quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A imperfeição sem-ti(r)

“Estou aqui,"

Ouve-se o saibro misturado com brita a ser esmagado por debaixo de umas solas cansadas. José arrasta as pernas por entre os carros estacionados daquele parque improvisado. Irremediavelmente atrasado, irremediavelmente arredado. Suava. Era o nervoso miudinho de não ter conseguido estar onde queria, por ter sido obrigado a estar onde intrinsecamente não devia. Naquele momento, José não pensava em metafísicas distantes, estava apenas em sobressalto porque queria chegar. O parque de estacionamento parecia-lhe interminável, e aquela poeira fina e amarela que a brita soltava tornava o ambiente ríspido e seco. Terei fechado o carro? Não me lembro… não importa, dirias tu! Não importa, quando a urgência é grande e o valor das coisas facilmente muda face às exigências de um mercado que nenhuma bolsa consegue perspectivar.

Estou cheio de pó, e nem tive tempo para trocar de roupa… De camisa engomada e calça vincada, José chegava à praça ao cair do dia. Não estava incólume, mas as roupas não comprometiam o seu carácter. Aliás, aquela poeira tornava-o mais seu, trouxera-lhe aquele José que por momentos ficara encarcerado nas memórias de infância em que brincava livre com o Viagente. Sorriu para si, pensando na oportunidade estranha que um pó de brita pode dar à face das nossas vidas. O vento daquela tarde ia ondeando as bandeiras coloridas que anunciavam às gentes o festival de música. Eram grandes, azuis, vermelhas e verdes, com uma coloração viva e muito presente de um passado que começava a existir mesmo ali. Aos encontrões, avança praguejando por entre as gentes que animavam a festa. Decorria o festival de música, onde a Anabela e o Viagente o esperavam desde a manhã. Ele, no entanto, não os pudera acompanhar, visto que o cão do senhor engenheiro o mantivera prisioneiro do ofício pela eternidade daquele sábado.

As ruas principais que desembocavam na praça engalanaram-se com ameias de um cartão forte e com um cinzento à pistola que trazia a robustez granítica de outros tempos. Eram as antigas muralhas da cidade que nunca existiram. José não podia admirar o mundo em que entrara. Por toda a praça, estendiam-se barraquinhas, incensando o ar com perfumes que sabiam a outra época. Uma época que viera do passado, construída pela imaginação do homem do presente. José, amarrotado pelos encontrões incautos duns músicos que passavam alegremente, exasperava-se para se situar naquele local tão seu conhecido, mas agora tão alheio. Foi para junto do chafariz que ainda lançava água ao firmamento, porém as lajes que o circundavam estavam pintadas pela mão segura de um jovem com longos cabelos de artista. Ao lado dele, estava uma mulher com trajes largos, como um indício de liberdade, segurando uma caixa, onde os transeuntes, após terem contemplado um pouco de arte, a pagavam da forma que entendiam. Pedintes! Mas que gente é esta!? Onde andará a Anabela? E voltou a perfurar a multidão multicultural que desfilava pela praça. Se ao menos a mulher do engenheiro não fosse tão picuinhas!, queixava-se, enquanto avançava aos repelões por entre os diálogos que faziam canções, protagonizados pelos inúmeros músicos que davam vida ao festival.

Quase indiferente, imerso nos seus pensamentos e com o ligeiro travo amargo da culpa, José prosseguia ao encontro da esposa que nunca deixara de amar, mas que não sabia onde estava. O passo era largo, e o seu olhar fitava apenas a possibilidade de ver uma cabeça conhecida. Na praça turbilhonava um magote de gente.

A cidade estava em festa: havia música, pessoas, pregões antigos, e até mesmo o antigo amolador, que já estava reformado porque ninguém mais tinha tesouras para afiar, trouxera a sua pedra faiscante. Mas José não via a Anabela, e as pernas pesavam-lhe.

Entretanto, aqueles dois comparsas continuavam a correr todos os cantos mais insólitos do festival. A música proporcionava e empestava de um sentimento, muitas vezes sufocado, todas aquelas oficinas que francamente se abriam para que os visitantes as pudessem penetrar. Era festa. Uma festa conhecida e estranha para Anabela que dentro da sua casa coleccionava na memória alguns destes momentos que vivera na sua juventude. Estava esquecida. Não seria tanto ferrugem, que essa apenas deteriora os elementos, oxidando-os nas articulações, impedindo-os de mover. Era mesmo esquecimento, daquele que apaga da nossa mente as imagens e os cheiros que as coisas nos dão, genuinamente, para levarmos para casa e com elas fazermos a nossa vida. O Viagente percebia nos olhos de Anabela a sua felicidade, mas também compreendia o baço do seu olhar, não cristalino e transparente, pequena cortina que filtrasse alguma da amargura que dentro dela ia. Está a ser maravilhoso, não está? Sim… há muito que não me sentia assim! Estou a sentir novamente a força daqueles dezoito anos, daqueles momentos que vivi antes de entrar para a faculdade. Seria a candura e a simplicidade com que a ignorância esbofeteia no início de uma vida adulta, em que queremos ser homens sem deixar arrefecer o colo que nos abriga em criança? Por este andar, o José não deve demorar muito. É melhor ir procurá-lo, não? Anabela não quis responder. Não quis ser sincera, doendo, não quis ser hipócrita, mentindo. Simplesmente olhou para um outro lado, em busca de um qualquer músico que passasse, ou de um som mais exuberante que viesse de um instrumento mais exótico.

José tinha as pernas cansadas, pesadas, mas não derrotadas. Por isso, andou e foi para o meio do festival. Desistira efectivamente de fazer chamadas para o telemóvel e as mensagens que enviara continuavam a registar um recibo de não entrega. Pois bem… será mesmo à moda antiga, cerrando os dentes entre uma fúria controlável e um desespero assumido. Continuava. Seguia por entre as gentes que encenavam danças com um ligeiro perfume árabe, talvez dos tabacos que se queimavam na tenda diante. José passava, indiferente à influência árabe no seu conhecimento, ignorando a moura de cabelos negros e compridos, e olhos tristes que vendia as bijutarias dos desertos.

José punha-se em bicos de pés. Espreitava. Procurava a cabeça do amigo no cume da multidão. Procurar. Nada mais. Procurar. Era essa a única palavra que José tinha na sua cabeça. Curar. Palavra estranha que surgira assim, do nada ao José que era veterinário. Olha. Para o nada e vê ali num canto alguém que para o nada arremessava o baço dos olhos. Anabela?! Anabela?! Sim, sou eu. Anabela?! Sou eu... O Viagente larga das mãos a peça de artesanato que apreciava e olha. Então, José?! Estamos aqui! Aqui. Anabela estremece. Voltara a esse aqui por momentos longínquo. José finalmente vê-os e corre para lá. O Viagente abafa o amigo num abraço longo como a amizade. Estava a ver que não vinhas para o jantar!... Anabela, sorridente, distraía-se, observando uns alunos seus que se divertiam ao fundo. Pois é, pá! São as responsabilidades de um veterinário de sucesso, sorriu para o Viagente com o pensamento posto na distância de Anabela. Ela trazia rosas nas faces e a diversão no íntimo do seu olhar. José olhava-a para dentro quase entendendo, mas não desejando entender. “Que se passa contigo?”, pensou. “Não se passa nada, José, foi somente um jogo.”, ele não ouvia o que Anabela sentia; ela não sabia que fora um jogo que a corara, que a fizera sorrir. No rubor das faces dela guardavam-se as recordações. As recordações da tarde em que ela e o Viagente foram os melhores amigos. No calor dos seus olhos, ela ainda via o momento em que entrara para um saco com o Viagente para uma corrida de pares. À sua volta, dispunham-se jovens casais no topo de seu amor, cruzando as pernas por dentro dos sacos e tropeçando em beijos tão intermináveis como a juventude. Anabela e o Viagente também se tocavam nas pernas, porém o objectivo não era amarem-se, mas vencer a corrida. Logo à noite temos aqui um concerto fantástico!, cortou o Viagente para que José não olhasse mais a tarde que eles tinham passado. Todavia, ele via mais fundo nos olhos de Anabela. E lá estavam. Ela e o Viagente na dianteira da corrida, num movimento harmonioso como se se conhecessem desde o nascimento, como se houvesse uma união cosmológica que os juntasse, como se a relação humana fosse trilhada pela magia da espontaneidade.

José responde: Mas já não estão a acontecer imensos concertos agora?! Sim, mas logo… Ele não ouvia, olhava o troféu que Anabela acarinhava como a um filho. Eles ainda corriam na dianteira. Já quase no fim, esmoreceram a passada, porém venceram. Ela explodiu de alegria e ergueu a taça perante o júbilo do público. Depois, beijou a face do Viagente e esperou o seu beijo. Ele beijou-a e, por trás do seu rubor do esforço físico, nasceu-lhe um corado clandestino. Ela trazia ainda aquelas rosas nas faces e a diversão do jogo no íntimo do seu olhar: Vamos, estão ali a fazer um jogo muito divertido! Anda! e agarrando na mão do Viagente, puxa-o. Atrás, José acompanhou-os devagar e nulo.

José seguia atrás, assistindo à fuga da sua mulher que arrastava o amigo pela mão. Um pouco recuado, deixou que um comboio de gente se entrepusesse entre ele e os dois que caminhavam correndo de mão dada. José ficava para trás, esquecido na distância da ausência, como se ainda não tivesse regressado da consulta. Ele pára… pensou em desistir. Voltar para a clínica e curar o amor que os homens dedicam aos animais. Por momentos pensou em regressar. Regressar ao lugar antes da clínica onde Anabela estava, mas ela já lá ia, linda, escorregando agilmente pela confusão. José está parado e a distância entre eles cresce. No longe, o cabelo castanho dela, solto e livre como podiam ser os compromissos, trazendo o passado para perto de José. Por isso, diz: “Eu sei porquê, Anabela!” Ela volta-se para trás, falando desde o avelã dos seus olhos: “Anda! Não fiques para trás!” José foi, desajeitado naquele ambiente tão cheio.

Lá à frente, Anabela já se tinha inscrito para a nova aventura que estava prestes a começar. Era a “busca-da-chave”. “Eu sei porquê, Anabela! Espera por mim!” Era o busca-da-chave, Anabela e o Viagente estavam prestes a entrar em acção. O Viagente ainda olhou para o José, mas prontamente a mão suada do amigo e um sorriso compreensivo lhe disseram para ir com Anabela. Várias equipas poderiam participar. De um modo sucinto e simples, a tarefa a cumprir era fácil. O elemento feminino ficava dentro de um pipo, unicamente com a cabeça de fora. Esse pipo era fechado por um aloquete, cuja chave estava colocada num recipiente a alguns metros de distância: cabia ao elemento masculino encontrar essa chave. Está quase a começar o jogo. Ouviam-se risos: elas riam da sua figura; eles, vendados, riam contagiados porque simplesmente não percebiam o que se passava ali. Para o jogo resultar, só falta saber como os homens chegariam às chaves respectivas. Seriam elas, que gritando indicações, os conduziriam até lá e lhes diriam como regressar para a merecida libertação. Risos e mais risos. O ambiente era agradável, sobretudo pela boa disposição que pairava no ar. Adivinhavam-se momentos de hilaridade franca, de ridículos ternos, daqueles que se olham com a candura de um sentir-menino. Rir porque apenas tem graça, porque simplesmente não tem maldade. José via. Estava lá e ria-se com eles, começando a entender a magia do estar naqueles espaços.

O percurso que os homens tinham de percorrer não era totalmente plano, e pontualmente tinha alguns obstáculos para tão-só enobrecer aquela demanda, aquela libertação ansiada – sobretudo por elas que começavam a sentir o abafado do ar que o pipo teimava em não deixar sair.

Perfilados os cavaleiros ao longo de uma linha traçada no chão, preparavam-se para enfrentar a corrida. Jovens pertencentes à organização do festival tinham então vendado os olhos aos participantes masculinos que, sem a visão, ouviam uma amálgama indecifrável de vozes que gritavam de todos os ângulos e riam em todas as direcções. Todos estavam preparados. Elas no seu lugar pelo óbvio da situação; eles prontos para ouvir com a máxima atenção as coordenadas correctas para no menor espaço de tempo poder ir e vir. Alguns pares tinham pequenos grupos que os incentivavam, gritando pelos seus nomes; outros da plateia simplesmente riam, apontando para este ou para aquele – para o pormenor do que às apalpadelas no ar pretendia adivinhar antecipadamente o caminho, para o facto de a venda estar extremamente apertada no homem de camisola verde que lutava contra aquela dor imposta. O terreno que tinham de desbravar estava repleto de obstáculos, eles sabiam-no. Estavam completamente dependentes das vozes frágeis das donzelas que de dentro do pipo iriam ser a visão que agora não tinham.

O juiz ainda não dera ordem para se iniciar a busca da chave, mas todas já estavam aos gritos para que eles as identificassem por entre a multidão. Todas, menos Anabela, que permanecia em silêncio, falando com o Viagente desde a confiança que tinham trocado como dádivas ao longo daquele dia. O Viagente sabia-o, por isso permanecia; de olhos vendados como quem via através do avelã de Anabela. José também o sabia, mas já e ainda não ouvia o que Anabela dizia.

Três, dois, um… Soa o apito e o alarido começa. Depois do sinal do juiz, o jogo principia e os nobres cavaleiros seguem as ordens das belas donzelas. Todavia, aquilo era uma confusão: eles batiam uns nos outros, lançavam-se nos braços do público, iam contra as pipas onde as donzelas estavam, mas sem a chave que as resgatava, tropeçavam, caíam… E o povo ria, imensamente divertido com o espectáculo descomplexado que lhe ofereciam. José também sorria. Percebia. “Eu sei porquê, Anabela.” Ela falava quase em surdina, mas o Viagente ouvia e seguia confiante, contornando os obstáculos primorosamente. Não escutava mais nada, somente Anabela, como se ela fosse o centro do universo e seguia. Alguns desconfiavam. Aquele de certeza que vê! Não lhe puseram bem a venda… Contudo, o Viagente não via, apenas a tua voz, Anabela, indicando-me o caminho. O Viagente confia na voz da amiga. Além disso, sabe que é apenas um jogo; um momento de descontracção, um faz-de-conta consciente.

Chegou ao local onde estava a chave. Segue. Mais um pouco. É aí. Agora apanha a chave. Está em baixo. Ele escutava nitidamente. Recolheu a chave e deu meia-volta para resgatar a princesa da torre-prisão. Os outros ainda procuravam a voz da parceira sem a encontrarem. Por vezes, é difícil ouvir. Quando reparamos, já nem conhecemos a voz do companheiro que connosco caminha na vida. “Anabela, eu sei porquê.”, ouvia-se José que sai de rompante como se tivesse descoberto o sentido da sua existência. Dirige-se para uma tenda, onde compra um chapéu de trovador, condizendo em loucura com a sua camisa responsável. Cuidado!... “Eu sei porquê, Anabela!” O Viagente ouve José. Cuidado!, grita Anabela, para que o Viagente não conseguisse ouvir o amigo. Grita desesperada: À direita! e o pobre Viagente tropeça num tronco, estatelando-se no chão, sob as risadas das pessoas que comentavam: Estás a ver como ele não vê! Tão óbvio, tão evidente, tão instante, que não conseguiu evitá-lo. Aturdido pelo insólito, não pelo ter caído, mas pelo inoportuno suspender da marcha, o Viagente larga a chave da mão. Deixa-a cair, ocultando-se por entre o relvado crespo que cobria a terra. Ela olha para trás, vê o José e deixa cair os olhos para o chão. Eu sei Anabela, eu sei… nem sempre é fácil. Anabela fica ainda mais nervosa. Ela desesperava em gritinhos histéricos: Ali, ali! Apanha! Anda, vamos, não… por aí não… Não… afinal podes. Sempre… Pára, pára, à volta! Ele percebeu e semi-sorriu, embora um pouco dorido. E disse-lhe só com um sinal da mão: Tem calma, Anabela, nem sempre é fácil entender-te, quando não dizes tudo. Espera um pouco, eu já te vou salvar.

Entretanto, um outro cavaleiro passou e resgatou a donzela. O Viagente apalpando o chão meticulosamente, encontrou a chave e anunciou com o polegar erguido: Anda, Anabela, estou a ouvir-te. E ela, mais calma, olhou para trás onde encontrou o marido de sorriso desbragado, orgulhoso por baixo do seu novo chapéu, e orientou o Viagente até si: Vira à direita. Calma. Agora dá dois passos em frente. Agora ligeiramente à esquerda. Vem sempre.

No final, já sem a venda, o Viagente surpreende-se. Tinha ido tal como Anabela lhe dissera. Riram-se os dois, num plural a que se juntou mais um, numa trilogia em harmonia estranha, mas de solidez inabalável. Muito bem, muito bem… vocês são uns jogadores natos. Nascemos todos, de facto, para jogar esse ludismo forte e nem sempre humano que a vida nos vai impondo, todas as vezes em que temos de escolher. O Viagente ria, pendurado no José, com aquele chapéu. Esse chapéu foi bem escolhido! Assenta-te na perfeição! José condescende, troçando: Com esta camisa e as calças de vinco dá-me um ar realmente medieval, diz lá? e continua observando Anabela no horizonte do seu olhar que permanecia calada, um pouco transtornada e confusa até: Mas vocês quase venciam mais uma prova! São peritos nestas andanças… Muito jeitoso, reafirmava o Viagente. Anabela sorria apenas, ora comprometida pela sua performance menos conseguida por causa daquele olhar, ora porque estupefacta pelo adorno que o seu marido ostentava.

José exibia o seu troféu como se de um chapéu se tratasse. Não era só um simples chapéu de estilo mais antigo. Era o prémio de uma postura, de uma atitude, de uma esperança de ser assim… Mais valioso do que um qualquer troféu dado por uma vitória de um jogo tradicional. Perto deles juntavam-se os novos concorrentes, alguns deles repetentes. Afinal, podiam participar as vezes que quisessem sem que tivessem de pagar. Ali apenas se exigia boa-disposição e essa havia em fartura naquele final de tarde de sábado, na cidade.

Anabela, ainda olhando o local onde o Viagente tinha tombado, informa: A tua gaita-de-foles já deve estar pronta. Vamos buscá-la? Foram. Agora caminhando os três lado a lado, enfileirando somente quando a multidão não lhes permitia a marcha dessa forma. Boas tardes!, abre o Viagente num sorriso cúmplice com o velho galego que estava sentado num banco de madeira, consertando uma flauta. Ao lado, a mulher brincava com umas marionetas que o marido lhe havia oferecido no centro do seu amor. Dançando, aquelas, ao som tímido da flauta ainda sem ritmo. Boas tardes!, fez o galego, erguendo-se ligeiro, embora corcovando. Era um homem interessante sobretudo pelo que não transparecia. Escondido por entre uma normalidade entendida, era um homem como outro qualquer: não muito alto, talvez um pouco obeso, não tanto pela massa corporal, mas sim pela posição sistematicamente debruçada em si, que tinha para trabalhar. De seguida, recuperou a gaita-de-foles que lhe fora entregue pelo Viagente naquela manhã e deu-lha, em mãos, intacta e viva novamente. José, porque não quisera interromper, ia aos poucos percebendo aquela ida até a um homem que vinha quase desde o Finis Terrae para consertar. José hesita, e embora sabendo a correcção ortográfica, vacila porque vai compreendendo, se aquele galego consertava ou simplesmente concertava.

Assim sem mais palavras, entregou-a consertada para concertar, juntando o princípio e o fim num só harpejo que guardou para o Viagente, por modéstia e timidez. José olhava-o por baixo do seu trovar adiado. Olhava as mãos daquele artífice, que lhe cheiravam à terra e ao mar, bem no princípio de um, bem no final do outro… Finis Terrae… José não sabia, mas sentia… o termo da peregrinação para uns, o início da chegada para outros. José não sabia, mas sentia. Anabela estava parada atrás, suspensa bem na origem do que o levou para ela, quase, quase no vórtice da queda definitiva. “Anabela… dá-me a tua mão!” Ainda não, José, ainda há uma melodia a fazer para que saibas estar vivo sem que o sintas, vivendo por dentro, exprimindo para fora, porque tem de ser assim. O Viagente bafeja a gaita-de-foles, enchendo-a da vida que o animava. E José pensava: “Que mãos são essas, bom homem, que conhecem os mistérios da vida? Cheiram a terra e a mar. Ao fim que adormece no princípio da harmonia desejada.” Ouve-se o primeiro harpejo falado pelo Viagente. Uma vida que recomeça. “Como nós, Anabela, que podemos recomeçar. Porque eu percebi. Sei que te deixei a meio do caminho, algures entre o princípio e o fim, deixei-te, querida. Mas ainda há tempo, amor, ainda há tempo… Olha as mãos deste bom galego e deixa que ele concerte o nosso casamento. Deixa entrar o sabor a sal do mar e a aspereza fértil da terra… e um pouco de música. Sim, Anabela, um pouco de música para percebermos a magia do nosso amor.”

O Viagente entusiasma-se com o som conseguido e inicia uma música antiga, uma daquelas que vinha do tempo em que a Galiza e Portugal falavam a mesma língua. A sua companheira estava ali mais uma vez feita nas suas mãos. Aquelas mãos que sabem percorrer, que apertam as que sabem fazer, que abraçam as que sabem amar. O velho galego sorriu e a esposa brilhou no olhar para Anabela que voltava. Olhava fixamente para a marioneta que a Aurora tinha nas suas mãos. Dançava, a pequena boneca, suspensa pelos fios tensos que aquelas mãos pulsavam. O José via tudo, mas agora em si, por dentro, como que estando mais ali, como se tivesse agora mesmo efectivamente chegado. Anabela! Como são belas as tuas mãos…

Dentro daquela tenda, Aurora, a companheira do artesão, iluminava o espaço com toda a sua presença cheia, constante, revendo na realidade uma doçura entusiasmante. Enquanto brincava com a sua marioneta, deixava-se viver pelo som sempre presente da música. Anabela olhava o movimento das suas mãos, inebriantes. Aurora sorria, perto do seu homem que trabalhava a madeira e o couro para que a música existisse para os homens. Sorria, enquanto Anabela olhava para aquelas mãos que vivificavam a marioneta. Vertia-se um perfume a alfazema do campo, ainda com as suas pequenas flores violetas, ou roxas, não se sabe bem, porque já estão secas (talvez violetas, porque é um nome de uma flor e ajuda a intensificar o aroma)… Vinha da blusa de Aurora, talvez da largueza do seu decote, que permanecia ainda jovem. A saia comprida que vestia deixava-lhe apenas sugerir umas botas de couro, com um pouco de pele de lã para fazer feitio. Aurora sorria, derramando naquele ali um sempre estaticamente contínuo, propositado, para simplesmente acontecer.

Anabela continuava a ver aquela boneca a rodopiar ao som de uma melodia natural. Sentia nas suas mãos aquela música; fervilhava-lhe um sentir, como já não experimentava há muito. A marioneta continuava a dançar pelas mãos da Aurora, e Anabela abraça para si, junto ao seu peito, o ser daquela boneca. Dança também tu companheira, mulher-amante e o que vês neste aqui em que está o sabor dos lábios do teu outro em ti. O Viagente abraça de novo a sua gaita-de-foles, fala-lhe com um novo cumprimento de quem somente dormiu um pouco para descansar. Falava agora pelas suas mãos, acompanhando apenas. Anabela dança agora, gira em si, torna-se sua, por momentos para que fosse vista, tal como é.

José sente nas suas mãos de veterinário, agora mais quentes, um impulso. Sente a música, como se a terra lhe quisesse dizer, e o mundo lhe quisesse falar baixinho… olha para ali. Olhaste, José, sem hesitar. Eu sabia que nunca deixarias de olhar. Estás nas tuas mãos. Ele está nas tuas mãos. Sinto-te Anabela, dentro de mim; estira o teu corpo no tempo, e deixa-me ir nele… José sente nas mãos a música que o Viagente sustenta. Anabela dança. Há ali umas baquetas, como se quisessem ser o prolongamento do existir do José. Tocam num pequeno pedaço de madeira de cerejeira seco. Ritma as notas que saem daquele fole. Anabela dança, e acompanha com as suas mãos o metro que vem daquele pedaço de cerejeira. Ritma, rufa, sofre, José, deixa vir em ti o que lhe queres dizer. Gosto de ti, Anabela. Anabela sente.

As mãos do Viagente viajavam pela gaita-de-foles desvendando terras indescobertas. Eram as terras por descobrir do relacionamento entre os homens. Seria o vosso, José? Ele escutava o velho amigo de infância e fechava os olhos. Ouvia… “Que contas por dentro dessa tua melodia? É a minha história… a história que deixei adiada durante o meu passado. A história de um casamento com a profissão e deixar-te, Anabela… e depois, aquelas vezes todas em que chegava a casa, mas ainda não tinha regressado do emprego; e tu inventavas pequenos nadas para discutir. Nunca percebi por que razão discutíamos por nadas.” O Viagente galopava na melodia, enquanto Aurora desenhava nos movimentos da boneca o princípio de uma dança que Anabela ansiava. Era a dança da redenção.

José observava Anabela e, com as tais baquetas que estavam esquecidas em cima da bancada, enche a música com a percussão. “Discutíamos por nadas, Anabela. Deve ser essa a origem de todos os problemas entre os homens, quando alguém não entende que um nada pode não ser a causa de uma discussão, mas a consequência de uma atitude. Agora percebo, Anabela.” Ela, persuadida pelo gesto do marido, ergue da boneca que a boa galega movia, a dança que faltava. Então, o artífice larga a flauta para ver. Para ver aquela bela mulher bailar. Dançava como no dia do casamento. “Lembras-te, José? Foi assim que dançámos… Lembras-te? Sim, como me lembro, Anabela… Foi no dia do nosso casamento.” Eles lá estavam, os dois por entre todos aqueles convidados: os amigos, os necessários e os que ninguém sabia bem por que razão estavam ali. Eles lá estavam, no final da cerimónia, vendo nas crianças que brincavam, a promessa de felicidade eterna. Os dois, lado a lado, tocaram as mãos, trocaram carícias, brincando, e olharam-se. Olharam-se, subitamente a sós. Anabela continuava a ver aquela boneca a rodopiar ao som de uma melodia natural. Sentia nas suas mãos aquela música, fervilhava-lhe um sentir, como já não experimentava há muito. Olhavam-se sem medo de ir mais fundo, de desvendar o íntimo desconhecido de cada um e naufragar nele. Olharam-se em silêncio, como a verdade. Olharam-se dizendo todas as coisas que ficaram por dizer durante o namoro. Olharam-se, contando todas as histórias de amor que faltavam contar. “Ainda tenho tanto a dizer-te, Anabela!” Estavam sós, como se a humanidade não tivesse lugar ali, como se o amor fosse a pergunta amas-me? e a resposta amo-te! E José disse, olhando-a bem nos olhos, segurando-lhe a mão: Anabela, és o meu sonho, a minha felicidade! Nunca te vou deixar! Amo-te tanto! São promessas definitivas, como o não é a vida. E ela dizia: Nunca te deixarei! Amo-te tanto! Olham-se e sorriem, apertando as mãos para que nunca se abandonassem. Olham-se. Anabela dança e olha José.

A marioneta continuava a dançar pelas mãos da Aurora, e Anabela abraça para si, junto ao seu peito, o ser daquela boneca. José lembrava-se, e por isso, agarra numa caixa asturiana e permite que o seu eu lhe aconteça no toque das mãos. E falava, falava com as palavras misteriosas que a música guarda no seu interior. O Viagente abraça de novo a sua gaita-de-foles. Fala-lhe agora pelas suas mãos, acompanhando apenas. O Viagente, que já tocara por muitas paragens, sorria para o artesão que, compreendendo, lhe retribuía. “Desculpa, Anabela, desculpa. Tenho de te pedir uma vez mais. Desculpa. Sabes que, por vezes, a vida toma-nos tanto que nos esquecemos de viver. Mas eu estou aqui de novo. Este nosso amigo trouxe-me de volta para junto de ti!” Anabela dança agora, gira em si, torna-se sua, por momentos para que fosse vista, tal como é. As mãos continuam a dedilhar sincopadamente as notas de uma escala musicalmente de vida. A música espalha-se no ar, simples, terna, quente, sentida. Dança, Anabela, dança para ouvires os que te querem falar. Ela rodopiava ao redor do marido, enquanto as gentes que ladeavam o espectáculo improvisado, abriam em círculo para contemplarem os inusitados artistas. “Deixa, José, eu sei que estás aqui. Na verdade, sempre soube que nunca me deixaste. Só não sabia como dizer-te o quanto me magoavas. Mas deixa, amigo… sim, amigo, é como te sinto desde o dia em que te conheci. Deixa, porque sempre nos amámos, mesmo quando não sabíamos dizê-lo. És um bom homem, José, não peças desculpa. Vamos caminhar de mão dada, lado a lado, como me disseste naquele dia. Lembras-te?” Lembro-te! Lembrar?! Não posso lembrar o que nunca esqueci… vivo-o, sinto-o, torno-o, és meu… Eras dele, foste dele, és nele, Anabela. Disseram as palavras prometidas um no outro, ao outro, numa eternização momentânea. Um simples queres namorar comigo tornou-se infinito no sim que disseram naquele altar divinamente pagão, porque o amor que eles tinham ocupava o lugar de um deus qualquer. Lembras-te Anabela… lembro-me José, e tu? Responde-lhe uma lágrima quente que lhe escorre pelo rosto e lhes baptiza as mãos que se apertam. Choram, os dois, aquele um que eles são. Amor… amo-te! és minha, sou teu, estás em mim, volta. amo-te… Sussurravam-se palavras naquele momento, em que se viam ainda ali, naquele alto, naquele altar de pedra, a eternizar no instante o infinito do amor. Lembras-te… suspenso, sem adiar a vida que lhes corre nas mãos que se amam. Era uma igreja que tinha o céu como nave, e os altares dos santos tinham apenas os animais dos campos, e as flores das jarras ainda estavam quentes do sol de fim de tarde. Casaram-se no templo sagrado da amizade que tinham um pelo outro, naquela tarde de Verão quente em que cheirava a terra depois da chuva de pingos grossos que a faz renascer. És minha, és meu, prometo amar e respeitar-te, respeitar e amar-te até ao fim que é as nossas vidas.

Ela dançava por entre as palmas dos espectadores. Dançava junto à origem das lágrimas que se desprendiam dos olhos castanhos de Aurora. Sinto-te Anabela, dentro de mim; estira o teu corpo no tempo, e deixa-me ir nele… José sente nas mãos a música que o Viagente sustenta. Anabela dança. O Viagente já não sopra a gaita-de-foles e Aurora sabe. Aurora sabe que o amor prevalece quando as palavras são sopradas pelo amor. Esse sopro com que o Viagente insuflou a gaita-de-foles. Eles olham-se. Sorriem. Ainda não estão de mãos dadas, porque José segura as baquetas e Anabela dança, como no dia do casamento. Amas-me? Amo-te…

Sentindo que a sua missão terminava, ele sorria. Olhava o amigo que agora se largava loucamente num solo desesperado, implorando o teu amor, Anabela. “Não implores, José, já o tens, sempre o tiveste.” Depois, os dois olharam o Viagente com todo o carinho que o olhar humano consegue, e ele diz: “Sejam felizes!” “Sim, nós somos. Graças a ti! Faz uma boa viagem!” “Boa viagem para vocês também!” Todavia, a música ainda não terminara, embora o Viagente já não soprasse a gaita-de-foles; era uma música interminável como o amor entre parceiros eternos, uma música-viagem,

André Matias
Ricardo Oliveira

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