O Viagente fugia da aldeia à velocidade que o corpo espancado permitia. A estrada rasgava-se inconsolavelmente para diante. O horizonte, escondido pelo cume da montanha, era um já ali intocável. O caminho subia e o caminhante já tinha poucas forças: teria que continuar por um meio de transporte que lhe aliviasse o cansaço físico. Adiante, havia uma pequena paragem de autocarros que parecia abandonada. Era apenas uma tabuleta ferrugenta, um eucalipto seco, um poste de iluminação e um banco de madeira carcomida. Não tinha horário afixado. A noite já ia longa, e hoje já não voltava a passar a velha viatura de chiadeira. Por isso, o Viagente resolve repousar lá. Descansaria aí, e apanharia a carreira que, certamente, haveria de passar pela manhã para a cidade, onde vivia o José – aquele amigo que tanta falta lhe faz agora. Sentou-se no banco de madeira, à luz do poste e, enquanto tirava o diário, olhava para trás. Tinha de ficar ali à espera. Esperou o suficiente para se encontrar no eu que tem em si. Tinha de falar consigo. Abriu o seu precioso diário e começou a escrever.
Querida amiga:
Dor… Como me dói, amiga, tudo o que me aconteceu. Novamente escrevo-te, mas não com pertinência. Foi uma criança. Devia estar a fazer tudo menos a escrever. Uma menina… Ela estava no chão, tão indefesa e eu não a podia ajudar, mas quis. Não sei por que é que continuo com estes disparates. Quis porque devia ser assim, mas não é. Escrever não me serve de nada. Não evita que seja mal tratado. Sinto nojo de mim. Hesito. Maldita a hora em que tropecei num ser tão vil. Sinto repugnância de ser homem. Partilho com aquela gentalha o simples facto de vestir esta mesma palavra de conceito. Amiga, conheci uma menina que escondia indignidade. Sou um objecto de abordagem fácil. Merda, simplesmente. Para o mundo e para tudo. Fui estropiado. Ultrajado. Humilhado. Gozado. Roubado. Que morram todos… os homens, as mulheres, as aldeias, os cães. Nojo, sinto-me enjoado. Foi contigo, Cândida, que cantei aquela canção? Amiga, sabes qual é? Aquela que fala da bondade… Dor. Deixei na aldeia a minha humanidade. E agora estou aqui, sozinho contigo a meu lado, sem alguma vez te ter conhecido, ó sonho irreal. Cândida, pureza angélica, quem és tu? Onde estou eu no mundo? Na paragem de autocarro, de noite, só… Porquê, Cândida, por que é que te tornaram assim? Por que é que o Homem tem de fazer estas coisas? Por que é que tem de fazer sofrer os outros? A noite está fria, eu tenho frio, tenho frio porque me roubaram o calor da humanidade. Deixei-a contigo, Cândida… Onde a puseste? E tu, companheira amiga, sabes onde está? Onde está a humanidade da humanidade? Não sei, nem a quero. Simplesmente, eu não quero. Há tanta coisa que aprendi. Tanta moral que me ensinaram em casa, na Escola, nas conversas… Onde é que ela está? Quando é que ela deixa de ser palavras que se amontoam no lixo da acção humana? Não quero um dia poder imaginar que virei a ser como eles. Seria mau demais.
Querida amiga, foste tu que me disseste que o Homem era belo… Imaginaste-me uma humanidade inscrita desde os valores maiores. Eu acreditei, acreditei em tudo o que me tinhas dito. Mas não, enganaste-me… enganei-me! Nada do que me disseste existe. Apenas vejo um mundo de homens largados na sua estupidificação predatória. Não quero, eu não sou assim. Não quero pensar na possibilidade de me tornar num daqueles. Aqueles omens roubaram-me o mundo onde eles deviam habitar. Que homens são eles? Homens… porquê? Mas afinal tu estavas errada, amiga, eles são omens. Iguais aos homens. Bichos egocêntricos exploradores. Eu também sou omem? Igual a todos eles? Não, recuso-me a ser! Não quero ser jamais um (h)omem como estes! Sou carne da mesma carne, pensamento do mesmo pensamento, imagem da mesma imagem, mas não sou assim. Enoja-me concebê-lo; repudia-me acreditá-lo. Não posso crer que tenho nas minhas entranhas os ardis trapaceiros que me fazem (h)omem. Prefiro não sê-lo. Mais-quero ser como os animais que se comem abertamente numa humana selvajaria. Luto, porque a vida me dói. Não posso estar num mundo em que se regozijam com o meu infortúnio – não quero estar. Mas estou e sei que simplesmente é assim, porque o é… Mas sou e estou, porque sei que não é assim.
Não quero ser assim. Eu acredito. Acredito que a amizade é o que me faz viver e o que me indica o caminho. Já me sinto melhor. Agora estou contigo, José. Ainda me lembro, quando nós jogávamos ao berlinde na escola. Lembras-te? Lembro tão bem, nós no recreio a cavarmos a terra com as mãos e a funcionária (como é que se chamava?) sempre a implicar com as nossas mãos sujas e impróprias para as tarefas escolares. Tinhas aquele teu berlinde da sorte que nunca te consegui “rapar”, mas quase… sabes bem que tenho razão, e que fizeste batota. José, José… sempre foste um traquina. Limpavas-me todos os meus berlindes e eu tinha de pedir ao meu pai para comprar mais. Não, espera, não era nada assim: eu ganhava-os na promoção da lixívia, não era? Quando nós jogávamos, no recreio, a afinarmos pontaria à vida, (E que pontaria…) acertaste tão bem no meu berlinde como na minha amizade. Foi com o teu berlinde da sorte, não foi? Não, espera, agora me lembro, foi com o meu berlinde da sorte.
Depois deixámos os berlindes naquela caixa que guardavas por baixo da cama para podermos segurar as outras coisas que a vida nos vai pondo nas mãos. Crescemos, aprendendo palavras que condiziam com as coisas que ambos víamos: a realidade construía-se-nos próxima e semelhante – isso é tão bom. Foi nessa altura, acho eu, que soubemos o que queria dizer amizade e nunca mais esquecemos. Foi em tua casa, não foi? que cometemos a loucura de desafiar o mundo e toda a sua autoridade. Sim, lembro-me, José, foi no teu terraço. Roubámos um cigarro à tua mãe e fomos tossir para a eira. Loucura, amigo… loucura de ter um companheiro para fazer o que não se pode. Não fumávamos, não nos interessava fumar. Nem sequer sabíamos fumar. Soprávamos no cigarro, sem entender que era ao puxar que púnhamos a vida dentro nós. Ainda não a tínhamos. E agora? Já puxas nos cigarros? Há tanto tempo… também não é preciso: por vezes um sopro de nós sobre o momento, suspende-o eternamente. E nós fizemo-lo. Gritámos ao mundo, em conjunto, que podíamos ser adultos ainda que em corpo de criança, juntos, lado a lado para a tarefa ser mais leve e divertida. Companheiro, há quanto tempo… Ficaste para sempre gravado no meu primeiro cigarro. Estás na minha memória viva, que recordo todas as vezes em que me quero encontrar. Tropeço em ti, quando olho para trás e me quero ver. Estás sempre lá, com a mão no bolso para não perderes o berlinde da nossa amizade.
Querida companheira, a ti retorno mais uma vez, tu que te sentas sempre com o tempo das águas calmas para me ouvires. Já me sinto melhor, amiga; já me sinto melhor agora que estive com o José. A amizade é um cobertor quentinho, daqueles de pêlo macio que nos afagam e envolvem a pele num abraço de conforto. Sei que não valerá a pena voltar-me para o passado com a tristeza de uma folha de Outono quando cai para o chão húmido. Tenho o calor da humanidade em mim todas as vezes em que me sinto no mundo amparado pelos meus amigos (ainda que a sua presença seja quase espectral). Ando, caminho, avanço e confio que no ali está sempre um alguém muito querido, que me espera com a ternura de um abraço, mesclada com a fortaleza de um beijo. Sabes amiga, aqui desde esta carta que nos aproxima na distância a que estamos, eu pude ser feliz apesar de tudo, porque apesar de todas as coisas injustas que o homem faz, haverá sempre alguém com quem poderemos ser verdadeiros; alguém com quem possamos descansar do peso da maldade, como se ela fosse uma ilusão que ficasse lá fora (lá fora, onde a vida acontecesse, não cá dentro, onde eu sou com os meus amigos).
Pressinto que ainda existo para alguém e não apenas em mim, e muito menos para mim. Há quem ainda ponha mais um prato na mesa para me servir um caldo; há quem não vacile em estancar a sua vida, porque sabe que a minha se cruzou com ela. Já me sinto alegre, companheira, sinto-me útil por ir ajudar um amigo. Não há maior prazer na vida do que dar. Eu quero dar. Quero dar desde o mais íntimo de mim. Amiga, de todas as verdades que procuro, tenho, desde já, certeza de uma: a busca de felicidade, se isso importa alguma vez na vida de alguém, principia com a procura de amigos.
Estou calmo, mas não resignado; estou tranquilo, mas não apaziguado: o José precisa de mim, das minhas palavras, simplesmente da minha presença com olhos que ouvem. Estou a ir, José, já vou…
Minha amiga, beijo-te, com a confiança de um até breve…
E finalmente, pela manhã, chegou a camioneta.
André Matias
Ricardo Oliveira
2 comentários:
Òla Amigo...
Bem, parajá do-te os Parabéns a 2008 pois sou a primeira a estrear o teu blos neste ano. Que te traga muito amor, muita paz, mas Ricardo, principalmente, e se neces´sário, unicamente, saúde.ç Com saúde tens tudo.Eu sei o que te digo!Curte bués a vida, bués mesmo, porque isto não está para muito tempo...
E agora... tenho uma surpresa para ti... Fiz-te um poema... à muito que não escrevo poemas, as palavras não se soltam como antes, á mais facil a escrita fluida...
mas escrevi e aqui to vou deixar..
O poema vai-te surpreender. penso que pela negativa. Mas depois diz-me. Depois fica aqui tambem aqui o meu blog . Aparece. Beijokas.
Viver é sorrir!
A tristeza doi,é cruel.
É uma sensaçao de perda, de angustia de perdiçao,
É um ser nada sem nunca o ter sido
É ser um alguem que nunca se foi foi,
É chegar onde nunca se alcançou,
É sentir, o que nunca se sentio,
È chorar lágrimas que saem de dentro do coraçao
É cortarmos a alma com facas imaginárias
e arrancarmos a pele sem a sentirmos,.
É Sentir frio e calor ao mesmo tempo,
È chorar, é berrar, é amar, é sentir.
Tristeza eu sinto todos os dias...
Mas todos os dias também eu me sinto alegre!
Porque eu estou viva.
E viver é sorrir!
http://abrava.blogspot.com/Cris
Ola cota R e Andre...
Nao vou dizer grande coisa nem vou utilizar palavras tao ricas como as vossas, digo so:
PARABENS PELO VOSSO TRABALHO.
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