quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A granítica aldeia de Cândida

A sombra do humano

A lágrima não tivera tempo para cair no frio das pedras. Já na rua, como Pôncio soberanamente ordenara, o Viagente era levado, como se de um malfeitor se tratasse. Por momentos, vinha à memória os passos daquele que fora recebido por entre um júbilo de palmas e aclamações, para depois ser dado à morte. Por entre espadas e varapaus de injúrias e calúnias, o Viagente é empurrado para o meio da praça da fatídica aldeia. Desorientado da sua sorte, a sua tontura de turbilhão intensifica-se pelo vazio que sente. O fora da taberna era gelado, como uma gota de geada cortante, sólida, aguda, fina em dor. Os habitantes da localidade cercavam o Viagente, apertando-o de encontro às suas muralhas. Muralhas mal guardadas… Eram defendidas por um general que se preocupou em salvar a vida de um soldado, descuidando a integridade da cidade. E a cidade parece estar quase a ser tomada. O exército acerca-se, toda a aldeia vai invadir o seu território para o pilhar.

Toda a aldeia… excepto um ancião que descansa como a capela que fica na praça, por baixo de um carvalho. A praça mostrava-se pequena e asmática. E o assalto começa. O Viagente tomba, vendo por entre a multidão de braços e pernas o pelourinho solitário. Perdera a cabeça, o pelourinho, vítima de uma outra guerra que o Viagente desconhecia. O capitel afundara-se nos tempos, nos tempos em que a justiça ainda se passeava pelas regadeiras outrora viçosas dos campos desta aldeia. O ancião olhava-o e a capela ao lado em silêncio.

Em silêncio… o Viagente quer parar de ouvir toda aquela gente, querer parar de pensar, silêncio… Silêncio para não escutar os ruídos que o Homem faz quando segue um caminho errado. O Viagente via-se mergulhado em águas turvas, em que braços de algas o sufocavam. Não entendia. Tudo era estranho e improvável como o voar de andorinhas em Dezembro. Não percebia… Por entre os apupos, foi entendendo a razão pela qual aqueles campos não viam mais o bafo quente dos bois a pastar, nem o ondear terno e pachorrento das searas. Aquela aldeia era o único ponto de passagem possível por entre as montanhas. Afinal aquela aldeia vivia do saque aos viajantes que por lá seguiam para a cidade. É uma aldeia de gente que se senta por cima do trabalho dos outros e não se incomoda em os magoar. E tu Cândida? Silêncio… Quero o silêncio da capela e olhar daquele ancião! Ao lado do teu pai, sorris para a minha desventura. Mas tu não tens culpa. És um isco que vai ser comido pela própria aldeia. Não eras nascida quando o pelourinho ainda tinha o capitel, por isso não sabes, não sabes que sou vítima de uma injustiça.

A turba cerca o Viagente e arrasta-o para os degraus do pelourinho. Ele bate com a cabeça e deixa cair o seu cajado. O cajado fica no chão como sustentáculo morto. Será assaltado e despojado de todos os seus bens. O Viagente não resiste, deixa levar-se pela força das gentes. Pôncio é quem comanda. É ele quem pilha os bolsos daquele homem perante os olhos gulosos da população. Todos aguardam ansiosos pelos tesouros que aquele viajante devia ter. O ancião também aguarda, mas não estava ansioso. Os seus olhos já tinham visto demais. Um padre passa altivo; dirige-se para a capela sem prestar muita atenção. E Cândida fala com o pai. De que falas? Pôncio arranca do alforge condenado a bússola e o mapa para ele não mais se encontrar. Nada mais havia de valor ali. Irritado, arremessa-os.

O Viagente segura o alforge com todas as suas forças para proteger o diário, mas Pôncio ignora o gesto e vê preso ao seu cinto um saco que prometia o desejado tesouro. Rouba-lhe o saco, abre-o. Era afinal um odre e o seu conteúdo apenas água. Exasperado, despeja-o em frente da população, desprezando o seu valor. Era apenas a água fresca daquele ribeiro, em cujas margens o Viajante escrevera. É impossível que este pobretana não tenha nada de valor com ele!!! Na capela, a missa começa: o padre, indiferente, dera início à celebração eucarística para um punhado de beatas que não encontrariam jamais as portas de um paraíso celeste. Mas o ancião não vai. Permanece junto à árvore, olhando por entre as folhas fragmentos de humidade que as últimas chuvas, tão longínquas, deixaram. A água era vida que caía nas frinchas da pedra empoeirada; ela escoava-se como uma espécie de extinção anunciada. Cândida olhava a água mas não entendia. Não entendia por que estava o Viagente abraçado ao diário. As gentes da aldeia, nervosas pelo saque que não foi, precipitam-se para o homem indefeso em golpes furiosos. Batem-lhe na cabeça, no estômago; ele não larga o diário, mas ninguém quer saber; batem-lhe nos braços, nas pernas; ele não larga o diário, mas ninguém quer saber, porque ninguém se apercebe que o outro existe e também sonha e também deseja e também quer ser feliz e também o Viagente não larga o diário: está preso à vida e ela a ele. Cândida não entendia… não podia entender. Também ela queria o dinheiro que não havia na bolsa do Viagente. Na missa há cânticos, continuando alheia à imolação. A aldeia abate-se sobre ele e cai-lhe a gaita-de-foles.

Não havia nele mais nada; não tinha mais nada para esquadrinhar… Os bolsos estavam vazios, o alforge revirado, o odre seco. Ali estava em despojo. Perante isto, o Viagente foi abandonado como uma mina velha de ouro, cujo filão fora explorado até à exaustão. As pessoas da aldeia, insaciadas, deram-lhe o desprezo. Encolhido, no chão, o Viagente sofre no corpo menos do que no espírito. Tinham-lhe aberto uma ferida enorme, do tamanho da maldade. Por todo o corpo, o sangue quente encharca-lhe a roupa como um desespero. Mas ele não cede. Dói-lhe tudo. O diário está protegido, a gaita-de-foles a seu lado e finalmente a fúria do povo parece amenizar. A boca sabe-lhe a sangue; é um sabor amargo, este o da vida. De repente, surge nos olhos deste homem o espectro do cão, sentinela da aldeia. Este aglomerado de casas nada mais tem do que a geada cortante do desprezo. Estou como tu, triste animal, ferido na essência de existir…

A população já vai. As ruas iam-se despindo das gentes, até se desnudarem quase por completo de vida. Ficariam tão-só as pedras da estrada calcadas pela Cândida que não obedecerá ao chamamento do seu pai. Já vou!!! Só fico aqui para ver uma coisa… O Viagente estava engessado pelo frio que começava a cair no vale. O dia tornara-se colossalmente pequeno; era já a tarde que caminhava para uma noite escura em consternação. O povo deve ter ido assistir ao final da missa que agora está na apoteose da comunhão: Deus é comido pelo homem… menos pelo ancião que continua junto à árvore, como um último habitante de uma terra de onde todos já partiram há muito. O Viagente mal se consegue mover, mas estica o braço para segurar a gaita-de-foles. Não é capaz, o braço não se mexe e dói tanto! Cândida não foi para a capela. Ainda está ali a olhar aquele homem. Parece não compreender. Não compreendes, Cândida, mas a vida dói tanto! Por vezes, tentamos chegar a uma simples gaita-de-foles e não podemos, e isso é tão doloroso! Mas Cândida não sabia, ela era demasiado nova e, na juventude, toda a dor são agruras da ficção: coisas que só se vêem nos filmes. Ela aproxima-se. Olha o seu companheiro nos olhos; parece não ligar ao ancião como se ele fosse apenas uma espécie de algo que estava na paisagem, mas não existia. Ela aproxima-se, baixa-se, debruça-se para o Viagente, estica a mão para a gaita-de-foles com facilidade e afasta-a um pouco dele. Os seus olhares fixados um no outro… e ela sorri. Cândida, afinal, sabia. Sabia que o (h)omem se aproveita dos que trabalham, porque é naturalmente oportunista; sabia que o (h)omem tende para o materialismo, porque ama o fácil e o vão; sabia que o (h)omem é um animal tendencialmente predador, que se socorre da sua inteligência para sugar ardilosamente todas as presas que o rodeiam; sabia que o (h)omem não perde o sono ao saber que explora o seu semelhante; sabia que o (h)omem não deixa viver o sonho de um mundo mais bonito. Aos poucos, o som vertical do “h” já não se ouve, por isso o omem nada significa. Sopra um silêncio triste e acobardado de onde se deveria sentir Humanidade. Cândida ri para os olhos tristes do Viagente, põe o pé na gaita-de-foles e parte-a. Porque o sabia. Sim, Cândida, tu sabias…

O Viagente reage, levanta-se e cresce para Cândida. O estalar fundo da companheira que lhe dera momentos de folia e harmonia estava também ali, estatelada – partida. Foste tu, Cândida, tu… Este tu caiu no pelourinho como uma chicotada que há muito não tinha lugar: era a condenação de toda uma gente que inquinara a possibilidade de ser de uma criança. Eles estão num tu que não existes. És simplesmente má. As palavras indignas do Viagente suavizam-se perante a injustiça de que foi vítima. Tu és má, sempre o foste desde o princípio. Tu és desprezível como todos os outros habitantes desta aldeia miserável. Sim, Cândida, não te sobra nada da criança que devias ser. Tu és a mesquinhez. O Viagente não chora, afronta Cândida. Eles estão sós: esta é a única purgação possível para estes dois seres, que mais uma vez se encontram numa bolha de um tempo não vivido. Afrontou-a, mostrou-a a si própria, como um espelho que queima ao reflectir a verdade. E ficaste só Cândida. Não tens o teu pai, nem o Pôncio para te apoiarem com a sua maldade egoísta. Estás só, aí, nua em ti, com um nada cheio de crueldade, que nem imaginavas ter. O ancião ainda observa atento a cena, agora com uma ligeira esperança num brilho esquecido do olhar. Tu sabias, Cândida, sempre soubeste, o que iam fazer a esse viajante e nada te fez parar. És vil, garota fingida! Aproxima-se ainda mais da miúda a mancar, mas não lhe bate. Vira-lhe as costas e recolhe os restos da gaita-de-foles. Não vales nada.

Cândida não se comove. Permanece como uma pedra, como se todas as palavras do Viagente viessem de um país estrangeiro do qual ela desconhecesse a língua. Por isso fica, enquanto ele se afasta no frio da tarde. À sombra da árvore, o ancião observa as cores escorrentes daquele quadro que agora se desmancha. Cândida não o vê; ele era um mendigo que decora a aldeia, mas que não existe enquanto pessoa; um adorno feio na vida bonita do dia-a-dia. O Viagente virou costas e partiu sem verter uma lágrima. Estava por dentro ressequido por uma dor desértica. Lá no fundo, imóvel como o carvalho que lhe servia de consolo, continuava o velho. De carnes gastas pela malícia humana, e por um desespero de impotência, ele estava ali, cínico e céptico. O Viagente saía da aldeia dolorosamente apoiado no seu cajado, passa pelo ancião e trocam um fugaz olhar impotente. Ele segue viagem para longe, para bem longe dali. Afasta-se. Cândida está parada, estanque no seu ser como uma inevitabilidade. Por momentos, o ancião viu-se projectado naquele homem que agora partia da aldeia amputado dos seus haveres, mas que levava nas suas mãos a gema da essência humana. Mas o ancião quer correr, quer alcançar o Viagente para lhe dizer… para lhe dizer “Tu podes fazer! Tu ainda acreditas, nunca deixes de acreditar! Esta aldeia, a minha aldeia já teve terras férteis e homens que as cultivavam, já teve crianças e país que as ensinavam…” E o Viagente vai… O ancião lançava o olhar para o alcançar, corria parado por baixo do carvalho, numa perseguição impossível. “Tu podes fazer! Podes fazer o que nunca fui capaz. Estes homens… esta criança… ainda há esperança! Fica… fica para lhes mostrar que a humanidade é imperfeita, mas vale a pena. Fica para lhes dizer que… que o egoísmo é o princípio da decadência! Fica, porque esta aldeia pode ser bela se cá morar um homem que sinta o sopro vertical do h como um vento que o faz viver.”

Nessa tarde que impertinentemente se mostrava húmida, o ancião relembrava os efeitos abrasivos que o viver lhe trouxera. Também ele um dia pensou que seria possível levar nas mãos um sorriso ternamente infantil e cheio. Porém, carregou um fardo, um fardo de inóspita vitalidade, que o homem tem no íntimo da sua imperfeição. E desacreditou: não mais tornou a ver nas pessoas a beleza, porque nunca a tiveram; não mais sentiu o afago de uma mulher, porque aqueles braços feminis o empurraram para a escuridão de um abismo… Buscou para sempre a sabedoria e a força na solidão daquele carvalho que fincara as suas raízes numa terra defeituosa. Viu-se a um espelho interior… o ancião via-se no Viagente como fora, mas que desistira de o ser.

Mas o Viagente vai. E segue, e anda, passo após passo, ofegando pelo caminho que tarda em vir, pois sabe que a beleza que um dia o velho negou está agora ali, dentro das suas mãos. Brilhante mas cristalinamente opaca, a gema que leva é toscamente bela: é essência de um homem bom, que todos os dias se faz na esperança de um sono interior.

Na distância do horizonte, avança um corcovado, fincando no chão a força do seu cajado; para trás fica rasgada na poeira a sombra de um homem erguido.

André Matias
Ricardo Oliveira

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