Os olhos...
Percorreram não muitos passos até chegar às primeiras casas. A estrada esganava-se por entre fragas que teimavam em não deixar a humidade se dissipar. Os dois caminhavam decididos. No meio de uma propriedade vazia, murada por pequenas pedras erguidas por mãos que já não conheciam o tempo, perdia-se um animal. Sumido pela neblina matinal, não se distinguia de pronto: apenas traços de um quadrúpede de pequeno porte, com costelas salientes e pêlo continuamente sujo e sem brio. Pelagem preta-gasta, patas toscas e desarranjadas, o bicho entretinha-se em engano escavando no lodo um osso sumido. É um cão! Insosso e destemperado, arrastava-se à entrada da povoação, mostrando uma idade avançada, onde o coxear da sua pata traseira dizia os maus-tratos de alguém.
Percorreram não muitos passos até chegar às primeiras casas. A estrada esganava-se por entre fragas que teimavam em não deixar a humidade se dissipar. Os dois caminhavam decididos. No meio de uma propriedade vazia, murada por pequenas pedras erguidas por mãos que já não conheciam o tempo, perdia-se um animal. Sumido pela neblina matinal, não se distinguia de pronto: apenas traços de um quadrúpede de pequeno porte, com costelas salientes e pêlo continuamente sujo e sem brio. Pelagem preta-gasta, patas toscas e desarranjadas, o bicho entretinha-se em engano escavando no lodo um osso sumido. É um cão! Insosso e destemperado, arrastava-se à entrada da povoação, mostrando uma idade avançada, onde o coxear da sua pata traseira dizia os maus-tratos de alguém.
Cândida e o Viagente não se detiveram, porém um cão nunca dorme. Persegue-os e Cândida parece indiferente. Ladra aos pés do Viagente. Este, embora apressado, estanca a marcha para tentar perceber o animal (talvez tenha fome). A fraqueza latejava-lhe nas pernas e um ladrar solto mas tosco esvaiu-se novamente da sua boca. Cândida parece incomodada. Sem se aperceber disso, o Viagente pousa a mão sobre a cabeça daquele cão e cruza o seu olhar no dele. Que triste és! Lágrimas eternas daquelas que se colam à vida como se toda ela fosse sofrimento. Tanta tristeza! Dor desde a profundeza do seu ser, desde o momento em que o teu amigo dono te deixou. De onde vem tanta mágoa? Afaga-lhe o focinho, mas o cão não sorri. Cândida está perturbada.
Este animal foi mesmo maltratado! Não tanto como eu!... O Viagente percebe a mensagem que Cândida lhe quis transmitir e decide retomar a direcção da aldeia. Lançou um último olhar ao seu amigo triste e sorriu-lhe. Sorriu-lhe com aquele sorriso de quem sabe que a vida é injusta, que ela pesa, que dói desde o momento em que nos entregamos a ela. Sorri o Viagente e o cão percebe, não nos lábios, mas nos olhos. O Viagente desliga as mãos do pêlo. Dá-lhe um impotente sorriso de compaixão para justificar todas as maldades, um sorriso para acariciar tudo o que faz sofrer. O cão percebe e não sorri: olha agora Cândida e desvia. Os seus olhares tocaram-se, sim. O Viagente sentiu nas pupilas de olhos canídeos um ardor, um sentimento. Não o entende, não o podia entender – é simplesmente um cão, um cão. A estrada solitária era a única veia da aldeia. Por ali se entrava, por ali se saía. O homem e a menina continuam a andar, já é manhã e é urgente encontrar as autoridades aldeãs. O Viagente dá-lhe a mão e segue caminho. No entanto, os diálogos inacabados são como espectro que nos perseguem durante os sonhos e o cão agarra-se às pernas do Viagente. Não o morde, apenas lhe puxa as calças, suplicante. Cândida agarra a mão do seu companheiro com uma força que ele nunca lhe vira. O Viagente sacode-o, tenta livrar-se do pobre animal, agora animado por um espírito de desvairada sandice. O Viagente, fiel de insólita balança, pende para um dos pratos. O cão perderá mais esta batalha. Continuará, lazarento, a sofrer a sua pena de enjeitado. Seguem para a aldeia.
André Matias
Ricardo Oliveira
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