, mas sim as sandálias que me fizeste. Podiam ser de um cabedal acabado de curar, mas consubstanciavam a força de uma geração de homens. Deste-me naquele momento a possibilidade de prosseguir a minha jornada. Sabia-lo, se o sabias… Por isso, deixaste-te embrenhar nas minhas historietas de ínfima importância. E depositaste nas minhas sandálias, que eram tuas e ainda o são, a oportunidade de continuar simplesmente a andar. Quiseste, ai como o querias! que eu não parasse, porque vias em mim a tua possibilidade de ser. Quiseste ser num outro que nem sequer conhecias. Viste-me como um filho que nunca tiveste, testamentando-me a tua única réstia de esperança. Teu herdeiro, imortalizar-te-ei somente porque levo de ti umas sandálias, couro humanizado pelo ser de homem.

Caminhei até chegar à margem do ribeiro. É o final de uma etapa que agora começa. Estou do lado de cá e bebi o que o cá me quis dar. Verei o lá depois, não importa. Agora, ainda olho as sandálias que me protegem estes pés. Perfeitas! Amanhã poderão ser outras, não sei… Bom sapateiro, as tuas palavras viajam em mim, num eu que não o será eternamente em mim. Já são minhas, porque o foram tuas e são tuas. Olho as sandálias... Estar-me-ás para sempre gravado nelas. É com elas que subo ao mundo na esperança de encontrar alguém que se eternize na minha (ainda não) imortalidade.

É tempo de continuar. Seguirei, incerto que estou no meu agir de ser.

Beijo-te, companheira, na simplicidade de um até breve…

Escreve, sentado naquela pedra em que se tinha demorado, como se estivesse a olhar o mundo do alto de uma falésia para o interpretar. Fechou o diário, com a certeza de que não o demoraria muito a abrir. Sente agora o vazio que o impulsiona para a reflexão. Vê-se transfigurado nas águas do rio que lhe passa aos pés. Há urgência de seguir Viagem. Nela entenderá de que verdade se veste o mundo. Aprendeu com o sapateiro que cada homem constrói em si uma possibilidade de ser no mundo. Aprendeu que em humildade se constrói a vida, através do que o Outro tem para contar.

O Homem é a dimensão da sua amplitude em que se mede e move. Cabe ao Homem entender a Vida como uma deambulação vadio-consciente de um sentir inquieto, em que a errância é uma demanda pelo Ser, alicerçando-o sobre o paradoxo da verdade que se vai criando. Na sua dimensão de ser, a Vida é-lhe a capacidade de se consubstanciar num continuum dinamismo como realidade em si e de si em oximoro, porque lhe permite ainda existir. A antítese sustenta a universal verdade refractada, da qual o Homem faz parte: Ele é em si e de si mesmo um (in)constante paradoxo.

André Matias

Ricardo Oliveira