sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Da freeway, a vírgula de um andar em mim

que tanto me fez sorrir. Era uma música eterna, companheiros. Uma melodia sem fim ouvida desde o interior, como a vida que vai escorregando por nós. Olho-vos, desde a promessa de amor num lugar qualquer do passado até ao beijo que darão quando a música cessar. Caminho amparado novamente no meu cajado, caminho à luz tépida da lua de Verão e deixo um desejo que permanece ainda. Espreito-vos pela frincha de uma vírgula deixada ao acaso no tempo, uma vírgula que pausa a vida quando tem de ser, uma vírgula que sustenta a vida como este cajado. Por vezes, amigos, sabe bem parar… e olhar. Olhar e perceber quem somos, o que fazemos. Tentar descobrir o que nos faz viver enquanto existimos. Avanço. Estou parado, aparentemente sem movimento, quieto em mim, à medida que a vida lá fora passa e vai e me arrasta com ela. Amigos, vou-vos deixando na distância, articulando-me outro, numa situação outra, sendo todavia o mesmo diferentemente, porque em tudo o que me altera, e vocês mudaram-me, permaneço eu, continuamente, passeando ainda os dedos pela gaita-de-foles e olhando na imensidão da distância negra a esperança que me falta.


Ficou para trás, mas tão presente, tão agora, tão imenso em mim, como todos os pequenos momentos que guardo na minha memória. Por isso, escrevi-o com uma vírgula. Toda a minha vida tem sido feita com pequenas mas marcadas vírgulas, que me sustentam e me fazem homem quando olho para trás. E vou seguindo, companheiros, mesmo tendo ficado convosco, separando os momentos por vírgulas para que eu na vida seja sempre igual-outro; e vou, amparando o peso, que incha durante o caminho, com a robustez deste cajado. O tempo, na imensidão plena que cada um pode sentir, não tem pontos finais, nem parágrafos, nem frases grandes, truncadas com orações de gramática estéril. A vida tem uma frase, longa, eterna, minha, que se vai fazendo ancorada em passagens mais ou menos abruptas, mais ou menos sentidas. Um momento, uma vírgula. São pequenas pausas, ora de semínima, mínimas, às vezes de colcheia, por tão breves serem… outras vezes são pausas de semibreve, que nos fazem esperar quatro tempos, em quaternário, lembrando-nos que a vida tem de ter compassos de espera para que avancemos pelo ritmo vital.

Faço agora parágrafo, neste diário que tantas vezes me inscreve no tempo. Não porque queira, mas porque pontualmente temos de nos vergar a pequenos detalhes de convenções e acordos. Para que nos seja mais fácil viver, para que possamos ter uma bitola que nos auxilie. Por isso, condescendo, faço-o, e vou; riscando no papel pequenas vírgulas, quase que num despropósito nominal, numa reiteração desnecessária, pois toda a vírgula é fatidicamente pequena. Pena é que não a consigamos viver musicalmente em vida com o simples valor que ela tem. Um tempo. Breve. Calmo. Necessário. E lá estás tu, José, bom amigo, veterinário que aprendeu a curar-se do egoísmo da profissão; e tu Anabela, que soubeste ser mulher falando as palavras que te faltavam. Escuto-te e sorrio. A tua voz: Vira à direita. Calma. Agora dá dois passos em frente. Agora ligeiramente à esquerda. Vem sempre. Linda, quando soubeste pôr as palavras por dentro da emoção. Caminho. Escrevo, olhando a pequena vírgula que deixei quando dizia adeus em amizade àquelas duas pessoas.

Para trás continuo a estar eu, assim, como estou, mas mais perto de mim. Titubeiam-me as palavras, acho-as desprezíveis quando me olho para trás. De nada servem, de nada valem, se não foram ditas na altura exacta. Agora, nada valem, de nada me valem. José, Anabela, os dois, venham, venham, até mim, agora, sim, sim, agora, e sintam que fazem parte de mim em amizade e que por isso nenhuma vírgula se oporá a nós e viveremos em polissíndeto contínuo com um e de eterno. E escrevo, assim a olhar o vazio, a sair da cidade, a tentar perceber o que a vida tem para nos dar. Anda. A estrada está vazia… salpicada de branco ao centro e eu no meio. No centro do nada, no entre, em cima da vírgula que teimo em apelidar de cajado. Entre os momentos em que aconteço na existência que sou. Caminho para longe de vós, carregando-vos impossivelmente em mim, por isso não pude parar de tocar a vossa música, não pude desenhar um ponto final, porque afinal ele não existe no contínuo interminável desta música-viagem que somos enquanto existimos. A estrada enegrece o longe numa escuridão infinita. E apetece-me virgular a tua imensidão, curvar-te um pouco para mim. Travar o teu infinito e tornar-te minha, como se fosse possível ao Homem ter a Vida. Quero sentir-te. Pausar um pouco. Olhar para ser mais real a vida que “realmente” vivo. E depois, amar. Amar-te eternamente, a ti que nasces desde o sonho para acariciares a minha caminhada. Vou. O Viagente aproveita o nada que todas as noites nos trazem, o silêncio do frio, o tremor do ruído ao fundo, o parado que as pessoas fazem para recuperarem o dia que já não tarda.

A auto-estrada que passava por aquela cidade era uma das artérias mais movimentadas do país. Automóveis ligeiros e pesados, mercadorias e pessoas, aos montes, em corrupio passavam por ali. Por ali, o norte e o sul encontravam a sua ligação. Era de noite, madrugada, e não passava ninguém. Da estrada secundária em que estava erguia-se uma pequena vedação em arame, para proteger uma freeway de invasões de animais ou de pessoas. O silêncio descia sobre a solidão do Viagente. José, onde estás? Ausência. A vertigem da solidão penetrava pela distância intangível da estrada. Anabela?, grita. Porém, dentro do Viagente algo dizia para ultrapassar aquela cerca, num impulso quase suicida, inquestionavelmente irracional. Queria passar, sentir aquele terreno de ninguém, que tanta gente frequentava mas que realmente nunca podia estar. Não havia luzes ao fundo. O negro da freeway onde já se encontrava absorve o som para lá, para o lá onde dorme a angústia humana. “Acordaste e percebeste que estás só…” José? O Viagente olha para trás, mas a estrada está deserta como um caminho livre. As cores do festival que animavam a cidade eram sugadas pelo escuro infinito que o envolvia. “Aqui, no centro do nada, posso escolher o tudo que sou!” Olhava a recta interminável, vazia, quase nula, salpicada apenas pela luz pálida da lua. “O que vês?” Que voz era esta? Pára e roda sobre si mesmo para escutar. Fecha os olhos, a mesma escuridão. “O que vês?” “A liberdade de ir para onde quero. A liberdade de ser o que sou sem medo.” Ele estava só. “Mas estás sozinho.” A liberdade no caminho é leve e solta como a angústia de não o partilhar com quem quer caminhar connosco. O Viagente olhava para lá, como se fosse para depois, e via o negro, no princípio da angústia; voltava-se, não via a cidade no longe negro imensurável de uma outra angústia – aquela de não poder trazer o passado para o presente quando se está tão só.

A freeway alongava-se pelo espaço como uma estrada no tempo. O Viagente senta-se no descontinuado do traço branco ao meio. Senta-se de costas para o princípio, de frente para o fim. A estrada e ele. O alcatrão ainda está quente do castigo que o Sol e os pneus das viaturas lhe impuseram. Senta-se sem nada, deixando os seus pertences perto da tal vedação. Teme por não saber o que lhe pode surgir pelas costas. Sente-se tonto, aturdido pelo não movimento, pelo não barulho, pelo não nada. Roda, roda, roda, sozinho, e finalmente deita-se. Atrás de si, o negro do alcatrão; à sua frente, o negro do céu cravejado de pontos luminosos. Onde estou? No nada… nada, no nada… Como está, parece que debaixo de si tem o céu e que por momentos foi colado a um céu concreto, com alcatrão para que não pudesse dali fugir. Nada, no nada... e por isso grita: Nada!

Ele voltava a caminhar. “Para onde vais?” Quem fala? Talvez a tua voz a ti mesmo, ou talvez sejam as palavras do teu diário que quiseram ser vida e optaram por se fazer notar a ti, como a última companhia que te resta. Optaram, afinal, como tu optaste por te deixares em solidão. Ainda te lembras da companheira que não soubeste ter? Ele estava só, ansiando ouvir, talvez ouvir-te, amor, tu que moras já tão lá longe… “no interstício de duas vírgulas que desenhei sem habilidade na folha virgem da minha vida.” Onde estás?, grita finalmente, como se a liberdade de estar vivo o obrigasse a afirmar-se em face da inexistência que o circundava. Onde estás? Onde estás?, ouviu ecoar. Os outros dormem. Insónias, insónias de liberdade assaltam-nos tantas e tantas vezes. Só. No meio da freeway, onde os outros estão tantas vezes mas nunca o sentiram como seu.

A vertigem do nada impele o Viagente a sair dali. A sensação possível de se ser espezinhado pelo medo de nos vermos obriga-nos a recuar. Não queria ser pisado; não mais, não agora, não ali. A freeway continua deserta e nenhum veículo ousa interromper aquele momento de penitência. Levanta-se pesadamente, toma os seus haveres e avança. As palavras ecoam-lhe, como se tivessem ficado vivas nos seus ouvidos. Onde estás, onde estás, onde estás… esticando ao máximo umas reticências mortificadoras por não mais estancarem aquele zunido dentro dos seus ouvidos. A pé, sempre a pé, pela berma da estrada, retomara uma vez mais o seu caminho.
A solidão dói porque nos denuncia a nós mesmos. Onde estás? Ainda escutava a voz que ecoava pelo infinito da distância até ao nascente, onde os primeiros raios de sol espreitavam por trás das montanhas. E depois, ficamos sós, e quando voltamos a nós, tudo o que deixámos esquecido, no que fomos para os outros, regressa flagrantemente. Onde estás? O Viagente sente-se cansado, como se a sua existência lhe pesasse intensamente. As palavras continuam-lhe presentes, sempre ecoando. Onde estás, onde estás… Estás perdido agora no nada que as searas cortadas nos trazem; tens apenas a estrada que te leva e deixas-te ir. O Viagente caminhava para a nascente da voz, como se andasse para o princípio de si. Onde nos deixamos nos destroços dos dias que passam? Ao Viagente restava ele mesmo. Apoiado no seu cajado, prossegue a caminhada; como um peregrino procurando-se na paisagem que (ainda) não vê. A solidão é tudo o que resta ao homem, quando a vida deixa de ser intacta. Por isso, seguia. Onde estás? “Não sei. Não sei em que lugar existo e o que sobra dos outros em mim…” Caminhava em direcção ao oriente, calcando aquela freeway como a liberdade impossível de todos os caminhos que o homem deve poder ser. Estava só. Os ecos da sua fala, no longe, surgiam mais nítidos: … o que sobra dos outros em mim…

Ao lado direito da estrada, em cima de um pequeno monte, o escuro da noite deixa antever um cemitério. Muros de cal branca agarram perpetuamente um portão de ferro verde-ferrugem. Estava semi-aberto. Irresistivelmente, ele queria transpô-lo, como se procurasse no eco que ouvia a solução para si. Onde estás? Por isso, queria prosseguir por entre o cheiro das flores levemente orvalhadas pelo fresco matinal. Por isso, procurava no alguém que lá estaria uma resposta qualquer, uma explicação. Na parte de fora desse cemitério, ergue-se um carvalho grande como o tempo, com um tronco moído de tantos corpos ter visto passar. Faz sombra. Emudece. Em si tem uma bicicleta encostada, uma bicicleta antiga e já quase calcinada nas articulações que a fazem andar. O Viagente, olhando aquele cenário, ouve o eco mais forte. Não estava longe. Segue pelo caminho de terra batida, que nasce do cemitério. A bicicleta abandonada; o carvalho coberto pelo pó; o portão semi-aberto. Onde estás? Queres entrar mas tens medo, tens medo do escuro que o cemitério pinta na existência de cada homem. Onde estás, onde estás… O portão chia quando o Viagente o força para entrar. A solidão queima a vida como os raios de sol que brilham sobre o mármore do cemitério que surgia. Onde estás? Para trás ficava o imenso negro do tempo que foi. Impossivelmente, o Viagente olhou para trás. Ainda te atreves a chamá-los? “Onde ficaste tu, José, no impossível que vivi? E tu, Anabela, amiga desconhecida no tempo em que foste em mim?” Descansa. E a solidão que te sirva de companhia. Ecos de palavras que podiam ser tuas, Viagente, ou que são, mas que ainda não sabes. Ecos vindos de lá, desse cemitério, do lugar nascente de onde o sol agora emerge.

Ainda é de noite, ainda que se anteveja com brevidade a aurora de todos os dias. O cemitério organiza-se em duas grandes avenidas perpendiculares. Os talhões nascem do buxo verde e muito agreste, que teima em roçar quando a carreta passa carregada pelo caixão. Ao fundo, no topo, surge uma ara em pedra mármore branca. Não há nenhum templo, não há vestígios de nenhum deus, apenas lajes que calafetam as sepulturas. O Viagente inexplicavelmente entra. Entra porque tem de entrar. Entra porque está perto, entra porque sim, como se esse sim fosse a razão de se encontrar. Avança até ao centro do cemitério. Sente-se o cheiro do verde dos buxos e do fósforo que os corpos poderiam libertar. Vazio, cheio de gente. Morta. Numa campa, um idoso dobrado acariciava uma fotografia esbatida da mulher que ali jazia. Onde estás?, perguntava o velho. “Estou aqui!” Estás aí, sim… estás agora aqui. E o homem toca com os lábios o rosto molhado da fotografia: a companhia que te sobra és tu mesmo e tens-te aqui, onde tu estás agora; ouve-te, para que a solidão seja a tua companhia e o caminho para o outro.

Aproxima-se. Bom dia! Por aqui? Precisas de ajuda?, pergunta o Viagente. Tu ainda não sabias que há questões que levam a interrogação para depois do homem e que não podem, por isso, ser respondidas… Apenas o eco, gritando ajuda e um velho que se sentava ao lado da campa e olhava-te desde muito longe, desde o futuro que ainda não sabes. O Viagente abeira-se dele e senta-se sobre a terra húmida para ver melhor. E aqueles olhos claros, eram verdes?, da tua mulher que o observavam desde a fotografia quase morta; aqueles olhos fitavam-no como um passado que regressasse, um passado que afinal nunca terminou. O velho, de raro cabelo e barba grisalha, não falava. Esperava que as palavras do Viagente fizessem jus à despesa de uma resposta, porque na idade que representava havia que medir as despesas da vida, para que ela não pesasse desnecessariamente. “E há palavras, companheiro, que só podem ser ditas quando o sentimento as enche e o acto que eu sou as prolonga na minha existência…”

O Viagente estancou, olhou os fios lisos do cabelo castanho da mulher que acompanhava o velho e escutou na distância da montanha as palavras que ele tinha dito: …existência… ou seriam palavras do seu diário que ainda não tinha escrito? Estremeceu menos no frio matinal que agora era bafejado pelo sol. Via melhor o velho. Olhava o seu rosto. Na sua boca descansava um sorriso qualquer que estava gravado nas rugas. “Porque a vida é linda, jovem… quando somos amados pela mais bela mulher!” Ela também sorria. Guardava um sorriso para a vida na eternidade da sua presença ausente. Era um sorriso breve, como a delicadeza da sua face, um sorriso breve como o amor na vida do Viagente. O velho toca-lhe a face e ela sorri mais numa renovada fotografia, mais nítida, viva, como ela não podia estar. O Viagente estremece. Havia qualquer coisa sua naquela fotografia. “Dulce!”, gritou com a força da lembrança dos seus momentos mais doces que tinham ficado na sua vida antes de partir. “Dulce!” e o teu nome melodiava-se na eternidade do silêncio da montanha; dançava ao lado do sol, nítido e vivo; beijava a lua que se escondia por trás da claridade… “E o teu nome gritado por dentro da minha vida ecoa no meu silêncio e leva-me para onde não sei.” Não vale a pena!, sentencia o Viagente. A vida da tua mulher terminou e não deves perseguir o impossível aqui, a estas horas, porque só te vais magoar mais e mais. O velho segurava a lápide com uma ternura infantil; trazia um brilho louco no olhar, por isso não respondeu ao Viagente. Há certas verdades que temos de deixar que os jovens as descubram. Não podem ser ditas, têm de ser vividas e só então têm as palavras suficientes para as cumprirem. O Viagente ainda não sabia que o amor era maior do que a morte e que a vida pode cumprir-se num ritual, transcendendo-a. Ele ainda não sabia, por isso o velho não lhe podia dizer. Agarrou a sua mão e perguntou: És feliz? O Viagente recuou. Aquele toque, aquela pele que lhe parecia a sua, mas envelhecida, e tu, Dulce, naquela fotografia de uma senhora que desconhecia… Recuou, insistindo: Vamos, deixemos este lugar tão cheio de morte. Não deves esquecer a tua própria vida agora. Deves vivê-la! A face delicada da mulher foi acariciada pelo velho. Não respondeu. Tinha de dar tempo para que o Viagente encontrasse a paz com a sua própria existência e percebesse que a morte é quando nos esquecemos e não quando morremos. Já encontraste o que procuras?, questionou o velho. Procuras… ouviu-se. O Viagente não sabia responder. Porquê que caminhas tanto? Para onde vais? O velho, como já tinha ido, sabia que agora tinha de ficar, porque ali era o seu lugar, porque ali estava a sua companheira, ali descansava o amor e a vida que havia dentro dele.

O Viagente retirou a mão do aconchego da mão do velho e olhou novamente a lápide. A mulher chamava-se Dulce.
André Matias
Ricardo Oliveira

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A imperfeição sem-ti(r)

“Estou aqui,"

Ouve-se o saibro misturado com brita a ser esmagado por debaixo de umas solas cansadas. José arrasta as pernas por entre os carros estacionados daquele parque improvisado. Irremediavelmente atrasado, irremediavelmente arredado. Suava. Era o nervoso miudinho de não ter conseguido estar onde queria, por ter sido obrigado a estar onde intrinsecamente não devia. Naquele momento, José não pensava em metafísicas distantes, estava apenas em sobressalto porque queria chegar. O parque de estacionamento parecia-lhe interminável, e aquela poeira fina e amarela que a brita soltava tornava o ambiente ríspido e seco. Terei fechado o carro? Não me lembro… não importa, dirias tu! Não importa, quando a urgência é grande e o valor das coisas facilmente muda face às exigências de um mercado que nenhuma bolsa consegue perspectivar.

Estou cheio de pó, e nem tive tempo para trocar de roupa… De camisa engomada e calça vincada, José chegava à praça ao cair do dia. Não estava incólume, mas as roupas não comprometiam o seu carácter. Aliás, aquela poeira tornava-o mais seu, trouxera-lhe aquele José que por momentos ficara encarcerado nas memórias de infância em que brincava livre com o Viagente. Sorriu para si, pensando na oportunidade estranha que um pó de brita pode dar à face das nossas vidas. O vento daquela tarde ia ondeando as bandeiras coloridas que anunciavam às gentes o festival de música. Eram grandes, azuis, vermelhas e verdes, com uma coloração viva e muito presente de um passado que começava a existir mesmo ali. Aos encontrões, avança praguejando por entre as gentes que animavam a festa. Decorria o festival de música, onde a Anabela e o Viagente o esperavam desde a manhã. Ele, no entanto, não os pudera acompanhar, visto que o cão do senhor engenheiro o mantivera prisioneiro do ofício pela eternidade daquele sábado.

As ruas principais que desembocavam na praça engalanaram-se com ameias de um cartão forte e com um cinzento à pistola que trazia a robustez granítica de outros tempos. Eram as antigas muralhas da cidade que nunca existiram. José não podia admirar o mundo em que entrara. Por toda a praça, estendiam-se barraquinhas, incensando o ar com perfumes que sabiam a outra época. Uma época que viera do passado, construída pela imaginação do homem do presente. José, amarrotado pelos encontrões incautos duns músicos que passavam alegremente, exasperava-se para se situar naquele local tão seu conhecido, mas agora tão alheio. Foi para junto do chafariz que ainda lançava água ao firmamento, porém as lajes que o circundavam estavam pintadas pela mão segura de um jovem com longos cabelos de artista. Ao lado dele, estava uma mulher com trajes largos, como um indício de liberdade, segurando uma caixa, onde os transeuntes, após terem contemplado um pouco de arte, a pagavam da forma que entendiam. Pedintes! Mas que gente é esta!? Onde andará a Anabela? E voltou a perfurar a multidão multicultural que desfilava pela praça. Se ao menos a mulher do engenheiro não fosse tão picuinhas!, queixava-se, enquanto avançava aos repelões por entre os diálogos que faziam canções, protagonizados pelos inúmeros músicos que davam vida ao festival.

Quase indiferente, imerso nos seus pensamentos e com o ligeiro travo amargo da culpa, José prosseguia ao encontro da esposa que nunca deixara de amar, mas que não sabia onde estava. O passo era largo, e o seu olhar fitava apenas a possibilidade de ver uma cabeça conhecida. Na praça turbilhonava um magote de gente.

A cidade estava em festa: havia música, pessoas, pregões antigos, e até mesmo o antigo amolador, que já estava reformado porque ninguém mais tinha tesouras para afiar, trouxera a sua pedra faiscante. Mas José não via a Anabela, e as pernas pesavam-lhe.

Entretanto, aqueles dois comparsas continuavam a correr todos os cantos mais insólitos do festival. A música proporcionava e empestava de um sentimento, muitas vezes sufocado, todas aquelas oficinas que francamente se abriam para que os visitantes as pudessem penetrar. Era festa. Uma festa conhecida e estranha para Anabela que dentro da sua casa coleccionava na memória alguns destes momentos que vivera na sua juventude. Estava esquecida. Não seria tanto ferrugem, que essa apenas deteriora os elementos, oxidando-os nas articulações, impedindo-os de mover. Era mesmo esquecimento, daquele que apaga da nossa mente as imagens e os cheiros que as coisas nos dão, genuinamente, para levarmos para casa e com elas fazermos a nossa vida. O Viagente percebia nos olhos de Anabela a sua felicidade, mas também compreendia o baço do seu olhar, não cristalino e transparente, pequena cortina que filtrasse alguma da amargura que dentro dela ia. Está a ser maravilhoso, não está? Sim… há muito que não me sentia assim! Estou a sentir novamente a força daqueles dezoito anos, daqueles momentos que vivi antes de entrar para a faculdade. Seria a candura e a simplicidade com que a ignorância esbofeteia no início de uma vida adulta, em que queremos ser homens sem deixar arrefecer o colo que nos abriga em criança? Por este andar, o José não deve demorar muito. É melhor ir procurá-lo, não? Anabela não quis responder. Não quis ser sincera, doendo, não quis ser hipócrita, mentindo. Simplesmente olhou para um outro lado, em busca de um qualquer músico que passasse, ou de um som mais exuberante que viesse de um instrumento mais exótico.

José tinha as pernas cansadas, pesadas, mas não derrotadas. Por isso, andou e foi para o meio do festival. Desistira efectivamente de fazer chamadas para o telemóvel e as mensagens que enviara continuavam a registar um recibo de não entrega. Pois bem… será mesmo à moda antiga, cerrando os dentes entre uma fúria controlável e um desespero assumido. Continuava. Seguia por entre as gentes que encenavam danças com um ligeiro perfume árabe, talvez dos tabacos que se queimavam na tenda diante. José passava, indiferente à influência árabe no seu conhecimento, ignorando a moura de cabelos negros e compridos, e olhos tristes que vendia as bijutarias dos desertos.

José punha-se em bicos de pés. Espreitava. Procurava a cabeça do amigo no cume da multidão. Procurar. Nada mais. Procurar. Era essa a única palavra que José tinha na sua cabeça. Curar. Palavra estranha que surgira assim, do nada ao José que era veterinário. Olha. Para o nada e vê ali num canto alguém que para o nada arremessava o baço dos olhos. Anabela?! Anabela?! Sim, sou eu. Anabela?! Sou eu... O Viagente larga das mãos a peça de artesanato que apreciava e olha. Então, José?! Estamos aqui! Aqui. Anabela estremece. Voltara a esse aqui por momentos longínquo. José finalmente vê-os e corre para lá. O Viagente abafa o amigo num abraço longo como a amizade. Estava a ver que não vinhas para o jantar!... Anabela, sorridente, distraía-se, observando uns alunos seus que se divertiam ao fundo. Pois é, pá! São as responsabilidades de um veterinário de sucesso, sorriu para o Viagente com o pensamento posto na distância de Anabela. Ela trazia rosas nas faces e a diversão no íntimo do seu olhar. José olhava-a para dentro quase entendendo, mas não desejando entender. “Que se passa contigo?”, pensou. “Não se passa nada, José, foi somente um jogo.”, ele não ouvia o que Anabela sentia; ela não sabia que fora um jogo que a corara, que a fizera sorrir. No rubor das faces dela guardavam-se as recordações. As recordações da tarde em que ela e o Viagente foram os melhores amigos. No calor dos seus olhos, ela ainda via o momento em que entrara para um saco com o Viagente para uma corrida de pares. À sua volta, dispunham-se jovens casais no topo de seu amor, cruzando as pernas por dentro dos sacos e tropeçando em beijos tão intermináveis como a juventude. Anabela e o Viagente também se tocavam nas pernas, porém o objectivo não era amarem-se, mas vencer a corrida. Logo à noite temos aqui um concerto fantástico!, cortou o Viagente para que José não olhasse mais a tarde que eles tinham passado. Todavia, ele via mais fundo nos olhos de Anabela. E lá estavam. Ela e o Viagente na dianteira da corrida, num movimento harmonioso como se se conhecessem desde o nascimento, como se houvesse uma união cosmológica que os juntasse, como se a relação humana fosse trilhada pela magia da espontaneidade.

José responde: Mas já não estão a acontecer imensos concertos agora?! Sim, mas logo… Ele não ouvia, olhava o troféu que Anabela acarinhava como a um filho. Eles ainda corriam na dianteira. Já quase no fim, esmoreceram a passada, porém venceram. Ela explodiu de alegria e ergueu a taça perante o júbilo do público. Depois, beijou a face do Viagente e esperou o seu beijo. Ele beijou-a e, por trás do seu rubor do esforço físico, nasceu-lhe um corado clandestino. Ela trazia ainda aquelas rosas nas faces e a diversão do jogo no íntimo do seu olhar: Vamos, estão ali a fazer um jogo muito divertido! Anda! e agarrando na mão do Viagente, puxa-o. Atrás, José acompanhou-os devagar e nulo.

José seguia atrás, assistindo à fuga da sua mulher que arrastava o amigo pela mão. Um pouco recuado, deixou que um comboio de gente se entrepusesse entre ele e os dois que caminhavam correndo de mão dada. José ficava para trás, esquecido na distância da ausência, como se ainda não tivesse regressado da consulta. Ele pára… pensou em desistir. Voltar para a clínica e curar o amor que os homens dedicam aos animais. Por momentos pensou em regressar. Regressar ao lugar antes da clínica onde Anabela estava, mas ela já lá ia, linda, escorregando agilmente pela confusão. José está parado e a distância entre eles cresce. No longe, o cabelo castanho dela, solto e livre como podiam ser os compromissos, trazendo o passado para perto de José. Por isso, diz: “Eu sei porquê, Anabela!” Ela volta-se para trás, falando desde o avelã dos seus olhos: “Anda! Não fiques para trás!” José foi, desajeitado naquele ambiente tão cheio.

Lá à frente, Anabela já se tinha inscrito para a nova aventura que estava prestes a começar. Era a “busca-da-chave”. “Eu sei porquê, Anabela! Espera por mim!” Era o busca-da-chave, Anabela e o Viagente estavam prestes a entrar em acção. O Viagente ainda olhou para o José, mas prontamente a mão suada do amigo e um sorriso compreensivo lhe disseram para ir com Anabela. Várias equipas poderiam participar. De um modo sucinto e simples, a tarefa a cumprir era fácil. O elemento feminino ficava dentro de um pipo, unicamente com a cabeça de fora. Esse pipo era fechado por um aloquete, cuja chave estava colocada num recipiente a alguns metros de distância: cabia ao elemento masculino encontrar essa chave. Está quase a começar o jogo. Ouviam-se risos: elas riam da sua figura; eles, vendados, riam contagiados porque simplesmente não percebiam o que se passava ali. Para o jogo resultar, só falta saber como os homens chegariam às chaves respectivas. Seriam elas, que gritando indicações, os conduziriam até lá e lhes diriam como regressar para a merecida libertação. Risos e mais risos. O ambiente era agradável, sobretudo pela boa disposição que pairava no ar. Adivinhavam-se momentos de hilaridade franca, de ridículos ternos, daqueles que se olham com a candura de um sentir-menino. Rir porque apenas tem graça, porque simplesmente não tem maldade. José via. Estava lá e ria-se com eles, começando a entender a magia do estar naqueles espaços.

O percurso que os homens tinham de percorrer não era totalmente plano, e pontualmente tinha alguns obstáculos para tão-só enobrecer aquela demanda, aquela libertação ansiada – sobretudo por elas que começavam a sentir o abafado do ar que o pipo teimava em não deixar sair.

Perfilados os cavaleiros ao longo de uma linha traçada no chão, preparavam-se para enfrentar a corrida. Jovens pertencentes à organização do festival tinham então vendado os olhos aos participantes masculinos que, sem a visão, ouviam uma amálgama indecifrável de vozes que gritavam de todos os ângulos e riam em todas as direcções. Todos estavam preparados. Elas no seu lugar pelo óbvio da situação; eles prontos para ouvir com a máxima atenção as coordenadas correctas para no menor espaço de tempo poder ir e vir. Alguns pares tinham pequenos grupos que os incentivavam, gritando pelos seus nomes; outros da plateia simplesmente riam, apontando para este ou para aquele – para o pormenor do que às apalpadelas no ar pretendia adivinhar antecipadamente o caminho, para o facto de a venda estar extremamente apertada no homem de camisola verde que lutava contra aquela dor imposta. O terreno que tinham de desbravar estava repleto de obstáculos, eles sabiam-no. Estavam completamente dependentes das vozes frágeis das donzelas que de dentro do pipo iriam ser a visão que agora não tinham.

O juiz ainda não dera ordem para se iniciar a busca da chave, mas todas já estavam aos gritos para que eles as identificassem por entre a multidão. Todas, menos Anabela, que permanecia em silêncio, falando com o Viagente desde a confiança que tinham trocado como dádivas ao longo daquele dia. O Viagente sabia-o, por isso permanecia; de olhos vendados como quem via através do avelã de Anabela. José também o sabia, mas já e ainda não ouvia o que Anabela dizia.

Três, dois, um… Soa o apito e o alarido começa. Depois do sinal do juiz, o jogo principia e os nobres cavaleiros seguem as ordens das belas donzelas. Todavia, aquilo era uma confusão: eles batiam uns nos outros, lançavam-se nos braços do público, iam contra as pipas onde as donzelas estavam, mas sem a chave que as resgatava, tropeçavam, caíam… E o povo ria, imensamente divertido com o espectáculo descomplexado que lhe ofereciam. José também sorria. Percebia. “Eu sei porquê, Anabela.” Ela falava quase em surdina, mas o Viagente ouvia e seguia confiante, contornando os obstáculos primorosamente. Não escutava mais nada, somente Anabela, como se ela fosse o centro do universo e seguia. Alguns desconfiavam. Aquele de certeza que vê! Não lhe puseram bem a venda… Contudo, o Viagente não via, apenas a tua voz, Anabela, indicando-me o caminho. O Viagente confia na voz da amiga. Além disso, sabe que é apenas um jogo; um momento de descontracção, um faz-de-conta consciente.

Chegou ao local onde estava a chave. Segue. Mais um pouco. É aí. Agora apanha a chave. Está em baixo. Ele escutava nitidamente. Recolheu a chave e deu meia-volta para resgatar a princesa da torre-prisão. Os outros ainda procuravam a voz da parceira sem a encontrarem. Por vezes, é difícil ouvir. Quando reparamos, já nem conhecemos a voz do companheiro que connosco caminha na vida. “Anabela, eu sei porquê.”, ouvia-se José que sai de rompante como se tivesse descoberto o sentido da sua existência. Dirige-se para uma tenda, onde compra um chapéu de trovador, condizendo em loucura com a sua camisa responsável. Cuidado!... “Eu sei porquê, Anabela!” O Viagente ouve José. Cuidado!, grita Anabela, para que o Viagente não conseguisse ouvir o amigo. Grita desesperada: À direita! e o pobre Viagente tropeça num tronco, estatelando-se no chão, sob as risadas das pessoas que comentavam: Estás a ver como ele não vê! Tão óbvio, tão evidente, tão instante, que não conseguiu evitá-lo. Aturdido pelo insólito, não pelo ter caído, mas pelo inoportuno suspender da marcha, o Viagente larga a chave da mão. Deixa-a cair, ocultando-se por entre o relvado crespo que cobria a terra. Ela olha para trás, vê o José e deixa cair os olhos para o chão. Eu sei Anabela, eu sei… nem sempre é fácil. Anabela fica ainda mais nervosa. Ela desesperava em gritinhos histéricos: Ali, ali! Apanha! Anda, vamos, não… por aí não… Não… afinal podes. Sempre… Pára, pára, à volta! Ele percebeu e semi-sorriu, embora um pouco dorido. E disse-lhe só com um sinal da mão: Tem calma, Anabela, nem sempre é fácil entender-te, quando não dizes tudo. Espera um pouco, eu já te vou salvar.

Entretanto, um outro cavaleiro passou e resgatou a donzela. O Viagente apalpando o chão meticulosamente, encontrou a chave e anunciou com o polegar erguido: Anda, Anabela, estou a ouvir-te. E ela, mais calma, olhou para trás onde encontrou o marido de sorriso desbragado, orgulhoso por baixo do seu novo chapéu, e orientou o Viagente até si: Vira à direita. Calma. Agora dá dois passos em frente. Agora ligeiramente à esquerda. Vem sempre.

No final, já sem a venda, o Viagente surpreende-se. Tinha ido tal como Anabela lhe dissera. Riram-se os dois, num plural a que se juntou mais um, numa trilogia em harmonia estranha, mas de solidez inabalável. Muito bem, muito bem… vocês são uns jogadores natos. Nascemos todos, de facto, para jogar esse ludismo forte e nem sempre humano que a vida nos vai impondo, todas as vezes em que temos de escolher. O Viagente ria, pendurado no José, com aquele chapéu. Esse chapéu foi bem escolhido! Assenta-te na perfeição! José condescende, troçando: Com esta camisa e as calças de vinco dá-me um ar realmente medieval, diz lá? e continua observando Anabela no horizonte do seu olhar que permanecia calada, um pouco transtornada e confusa até: Mas vocês quase venciam mais uma prova! São peritos nestas andanças… Muito jeitoso, reafirmava o Viagente. Anabela sorria apenas, ora comprometida pela sua performance menos conseguida por causa daquele olhar, ora porque estupefacta pelo adorno que o seu marido ostentava.

José exibia o seu troféu como se de um chapéu se tratasse. Não era só um simples chapéu de estilo mais antigo. Era o prémio de uma postura, de uma atitude, de uma esperança de ser assim… Mais valioso do que um qualquer troféu dado por uma vitória de um jogo tradicional. Perto deles juntavam-se os novos concorrentes, alguns deles repetentes. Afinal, podiam participar as vezes que quisessem sem que tivessem de pagar. Ali apenas se exigia boa-disposição e essa havia em fartura naquele final de tarde de sábado, na cidade.

Anabela, ainda olhando o local onde o Viagente tinha tombado, informa: A tua gaita-de-foles já deve estar pronta. Vamos buscá-la? Foram. Agora caminhando os três lado a lado, enfileirando somente quando a multidão não lhes permitia a marcha dessa forma. Boas tardes!, abre o Viagente num sorriso cúmplice com o velho galego que estava sentado num banco de madeira, consertando uma flauta. Ao lado, a mulher brincava com umas marionetas que o marido lhe havia oferecido no centro do seu amor. Dançando, aquelas, ao som tímido da flauta ainda sem ritmo. Boas tardes!, fez o galego, erguendo-se ligeiro, embora corcovando. Era um homem interessante sobretudo pelo que não transparecia. Escondido por entre uma normalidade entendida, era um homem como outro qualquer: não muito alto, talvez um pouco obeso, não tanto pela massa corporal, mas sim pela posição sistematicamente debruçada em si, que tinha para trabalhar. De seguida, recuperou a gaita-de-foles que lhe fora entregue pelo Viagente naquela manhã e deu-lha, em mãos, intacta e viva novamente. José, porque não quisera interromper, ia aos poucos percebendo aquela ida até a um homem que vinha quase desde o Finis Terrae para consertar. José hesita, e embora sabendo a correcção ortográfica, vacila porque vai compreendendo, se aquele galego consertava ou simplesmente concertava.

Assim sem mais palavras, entregou-a consertada para concertar, juntando o princípio e o fim num só harpejo que guardou para o Viagente, por modéstia e timidez. José olhava-o por baixo do seu trovar adiado. Olhava as mãos daquele artífice, que lhe cheiravam à terra e ao mar, bem no princípio de um, bem no final do outro… Finis Terrae… José não sabia, mas sentia… o termo da peregrinação para uns, o início da chegada para outros. José não sabia, mas sentia. Anabela estava parada atrás, suspensa bem na origem do que o levou para ela, quase, quase no vórtice da queda definitiva. “Anabela… dá-me a tua mão!” Ainda não, José, ainda há uma melodia a fazer para que saibas estar vivo sem que o sintas, vivendo por dentro, exprimindo para fora, porque tem de ser assim. O Viagente bafeja a gaita-de-foles, enchendo-a da vida que o animava. E José pensava: “Que mãos são essas, bom homem, que conhecem os mistérios da vida? Cheiram a terra e a mar. Ao fim que adormece no princípio da harmonia desejada.” Ouve-se o primeiro harpejo falado pelo Viagente. Uma vida que recomeça. “Como nós, Anabela, que podemos recomeçar. Porque eu percebi. Sei que te deixei a meio do caminho, algures entre o princípio e o fim, deixei-te, querida. Mas ainda há tempo, amor, ainda há tempo… Olha as mãos deste bom galego e deixa que ele concerte o nosso casamento. Deixa entrar o sabor a sal do mar e a aspereza fértil da terra… e um pouco de música. Sim, Anabela, um pouco de música para percebermos a magia do nosso amor.”

O Viagente entusiasma-se com o som conseguido e inicia uma música antiga, uma daquelas que vinha do tempo em que a Galiza e Portugal falavam a mesma língua. A sua companheira estava ali mais uma vez feita nas suas mãos. Aquelas mãos que sabem percorrer, que apertam as que sabem fazer, que abraçam as que sabem amar. O velho galego sorriu e a esposa brilhou no olhar para Anabela que voltava. Olhava fixamente para a marioneta que a Aurora tinha nas suas mãos. Dançava, a pequena boneca, suspensa pelos fios tensos que aquelas mãos pulsavam. O José via tudo, mas agora em si, por dentro, como que estando mais ali, como se tivesse agora mesmo efectivamente chegado. Anabela! Como são belas as tuas mãos…

Dentro daquela tenda, Aurora, a companheira do artesão, iluminava o espaço com toda a sua presença cheia, constante, revendo na realidade uma doçura entusiasmante. Enquanto brincava com a sua marioneta, deixava-se viver pelo som sempre presente da música. Anabela olhava o movimento das suas mãos, inebriantes. Aurora sorria, perto do seu homem que trabalhava a madeira e o couro para que a música existisse para os homens. Sorria, enquanto Anabela olhava para aquelas mãos que vivificavam a marioneta. Vertia-se um perfume a alfazema do campo, ainda com as suas pequenas flores violetas, ou roxas, não se sabe bem, porque já estão secas (talvez violetas, porque é um nome de uma flor e ajuda a intensificar o aroma)… Vinha da blusa de Aurora, talvez da largueza do seu decote, que permanecia ainda jovem. A saia comprida que vestia deixava-lhe apenas sugerir umas botas de couro, com um pouco de pele de lã para fazer feitio. Aurora sorria, derramando naquele ali um sempre estaticamente contínuo, propositado, para simplesmente acontecer.

Anabela continuava a ver aquela boneca a rodopiar ao som de uma melodia natural. Sentia nas suas mãos aquela música; fervilhava-lhe um sentir, como já não experimentava há muito. A marioneta continuava a dançar pelas mãos da Aurora, e Anabela abraça para si, junto ao seu peito, o ser daquela boneca. Dança também tu companheira, mulher-amante e o que vês neste aqui em que está o sabor dos lábios do teu outro em ti. O Viagente abraça de novo a sua gaita-de-foles, fala-lhe com um novo cumprimento de quem somente dormiu um pouco para descansar. Falava agora pelas suas mãos, acompanhando apenas. Anabela dança agora, gira em si, torna-se sua, por momentos para que fosse vista, tal como é.

José sente nas suas mãos de veterinário, agora mais quentes, um impulso. Sente a música, como se a terra lhe quisesse dizer, e o mundo lhe quisesse falar baixinho… olha para ali. Olhaste, José, sem hesitar. Eu sabia que nunca deixarias de olhar. Estás nas tuas mãos. Ele está nas tuas mãos. Sinto-te Anabela, dentro de mim; estira o teu corpo no tempo, e deixa-me ir nele… José sente nas mãos a música que o Viagente sustenta. Anabela dança. Há ali umas baquetas, como se quisessem ser o prolongamento do existir do José. Tocam num pequeno pedaço de madeira de cerejeira seco. Ritma as notas que saem daquele fole. Anabela dança, e acompanha com as suas mãos o metro que vem daquele pedaço de cerejeira. Ritma, rufa, sofre, José, deixa vir em ti o que lhe queres dizer. Gosto de ti, Anabela. Anabela sente.

As mãos do Viagente viajavam pela gaita-de-foles desvendando terras indescobertas. Eram as terras por descobrir do relacionamento entre os homens. Seria o vosso, José? Ele escutava o velho amigo de infância e fechava os olhos. Ouvia… “Que contas por dentro dessa tua melodia? É a minha história… a história que deixei adiada durante o meu passado. A história de um casamento com a profissão e deixar-te, Anabela… e depois, aquelas vezes todas em que chegava a casa, mas ainda não tinha regressado do emprego; e tu inventavas pequenos nadas para discutir. Nunca percebi por que razão discutíamos por nadas.” O Viagente galopava na melodia, enquanto Aurora desenhava nos movimentos da boneca o princípio de uma dança que Anabela ansiava. Era a dança da redenção.

José observava Anabela e, com as tais baquetas que estavam esquecidas em cima da bancada, enche a música com a percussão. “Discutíamos por nadas, Anabela. Deve ser essa a origem de todos os problemas entre os homens, quando alguém não entende que um nada pode não ser a causa de uma discussão, mas a consequência de uma atitude. Agora percebo, Anabela.” Ela, persuadida pelo gesto do marido, ergue da boneca que a boa galega movia, a dança que faltava. Então, o artífice larga a flauta para ver. Para ver aquela bela mulher bailar. Dançava como no dia do casamento. “Lembras-te, José? Foi assim que dançámos… Lembras-te? Sim, como me lembro, Anabela… Foi no dia do nosso casamento.” Eles lá estavam, os dois por entre todos aqueles convidados: os amigos, os necessários e os que ninguém sabia bem por que razão estavam ali. Eles lá estavam, no final da cerimónia, vendo nas crianças que brincavam, a promessa de felicidade eterna. Os dois, lado a lado, tocaram as mãos, trocaram carícias, brincando, e olharam-se. Olharam-se, subitamente a sós. Anabela continuava a ver aquela boneca a rodopiar ao som de uma melodia natural. Sentia nas suas mãos aquela música, fervilhava-lhe um sentir, como já não experimentava há muito. Olhavam-se sem medo de ir mais fundo, de desvendar o íntimo desconhecido de cada um e naufragar nele. Olharam-se em silêncio, como a verdade. Olharam-se dizendo todas as coisas que ficaram por dizer durante o namoro. Olharam-se, contando todas as histórias de amor que faltavam contar. “Ainda tenho tanto a dizer-te, Anabela!” Estavam sós, como se a humanidade não tivesse lugar ali, como se o amor fosse a pergunta amas-me? e a resposta amo-te! E José disse, olhando-a bem nos olhos, segurando-lhe a mão: Anabela, és o meu sonho, a minha felicidade! Nunca te vou deixar! Amo-te tanto! São promessas definitivas, como o não é a vida. E ela dizia: Nunca te deixarei! Amo-te tanto! Olham-se e sorriem, apertando as mãos para que nunca se abandonassem. Olham-se. Anabela dança e olha José.

A marioneta continuava a dançar pelas mãos da Aurora, e Anabela abraça para si, junto ao seu peito, o ser daquela boneca. José lembrava-se, e por isso, agarra numa caixa asturiana e permite que o seu eu lhe aconteça no toque das mãos. E falava, falava com as palavras misteriosas que a música guarda no seu interior. O Viagente abraça de novo a sua gaita-de-foles. Fala-lhe agora pelas suas mãos, acompanhando apenas. O Viagente, que já tocara por muitas paragens, sorria para o artesão que, compreendendo, lhe retribuía. “Desculpa, Anabela, desculpa. Tenho de te pedir uma vez mais. Desculpa. Sabes que, por vezes, a vida toma-nos tanto que nos esquecemos de viver. Mas eu estou aqui de novo. Este nosso amigo trouxe-me de volta para junto de ti!” Anabela dança agora, gira em si, torna-se sua, por momentos para que fosse vista, tal como é. As mãos continuam a dedilhar sincopadamente as notas de uma escala musicalmente de vida. A música espalha-se no ar, simples, terna, quente, sentida. Dança, Anabela, dança para ouvires os que te querem falar. Ela rodopiava ao redor do marido, enquanto as gentes que ladeavam o espectáculo improvisado, abriam em círculo para contemplarem os inusitados artistas. “Deixa, José, eu sei que estás aqui. Na verdade, sempre soube que nunca me deixaste. Só não sabia como dizer-te o quanto me magoavas. Mas deixa, amigo… sim, amigo, é como te sinto desde o dia em que te conheci. Deixa, porque sempre nos amámos, mesmo quando não sabíamos dizê-lo. És um bom homem, José, não peças desculpa. Vamos caminhar de mão dada, lado a lado, como me disseste naquele dia. Lembras-te?” Lembro-te! Lembrar?! Não posso lembrar o que nunca esqueci… vivo-o, sinto-o, torno-o, és meu… Eras dele, foste dele, és nele, Anabela. Disseram as palavras prometidas um no outro, ao outro, numa eternização momentânea. Um simples queres namorar comigo tornou-se infinito no sim que disseram naquele altar divinamente pagão, porque o amor que eles tinham ocupava o lugar de um deus qualquer. Lembras-te Anabela… lembro-me José, e tu? Responde-lhe uma lágrima quente que lhe escorre pelo rosto e lhes baptiza as mãos que se apertam. Choram, os dois, aquele um que eles são. Amor… amo-te! és minha, sou teu, estás em mim, volta. amo-te… Sussurravam-se palavras naquele momento, em que se viam ainda ali, naquele alto, naquele altar de pedra, a eternizar no instante o infinito do amor. Lembras-te… suspenso, sem adiar a vida que lhes corre nas mãos que se amam. Era uma igreja que tinha o céu como nave, e os altares dos santos tinham apenas os animais dos campos, e as flores das jarras ainda estavam quentes do sol de fim de tarde. Casaram-se no templo sagrado da amizade que tinham um pelo outro, naquela tarde de Verão quente em que cheirava a terra depois da chuva de pingos grossos que a faz renascer. És minha, és meu, prometo amar e respeitar-te, respeitar e amar-te até ao fim que é as nossas vidas.

Ela dançava por entre as palmas dos espectadores. Dançava junto à origem das lágrimas que se desprendiam dos olhos castanhos de Aurora. Sinto-te Anabela, dentro de mim; estira o teu corpo no tempo, e deixa-me ir nele… José sente nas mãos a música que o Viagente sustenta. Anabela dança. O Viagente já não sopra a gaita-de-foles e Aurora sabe. Aurora sabe que o amor prevalece quando as palavras são sopradas pelo amor. Esse sopro com que o Viagente insuflou a gaita-de-foles. Eles olham-se. Sorriem. Ainda não estão de mãos dadas, porque José segura as baquetas e Anabela dança, como no dia do casamento. Amas-me? Amo-te…

Sentindo que a sua missão terminava, ele sorria. Olhava o amigo que agora se largava loucamente num solo desesperado, implorando o teu amor, Anabela. “Não implores, José, já o tens, sempre o tiveste.” Depois, os dois olharam o Viagente com todo o carinho que o olhar humano consegue, e ele diz: “Sejam felizes!” “Sim, nós somos. Graças a ti! Faz uma boa viagem!” “Boa viagem para vocês também!” Todavia, a música ainda não terminara, embora o Viagente já não soprasse a gaita-de-foles; era uma música interminável como o amor entre parceiros eternos, uma música-viagem,

André Matias
Ricardo Oliveira

terça-feira, 14 de outubro de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

aCordar

Apetecia-lhe, simplesmente. Queria, nada mais. Ela estava a dormir, mas isso não importava. O corpo dele imperava agora e exigia satisfação. Não seria bruto, mas não abdicaria do seu vigor. Anabela, vais ser dele, por momentos, mesmo que tenhas de acordar. As mãos gotejaram da cara para os ombros levando consigo, arrastadas, as alças da camisa de dormir. Era de seda, muito macia, e de cor branca levemente transparente que deixava antever o peito de Anabela. Quer aquele corpo, e agora, não sei bem porquê. Eram cinco da madrugada; José queria compensar o seu cansaço com um pedaço de sexo servido ali mesmo, sem nada, sem ambiente nem contexto. Quer ouvir a Anabela a gemer, gemer de prazer e até mesmo de dor. Simplesmente. Quer vê-la nua, intensa, cheia. Sentir-lhe a pele quente, o intenso dos gritos, o ritmo do ranger da cama e os arranhões daquelas unhas que, tantas vezes, ele não entendia para quê de tanto cuidado. Estava ali deitada, ao seu lado. Agarrava-a agora pelas ancas, encostando-se contra ela até sentir no seu corpo o seu sexo, agora cúmplice e ansioso por a encontrar. Anabela já sem a tal camisa virara-se não de costas para José, expondo toda a sua beleza de fêmea felina, de pele morena e cálida, comestível. Queria-a. Trincou-a até soltar um grito de dor.

            Estava cansado. E disse-lhe que não. Afinal não valeria a pena. Que voltasse a dormir. Mãos pela pele, pelos peitos, pelos cabelos, mãos ao encontro de mãos que se desencontravam nas costas do outro. Boa noite! Boa noite, amor! José já dormia, mas Anabela que tinha sido desperta, velava o amor que sentia. Aqueles cumprimentos surgiram secos. Um, gasto pela aridez da rudeza de carácter; o outro, definhado por uma frieza de ausência e de solidão. Aquela mulher ali, deitada, como se tivesse sido abandonada e preterida, sente no lugar que o marido ocupa um vazio que a diminui – tanto e tanto que chega a questionar os seus atributos de mulher. Por vezes, Anabela, o amor tem destas coisas. Sabes, os homens ainda não aprenderam a amar. É difícil amar sem tropeçar em atitudes estúpidas. Sabes, Anabela, quando a felicidade foi distribuída pelas pessoas, houve algumas que a colheram às pazadas e outras, distantes no amontoado que se fazia, ficaram atrás à espera das migalhas que lhes cabiam. Por vezes, as pessoas fazem coisas estúpidas. O Homem não sabe amar. Não o merecias, Ana que cada vez mais vais perdendo o final do teu nome.

O tilintar da louça na cozinha desperta o Viagente que repousara com o conforto há muito não tido. Um esquivo raio de sol perpassava pela persiana fechada, culminando na doçura do tapete. Ainda dorido, levanta-se e abre a janela. Estava uma manhã soalheira de azul profundo e interminável. O Viagente inspira a suave brisa matinal daquele Sábado, enquanto, na cozinha, as louças se agitavam bruscamente. Ele pára, reflecte sobre as palavras que José lhe havia confiado na noite anterior. A cafeteira atirada para o fogão e a voz de Anabela que praguejava. A manhã tinha há muito começado para ela, mas só agora é que se levantara para preparar o pequeno-almoço. O rádio tocava as oito e meia, noticiando as principais novidades que numa manhã de Sábado, igual a tantas outras, poderiam acontecer.

O Viagente olha o céu e a distância daquele azul limpo. Estava um belo dia para celebrar, mas na cozinha não havia sol e o azul celeste escondia-se atrás de uma nuvem. Veste-se e desce. Anabela estava sentada com a cabeça entre as mãos, a janela fechada e o leite a ferver. Bom dia, Anabela! Bom dia! Ela ergue o olhar. Olhar de quem não dormira, olhar desvairado daqueles que buscam o que, muitas vezes, nem eles próprios sabem… um olhar triste e cansado. Já acordado? O Viagente acorda, não ouvira o que se tinha passado durante a noite, pois o quente de uma cama e a comodidade que essa sensação comporta são pequenos pormenores que devem ser saboreados em plenitude. Dormira, para sempre… O leite fervia atrás, transbordara e o gás, por ele apagado, adensava o ar. O Viagente desliga o fogão e abre a janela perante a impassividade da dona da casa que estagnava, despenteada, observando a parede.

O José tinha saído cerca de meia hora antes para ir ver o seu paciente canídeo: havia dados para analisar, uma pequena festa para fazer. É dever de qualquer veterinário confirmar se o animal tinha passado bem a noite, se inspirava cuidados de maior. Por isso, foi. Disse que assim que pudesse voltava para ir à tal feira, seguindo o programa que tinham delineado.

A Anabela sentia-se perdida na cozinha que ela própria tinha decorado. Os móveis pareciam-lhe vazios e baços, ainda que tivessem os serviços que comprara meses antes de casar; o chão estava frio, embora passadeiras o atapetassem ricamente. As bancadas estavam nuas, e nem os electrodomésticos que nelas estavam arrumados lhe conferiam o movimento e utilidade que mereciam. Havia apenas um silêncio profundo e um frio de gelo absoluto. O Viagente, quando entrar na cozinha, saudando Anabela, sentiu nas palavras da esposa de José esse mesmo frio e um vazio no estar. Era linda a mulher que agora se levantava para segurar um sorriso ao Viagente; era o sorriso que se entrega aos estranhos, quando o nosso mundo está em turbilhão, mas que ninguém deve perceber. Despenteada, sorri, nos seus olhos-avelã, sufocando as lágrimas. Ele viu naquela cara, ainda ensonada, a mesma expressão de desconforto que na noite anterior ela tinha desenhado depois da discussão. O Viagente relembrava-a, ontem, linda e magnífica, como sempre. Com uma maquilhagem de palavras e sorrisos, ela tentou agora disfarçar uma ou outra lágrima que descuidadamente verteu dos seus olhos. Mesmo estando na sua casa, a presença de um estranho deixava aquela mulher desconfortável e sem jeito. No início, o Viagente fingiu não ter visto aquele cenário. A frase quase sempre limpa Está um lindo dia é demasiado óbvia para quem ouve. Certamente percebeu alguma coisa durante a madrugada. Valha-me Deus… depois daquela cena antes do jantar, só faltava mesmo isso, pensavas para ti. Mas ele não ouviu nada; tinha dormido como uma pedra e a sua justeza não permitiria tal afronta. O Viagente com aquela frase apenas queria aliviar um certo ar pesado. Anabela ainda assim era formidável. Passou a mão pela cara e pelo cabelo, declarando: De vez em quando não consigo dormir e, depois, fico neste estado que vês e sorriu. Sorriu com as forças que vêm do fundo do sofrimento. Um sorriso de vencedor depois de uma derrota. Um sorriso de uma mulher soberba.

O Viagente contemplava… Ana era uma mulher magnífica, Bela, concebida no pecado feliz da Natureza. O pijama que trazia era leve como ela tinha sido. Estava em calções, exibindo a perfeição escultural das pernas, e o top colado cingia-lhe o redondo dos seios livres. O Viagente contemplava. Uma mulher, ali, lindíssima, que impotentemente deixava macular a sua beleza pelas facécias que a vida nos impinge. Ele sabia-o: sabia porque também é um homem como todos os outros; sabia porque sente que a vida vivida com intensidade nos arrasta para onde só os outros é que podem cair; sabia porque era por isso que ali estava – para ajudar o amigo. E sorria com essas pilhérias da vida, sorria ainda assim com o espírito crente de que há uma escapatória, mesmo quando tudo parece perdido. Ris Anabela, vejo-o, ris com aquela vontade de querer mostrar o íntimo de ti. Queres falar, fala. Estou aqui para te ouvir. Sempre há noites em que não se pode dormir. Está um calorão… Anabela condescende: É verdade… e arrasta-se para junto dele, puxando uma cadeira, onde o senta. O Viagente sentado observa de perto o corpo quente de Anabela e tacteia o perfume do seu braço que lhe indica o lugar. Tinha ficado um silêncio incomodativo naquele espaço que obrigava a que outra frase oca não deixasse morrer o momento. O diálogo tinha necessariamente de levar outro rumo. O rumo da abertura e do alívio. O que queres comer? Na expressão de Anabela havia uma ruga, traço calcado pelas maldades que a vida faz. Rasgava-lhe a testa, ainda subtil, pondo um não-sei-quê de tristeza. Era quase imperceptível. O Viagente nunca tinha reparado nela, talvez devido aos cosméticos, ou talvez fruto de um fingimento de felicidade que guardamos todos os dias para os outros. E Anabela guardava – tinha, na verdade, essa felicidade para os que estavam à sua volta. Todavia, agora não a conseguia esconder. O Viagente via a ruga claramente. Era uma ruga das maldades que a vida nos faz. A velhice que chega antes do tempo e se instala para sempre; uma velhice triste que te põe feia, Anabela. Uma velhice que te desenha traços que não são teus, sulcos profundos que te pesam e te sufocam. Nem sempre é o tempo que nos envelhece, por vezes são as pessoas. O Viagente ainda não lhe tinha respondido, instalara-se um silêncio na cozinha. Anabela também estava estranhamente constrangida. Havia qualquer coisa que lhe bloqueava as palavras: ou era a sua clara falta de à-vontade perante um homem que não conhecia, ou então um quelque chose estranho que nele brotava.

Deixa estar que eu faço. O mínimo que eu posso fazer é preparar o pequeno-almoço. Acto gentil de um homem que se disponibiliza para elaborar a primeira refeição do dia. Há muito tempo que ninguém me prepara o pequeno-almoço. O Zé anda sempre muito ocupado... O Viagente notou logo ali algo de estranho naquela presença fortuita do ninguém, quando lá deveria estar o José. Não era flagrante, mas simplesmente o subconsciente de uma mulher sistematicamente não olhada. O Viagente levanta-se, em tons de simpatia descomplexada e diz Saem duas torradas quentinhas com leite morno. O pão não era fresco e o pacote de leite já estava aberto, mas ainda assim ele soube dar-lhe as voltas necessárias para tornar aqueles elementos num momento de requinte.

Anabela sentou-se, docemente obrigada pelo amigo. Foi ele que a serviu, solícito. Ela sorria para aquele homem que a começava a fascinar. Tinha um travo a aventura, um sabor a humanidade. Era um bom homem. Fumega da chávena um cheiro macio, branco, e maduro. Estranho por assim dizer, não cheirava praticamente a leite, mas a um perfume atractivo, estranhamente atractivo. Sentados frente-a-frente, o Viagente levanta-se para ir buscar as torradas. Quentes, derretiam a manteiga que se emaranhava pelos favos secos do pão. Tranquilamente a conversa foi surgindo e o ambiente tornou-se mais claro. Já nem se lembrava de um pequeno-almoço tão aconchegante: como é bom sentir o conforto de uma companhia que nos ouve… Então como é ter de aturar tanta criançada?! Anabela ri agora diferente. Ah, os meus meninos… são tão lindos! Adoro trabalhar com eles. Amo-os a todos. É como se fossem meus filhos. E saber que amanhã serão homens… Sabes, é por isso que dou o máximo por eles. Trabalho como se tivesse uma missão nas minhas mãos, a missão de fazer das crianças homens verdadeiros, que entendam o valor do amor. Ela falava, como se sentisse que de facto estava alguém do outro lado a ouvi-la. Iam aparecendo migalhas que caiam para a toalha branca e o pires sujava-se com uma ou outra gota mais ríspida que saltara. Deve ser, realmente, muito aliciante trabalhar com miúdos. Sempre podemos voltar à nossa infância e tentar viver com eles os restos que ainda somos da pureza que já foi e não volta mais. A Anabela tinha saído da mesa para levar a louça suja para a máquina-de-lavar. Apetecia-lhe confiar toda a vida nele. Apetecia-lhe falar, contar as amarguras, a tristeza que a vida lhe fazia. Ela contava: Vês a minha vida? E o sorriso sumia-se-lhe, a testa franzia-se, sulcava-se a ruga e a expressão entristecia, escorregando para o sofrimento. Mas e tu?! O Zé só pensa em trabalho… Agora quer ganhar para comprar isto, depois de termos isto já quer comprar aquilo, depois aqueloutro… Não sei, não sei o que ele quer da vida! A tua vida é que é bem curiosa. Andas, viajas, sem querer muito saber do trabalho ou do dinheiro… pelo menos é isso que das tuas palavras eu percebo. Não queres saber de horários nem de despesas. Não é por aí que o Viagente quer ir, mas compreendia. Vivo neste mundo, Anabela, tal como tu e José… ela atira Onde é que ele está agora? Não estava, era verdade. O Viagente, entre o sentimento que devia ao amigo e o que ouvia, tentava equilibrar-se. Anabela lacrimejava e estende as mãos, procurando o amparo do recém-confidente.

Ou é por causa do cão engenheiro, ou por causa da gata da doutora… As mãos da Anabela agarravam a mão calejada do Viagente. Ela estava em pé a seu lado. Contava: e eu fico para aqui sempre sozinha. Depois, quando chega, ainda se põe com exigências como seu eu fosse um brinquedo que tem de o satisfazer sem que ele tenha de dar nada em troca. Havia agora não mágoa mas um desprezo em relação ao José. Menosprezou-lhe o trabalho e o empenho que ele lhes dedica. Anabela agarra a mão do amigo, como se estivesse a cair e aquela fosse o seu último sustentáculo. Ele contemplava-a, atordoado menos com as revelações que lhe fazia do que com a sensualidade de Anabela. Ela, frágil e carente, olha-o, aproximando-se, incautamente suavizando a mão do Viagente com a pele da coxa. Sabes, no casamento há fases complicadas. Com certeza, vocês estão a passar um desses momentos. Tens de ter calma, Anabela! dizendo isto, afasta escrupulosamente as suas mãos. Transpirava. O coração pulava como louco. E havia José na ausência presente daquela cozinha, o Viagente sabia-o por isso afastara as mãos. E quanto tempo têm essas fases? Quanto tempo terei de ficar à espera? Já nem certeza tenho se ele está de facto a trabalhar ou se me está a enganar! Anabela, percebendo o Viagente, afasta-se e arruma umas chávenas que não estavam no sítio. Agora de costas, prossegue: Ele já não me ama! Usa-me apenas como objecto sexual. Mas, digo-te com sinceridade, isso vai acabar! Ai vai acabar, vai! que já não aguento mais! Desaperta um botão do top descobrindo o seio quase na totalidade. Volta-se, devagar, para o Viagente que via, incomodadamente deslumbrado, a revelação do peito de Anabela sem soutien. Ela aproxima-se e o Viagente deseja-a, deseja-a ardentemente. Anabela percebe-o e sorri. Enquanto dizia aquelas palavras aproxima-se dele, ostentando não sabendo bem porquê a sua condição de mulher. Era-o, sim… era-o de um pleno cheio impossível de não ver. Estava calor na cozinha. O Viagente ardia e Anabela aproxima-se, queimando-o. Passa por trás dele, afagando-lhe o cabelo. Percorre um arrepio de prazer por ele todo. Dão outra vez as mãos. Ela senta-se na cadeira a seu lado e encosta a perna na sua. O Viagente, excitado, procura com a mão aquela coxa irresistível e acaricia-a. Ela encosta-se e ele sente o seio escorregar pelo seu peito. José está ausente na presença constante da amizade. O Viagente deseja aquela mulher.

No entanto, passando-lhe as mãos pelo cabelo, tocando-lhe suavemente a face, diz: És uma grande mulher! Beija-lhe a cara. Temos de arrumar isto! Já são horas de irmos para o festival de música! Deixa-te estar que eu, desta vez, arrumo! O Viagente ergue-se titubeante, tremendo das pernas e arruma a mesa.

 André Matias

Ricardo Oliveira

terça-feira, 24 de junho de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

Um copo a dois

Cá estamos. Anunciou José, sem euforia, no entanto. O Viagente e ele tinham chegado ao bar, Anabela tinha ficado em casa, visto que se sentia exausta aqueles miúdos são umas pestes…, por isso ficara em casa e além do mais amanhã é que era o grande dia, iam ao festival de música! Todavia, José, ou por ter menos interesse nesse festival, ou por ter algo importante a falar com o velho amigo, trouxera-o ao bar, naquela Sexta-feira à noite. O José desligou o carro. Estacionou-o num parque fechado ali não muito longe. É aqui! Aqui era o bar onde iríamos pôr a conversa em dia, que há muito estava desactualizada. Praticamente era ali que toda a razão de ser da vinda do Viagente se consubstanciava. Entraram, não sem antes o porteiro os cumprimentar, olhando-os de relance para confirmar que estavam condignamente apropriados para frequentar aquele tipo de espaço. Parece bonito… que elegância! Comentava com honestidade o Viagente, enquanto observava as mesas baixas, negras a condizer com o almofadado das cadeiras, quase poltronas. O chique prolongava-se na mistura de perfumes, na música discreta, nas conversas a meia-voz e na roupa dos clientes. Entravam: as pessoas distribuíam-se pelo bar de um modo sossegado, tranquilo e muito elegante. Rondariam os trinta, trinta e cinco anos, talvez um pouco mais: não dava para perceber bem pelas caras femininas que ricamente se camuflavam por entre cosméticos. A um canto, mas não em claustrofobia fumava-se socialmente. Com os risos e os tilintares de copos compunham-se em acordes notas de um piano e de uma guitarra-baixo. Tu é que és um sortudo! José seguia o seu caminho até à mesa, não ouvindo o comentário não sarcástico, mas acutilante do companheiro. A elegância transbordava no modo de vestir até dos empregados do balcão, sobriamente paradoxais no seu branco-negro. Os clientes pareciam sorrir sempre, com convém quando se sai à noite e sorriam, mas não riam alto para não perturbar a música ou confundir o branco com o preto do fato dos empregados, alinhados militarmente.


Os dois amigos não preferiram o balcão, mais propício para aqueles que com um café ou um whisky olham sorrateiramente, para que nessa noite possam dormir em companhia. Dirigem-se para a tal mesa, que fica no meio do bar, aconchegada pela pacatez de uma coluna e de uma planta de interior. Bar muito interessante. De facto, pá! Abriu há pouco tempo, é a coisa mais in que se tem cá. José tinha razão. Era um bar de design moderno, esquadrinhado para satisfazer os novos gostos de uma classe bem sucedida. De tons avermelhados, que se conjugavam com um preto brilhante, as paredes refulgiam uma luz indirecta branca-quente. No tal balcão em que se mediam olhares e se passeavam corpos, reluzia uma pedra mármore iluminada agora em tons de frio. Contrastavam-se cromatismos, cruzavam-se homens e mulheres. Sentaram-se. José estava tenso, mordia nervosamente as unhas. Não falava. O Viagente contemplava. Diante, cruzavam-se umas pernas altas e morenas de uma italiana. Enquanto os dois amigos se ambientavam ao espaço, um porque queria desfrutar da novidade, o outro porque lhe fugiam as palavras para o que tinha que dizer, chega um empregado, que saudando-os com mordomias lhes pergunta o que querem tomar. O José, como anfitrião, antecipa-se e pede para ambos um Porto reserva, mas tawny não ruby. O empregado franze o sobrolho pelo exotismo do pedido. Deve ter a mania que é enólogo… mais um bocado e começaria a dissertar sobre a problemática do envelhecimento do vinho em balseiros, resmungava o empregado pelo caminho ao longo do corredor que o levava à prateleira dos vinhos espirituosos. Belo sítio, José, muito aconchegante, cheio de caras bonitas, de aromas promissores! Sorriram-se, estavam agora dois homens, dois amigos, sozinhos sem mais ninguém, sem qualquer tipo de entraves que lhes imputassem um comentário mais ousado de juvenil ostentação. De facto, de facto… há aqui coisa interessante. Soltou-se a gargalhada fraterna. A escaramuça do jantar nem sequer tinha agora lugar nas suas memórias. Eram outra vez aqueles putos que queriam ser homens, e que já o eram. Entretanto, vieram os Portos, twanies tal como o senhor pediu, disse ironicamente o empregado solícito pousando os copos na mesa. O empregado roda sobre si mesmo, educadamente, e afasta-se calmamente como a música que terminava. Mas porque estás tão tenso, José? o Viagente pensava. Também houve alguém que se afastou de ti? Ou és tu que te afastas de alguém? Sabes porque te chamei? perguntou José. De alguma forma já descobri, amigo, nem sempre a vida nos ama ou nós sabemos amar a vida. Ele estava triste. Os seus olhos profundos procuravam arrumar uma imensidão de vivências para as concentrar em palavras naquele momento. Perturbava-se. É a minha Anabela… José pausava o discurso, levava o Porto quente e sensual, como a sua esposa, aos lábios levemente. Na mesa em frente, a italiana mostrava as coxas e um olhar promissor para os que estavam consigo, e diagonalmente para os amigos que falavam. José bebia, procurava as palavras. Eu nem sei bem como é que te hei-de dizer isto, quer dizer… pá! Ela não está quando preciso dela. Chego do trabalho, cansado, estoirado cheio de problemas e ela nada, estás a perceber?! Não é a Anabela de antigamente, é como se fosse outra. Não é a mesma coisa! Homem, tem calma. Eu sei que precisas de descomprimir esse sofrimento que te esmaga. Vá, tem calma, diz-me o que é que se passa. Se eu soubesse, ai se eu soubesse era tudo muito mais fácil. Não entendo, percebes?! Simplesmente não entendo; parece que não está mais aqui comigo… sinto-a a fugir-me das mãos como grãos de areia seca, pá! E tenho medo, muito medo…tu desculpa-me, tu desculpa-me de eu estar com estas coisas. Estás tenso, amigo, já não te via assim há muito tempo. Tem calma, tu tem calma que tudo tem solução. Mas diz-me ao certo o que se passa, para tentar poder ajudar-te. Homem, a Anabela simplesmente não está.


Respirou fundo, engoliu em seco e finalmente começou a falar: É a minha Anabela. Ela endoidece-me. Já não me ama como dantes. Esqueceu todas as promessas e ela tem tudo, amigo, dou-lhe tudo. Que hei-de fazer? Ao balcão, o empregado falava trocistamente com o colega. A italiana descruzava as pernas. No entanto, o Viagente estava realmente atento ao que o amigo lhe dizia. Calma. Antes de te dizer o que hás-de fazer, tens de me contar o que se passa! José bebeu um trago ousado, no fim da boca permanecia o doce frutado e o perfume, o sabor de Anabela. Ela quando eu venho do trabalho recebe-me sem alegria. Está sempre cansada e triste por me ver. José pousou o copo e, olhando-o vazio, continuou: Sabes, a minha vida parece que desabou. O casamento é uma coisa difícil de manter. Quando olho para o passado e vejo tudo aquilo que construí com a minha mulher… agora parece que nada existe, parece que se quebrou qualquer coisa. Quando chego a casa do trabalho, ela recebe-me fria e distante. Acho que já não me ama. Suspirou, pela primeira vez enfrentando o olhar do amigo que o escutava, alheio ao movimento do bar. É duro manter o amor no casamento, sabes?, parece que estamos gastos, parece que somos dois velhos sem novas aventuras para viver. Estamos juntos por um hábito, uma rotina que nos prende àquela casa e que nenhum de nós quer quebrar, pelo menos por enquanto. A Anabela é a minha vida, entendes? Faço tudo por ela! Mas agora parece que nada resulta. Sabes… não a sinto comigo, como a sentia quando começámos a namorar. Já não temos aqueles vinte anos cheios de mística e de sonho. Tu desculpa-me estes desabafos, mas eu tenho que me abrir com alguém…Lá estás tu com essas coisas, homem, estás à-vontade comigo, respondeu o Viagente com aquele olhar de amigo que quer compreender e ajudar o outro. Já não há aquele brilhar de olhos que ela tinha quando lhe dava qualquer coisa. Já lhe trouxe prendas que vim a encontrar arremessadas com desprezo num canto qualquer. Agora que lhe ofereço roupas caras e até algumas jóias, ela olha-as com uma espécie de ternura indiferente. Não sei bem…, mas parece que anda à procura nessas coisas de algo, não entendo!


O bar estava agora simplesmente fechado para eles. Havia sido criada uma bolha sustentada por aquela coluna e pela planta de interior. Eram os fustes que aguentavam os capitéis de uma conversa de confissão em desabafo. Estavam ali, sós e alheados do resto. Sinto-me sozinho, pá… sozinho dentro da minha casa e sozinho na cama. Não quero parecer piegas, mas eu não sei o que se passa. Há algum tempo que a Anabela não me procura para estarmos juntos. Estou a perdê-la, amigo, e não sei o que fazer… Sabes o que acho? José não deixa o Viagente responder. Sabes o que acho? Acho que há outro homem! Tenho quase a certeza. Nunca lhe disse nada, porque agora levantou-se um muro entre nós que impede que falemos. Agora não falamos, pronunciamos sílabas que formam palavras, mas não comunicamos. Acho que há um homem na vida dela. Acho que ela se apaixonou por outro! Estou a perder a minha mulher, amigo, e não consigo fazer nada! José continha-se, conversava em tom baixo, embora quisesse explodir. Já nem na cama, sabes?, já nem na cama conseguimos comunicar. Já nem na cama encontro a minha Anabela. Desaprendemos o Amor. As mãos dela não me procuram e já não me lembro da última vez em que adormecemos abraçados um ao outro. De vez em quando fazemos sexo, mas já não nos amamos. Faço sexo com uma mulher distante, uma mulher que não se entrega, fria e sem desejo. Sexo seco. Sexo forçado, como um cumprimento de um dever; como o cumprimento do seu dever de mulher. José segura a cabeça com as mãos para não se perder; à sua frente, o Viagente tentava encontrar a solução para oferecer ao companheiro. É verdade… já não fazemos amor, é apenas sexo, um sexo barato em que apenas vemos um corpo e nada mais à nossa frente. Tu achas que há alguém metido?! pergunta de um modo magoado José. Como é que tu queres que eu saiba disso? Não estarás a efabular a situação?, tu tem calma… vocês são novos, não se casaram levianamente e estou certo de que há ainda amor entre vós. Eu não sei, pá, não sei, não sei nada… sinto sempre a situação a fugir por entre as minhas mãos. Eu tenho este projecto da clínica em que me farto de lutar. Tem tudo para resultar, mas consome muito tempo; quase que nem estou em casa. E quando chego, discutimos – pois, isso eu já percebi (José que estava a rodar o cálix do Porto de cabeça baixa sente-se descoberto por aquele comentário) – quase todos os dias por coisas tão insignificantes. Já não falamos à mesa, não compartilhamos os momentos. Não sei… mas tem que haver alguém… não me sai tal ideia da cabeça.


A italiana exibia gloriosamente as pernas rijas e morenas, alheia e distante da conversa dos que estavam ao seu lado. Tentava escutar as palavras sinceras e doridas daqueles amigos que falavam em aparente calma. Ela sabia que dialogavam sobre o amor, sobre uma mulher, sentia o cheiro da desilusão, o momento perfeito para surgir. Mas ainda não. O ambiente estava carregado; o fumo dos cigarros ao canto do bar criava um nimbo de suspensão do tempo. À volta daquela mesa, duas pessoas, dois homens, dois amigos, duas vidas, uma situação – e uma terceira pessoa que estava num não-ali. Urgia sair uma frase da boca do Viagente. Como nestas alturas a massa dos conceitos se desmultiplica numa fina sensibilidade apavorante entre a leveza do grama e a opressão da tonelada. Cada termo, cada frase devem nestas alturas ser milimetricamente escolhidas. É por isso que um amigo, ao aconselhar, inicia o seu discurso por uma pequena interjeição que se prolonga no tempo, para o ganhar um pouco mais. Há gaguejos, gesticulações, há inclusive um certo movimentar no assento para encontrar a posição argumentativa mais confortável para a ingrata tarefa de dizer as palavras certas. O Viagente olha nos olhos José até deixar de o ver, até fixar apenas a pupila para o poder ver inteiramente sem complexos e sem pudores. Tem calma, amigo! Tenho a certeza que a Anabela te adora como no primeiro momento. Sabes que o casamento tem dessas coisas. Por vezes, há momentos em que os amantes parecem desencontrar-se, mas caminham lado a lado. Ela ama-te, José, que tolice a tua pensares que te está a trair! Calma! As palavras saem da boca daquele amigo longas, em gerúndio para que ecoassem bem no fundo do seu sentir. Entretanto, ela foi ao balcão buscar uma bebida e passa junto deles, olhando-os com uma promessa escondida nos lábios que não descerraram. José e o Viagente, no entanto, estavam distraídos, absorvidos pelo estranho mundo das relações humanas. É complicado, ela já não me deseja. E tu, como a desejas? Adoro-a. Como a adoras? Adoro-a com todo o meu amor. Acredito em ti, José, mas, por vezes, o amor é uma viagem entre dois mundos. Tem-la visitado?


O telemóvel do José interrompe a conversa. Devem ser clientes…, suspirou como se a vida tivesse o peso de um padecimento. Afasta-se um pouco da mesa para procurar um certo espaço para o diálogo. Sim…, senhor Engenheiro, como está?!… sim! … perfeitamente, senhor Engenheiro. Não se preocupe, nem o senhor nem a sua esposa. Leve-o directo para a minha clínica que resolveremos prontamente a situação. Até já e cumprimentos à sua esposa. A situação era as convulsões repentinas do chihuahua de companhia da mulher de um tal engenheiro Menezes. Levanta-te! Vamos embora! Tenho que ir trabalhar! A conversa ficaria aí, presa e não suspensa. Era uma urgência muito importante: não se podia perder um cliente daqueles. Tinha demasiada influência. Vamos, mexe-te! O chihuahua da mulher do engenheiro Menezes está com convulsões. Tenho que ir lá, rápido! Anda!...

André Matias
Ricardo Oliveira

quinta-feira, 29 de maio de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

“[Eu] Caminho Entrecruzado c/ Purê-sentimentos, Arrependimento, ao Molho Vida”

Na casa de banho, o Viagente vestia-se. Fora buscar ao quarto a sua roupa. Em cima da cama estava um pólo azul-escuro, listado; ao lado, uns jeans também azuis, de uma ganga cuidadosamente lavada. Para os pés, uns chinelos castanhos, não muito quentes, conservando o conforto necessário para este tempo de estio. Há algum tempo que o Viagente não sentia no seu corpo este tipo de roupa, pois as condicionantes da viagem obrigavam-no muitas vezes a abdicar de certas benesses que, para pessoas como os seus anfitriões, eram tidas como normais. O Viagente contemplou, por momentos, aquelas peças de vestuário, o modo como tinham sido dispostas sobre a cama e a função de conjunto que forneciam. Não era aquilo, aquele espectáculo, a que estava habituado. Vestiu. Olhou-se ao espelho. Como estava diferente no mesmo de si. Aquela roupa do José confortava-lhe agora as feridas que ainda lhe marcavam o corpo como uma lembrança. Ainda lhe doíam, quando fazia alguns movimentos bruscos, ainda lhe doíam como uma recordação de que na vida as dores são um anúncio constante duma dor suprema que há-de vir, há-de vir sempre, há-de chegar. Mas ainda não chegara. O Viagente vestira lentamente as roupas do amigo José que se colavam às feridas e lhes punham por cima um manto de beleza, da beleza que a vida também tem; um manto de beleza como um anúncio de todo o prazer que estará por vir, que chegará, sempre, que chegará, mesmo quando as feridas são profundas. O cabelo, que retinha ainda alguma humidade do banho, penteara-se agora para trás em perfeita serenidade.


O Viagente vestiu-se e lá fora, Anabela e José emudeciam. Saiu do quarto… aquelas palavras desordeiras tinham efectivamente ido embora. O silêncio era enorme e, por isso, o Viagente retardou-se em pormenores estéticos, distraído, para que os amigos pudessem pintar a sala com a cor que eles gostavam de mostrar. Dirigiu-se para a sala de jantar, onde uma harmonia superficial deslizava pelas notas jazzísticas que perfumavam o ambiente. A mesa já estava posta. José esperava-o sorrindo, Que elegante… É a tua roupa, caro amigo, que faz com que o Homem pareça mais bonito do que realmente é! José abria o vinho adequado à refeição: deu-o a provar, como mandam as regras da etiqueta, ainda que esbatida pelo à-vontade da amizade. Fizemos um “Frango Grelhado c/ Purê, Ervilha ao Molho Manteiga”. Por entre os silêncios das frases dos amigos, ouvia-se aquela música discreta que contrastava com as cores fortes dos tapetes e o negro da mesa.


O Viagente olhava José com saudade: frango grelhado com puré e ervilhas com molho de manteiga, pensava... O semblante do amigo estava carregado, mas com um sorriso que lhe vinha das artes do fingir. Aquelas artes que se adquirem nos ofícios da vida. José sorria, segurando a garrafa de vinho. Viajava, desde a cozinha, o perfume apetitoso do frango que se fundia harmoniosamente nas notas soltas que o jazz ia discorrendo. Na sala-de-jantar faltava ainda Anabela, que se tinha alongado um pouco mais com os preparativos inerentes a um jantar com convidados. Ausentara-se por momentos para se ir arranjar sobriamente para aquele momento. Enquanto os amigos falavam, aparece Anabela com uma travessa na mão, colorida por um amarelo-creme que vinha do molho de manteiga. O Viagente sabia que desta vez não podia deixar que o José saísse da sala, por isso não permitiu que aquela mulher de vestido preto, cintado, em que o decote prometia mais do que deixava ver, o olhasse de um modo menos confortável. Anabela pousou a travessa sobre a mesa, escrupulosamente arranjada, e convidou os companheiros a sentarem-se: Vá… vamos para a mesa para não deixar arrefecer. Trazia um sorriso que o bâton discreto lhe fazia, os olhos guardavam as lágrimas de uma história de amor inacabada e o vestido preto, o luto por uma discussão que não morrera. Sentaram-se os três. O casal ocupou senhorialmente as cabeceiras da mesa; no lado direito do José, senta-se o Viagente mediando simetricamente os dois anfitriões. O frango exalava um perfume calmo, antevendo um paladar forte mas suave, como a ternura dos campos depois de uma chuva de Verão. O Viagente entretinha-se em cruzamentos de metáforas sensoriais, para disfarçar aquela força incompreensivelmente espontânea que uma mulher tem, quando está no altar que umas sandálias de salto alto lhe podem conferir. Mas não… não deixará que o José saia daquela sala, porque não pode, nem é assim. Todavia, Anabela serviu o Viagente enquanto o olhava de um modo profundo. Um olhar que falava mais do que as palavras permitiam. Um olhar cheio de mar. Cheio de infinito azul no castanho profundo do avelã matizado. Um olhar que dizia uma história de amor doído e sofredor. Um olhar que continuou enquanto Anabela serviu José e depois se serviu.


Nos copos de pé alto, passeava-se o bordeaux em vinho tinto. Perfume: temperos em agradável ligação, misturados por uma mão macia mas certeira. Conversa de elementos. Diálogos de estruturas. Depois daquele primeiro silêncio que se senta em todos os jantares, conviva necessário para desfrutar da formalidade do momento e da riqueza do prato, soltam-se as primeiras palavras. É ao Viagente que cabe falar, encetando a primeira cena de um drama que não terá acto, mas perpassará acções de pleno sentido. Parabéns à cozinheira! Não, não devia ter dito aquilo. Deixou de fora o amigo. E como ele queria tanto mantê-lo ali dentro. Ah, muito obrigado… não é nada de especial, são umas coisinhas normais. É costume fazer aquele tipo de prato, de facto, mas o José ainda quente por aquele ambiente de querela com a Anabela diz: Ora, já não comias disto há muito tempo! José irrompe pela cadência inevitável da música que se escutava longe, por trás, como um pano de fundo. A voz dele, ligeiramente ondulada e nervosa, emergia de uma face pálida e sorridente.


O Viagente percebe nas palavras do amigo a intenção ofensiva, contudo permanece sereno, porque ele sabia que, muitas vezes, dizemos as palavras erradas; muitas vezes, as palavras que devíamos dizer ficam enterradas onde não houve coragem para as juntar em frases; muitas vezes, são ditas a uma pessoa para uma outra que era a que devia ouvir, mas não pode escutá-las, porque não são dirigidas a si. O Viagente sabia que as palavras vestem a pessoa, uma pessoa que existe por trás delas e que com elas se disfarça, quando não consegue dizer o que sente. Por isso, fez: Tens razão. Na verdade, não saboreio uma comida tão deliciosa há muito tempo! Sabes, amigo, foi a vida que escolhi! Anabela, intrigada, pergunta: Mas a tua vida impede-te de comer? O Viagente sorri, esquecendo José a um canto da sala, embora ele permanecesse no topo da mesa. E conta: Não. Quis dizer apenas que, hoje em dia, não costumo comer pratos tão elaborados. Escolhi um caminho para a minha vida e parti em busca dele. Anabela olhava-o intensamente como se ele lhe fosse oferecer uma revelação, uma verdade qualquer que ela sabia existir, mas nunca ousara procurar. O barulho dos talheres trazia à realidade aquelas frases, cortando e levando à boca em pedacinhos comestíveis o significado de cada uma delas. Sabes uma coisa interessante que hoje aconteceu lá na clínica? apareceu lá um caniche com um problema nos olhos. Tem de ser operado. O José tentava disparar a conversa para outra direcção, para se fazer novamente o centro das atenções. Anabela não deu importância, só sabia falar daquilo e nada mais. Tem graça, um dia também conheci um cão, era apenas um cão que tinha nos olhos uma sabedoria que não soube ler. O José não entendera, soara-lhe a disparate; a Anabela pela incompreensão da mensagem queria saber mais. Falas com uma paixão desinteressada… sorriu-se. Não havia nada a fazer: o José não voltaria à clínica de veterinária em que iria operar o caniche; o Viagente via-se mesmo na eminência de falar um pouco mais sobre si próprio para contentar a Anabela. E onde o foste procurar? Os aromas fortes e ternos enfeitavam sensualmente a conversa. Ao longe, como a música, estava José, duplamente arrependido: porque tinha sido mal-educado com o seu amigo, que ali viera a seu chamamento e porque tinha desencadeado o diálogo entre a sua mulher e o Viagente, auto-excluíndo-se. Bebia o vinho. Terminava um copo. Enchia outro. Anabela estava linda, comendo e saboreando as palavras do Viagente. Sabiam a aventura. Sabiam a terra e a vida… O Viagente contava… e por isso é que fui para lá, assim sem nada. Larguei tudo e trajei-me como um peregrino. Um genuíno peregrino que avança pelo mundo à procura de si nas amizades que vai fazendo ao longo do caminho…


Desinibido, o Viagente enchia novamente o prato Delicioso! Subtilmente, nascia um rubor nas faces de Anabela, talvez do vinho ou quiçá das palavras. O Viagente reassume a sua narrativa, reencontrando o tom na melodia que acontecia. ...visitei localidades que são homens, conheci paisagens que são metáforas e então compreendi que a maneira de me entender era por dentro da metáfora… José corta-o: Sempre foste um poeta! Metáforas!... As metáforas, que têm a ver com a vida? A vida dos homens faz-se trabalhando. Trabalhando para vencer e sustentar a família. São palavras muito românticas as tuas… continuas o mesmo sonhador de sempre, pá! Mas a vida não é isso. Se a vida não é isso, então o que deveria ser? Ter um carro de gama alta, uma casa com decoração moderna, uma mulher bonita, sem saber no meio de tudo isto onde está a felicidade e a essência de ser com ela? Latejavam estas palavras pelas veias do Viagente.


Tu, afinal, o que ganhaste? O Viagente olha-o e responde Nada. Tu é que ganhaste e ganhas muito. Tens razão, José, este homem-andarilho não tem os luxos que agora possuis, mas foi a ele que chamaste, foi a ele a quem recorreste, porque sabes, sim… sabe-lo bem, que desde puto foi ele que sempre te ajudou a descobrires o teu caminho, a perceberes quem tu és. Mas estás agora cego pelos prazeres da vida que escolheste. Não sei bem o que é a vida, José. Por isso, fui à procura dela, para sentir em cada momento toda a força que dela pode vir. Era disto que falávamos quando éramos mais pequenos: como seria possível meter a força das ondas dentro de uma caixinha de fósforos. Anabela embevecia-se com a simplicidade grande daquelas frases daquele agora mais amigo. Ela entendia-o. Sim. Ela entendia-o, porque também ela no sorriso das suas crianças mantinha uma força viva da verdadeira dimensão de existir. O Viagente conhecia a distância que agora o separava do seu amigo. Sabia também que no momento em que iniciaram a corrida da vida, o José disparou desenfreadamente, enquanto ele caminhou devagar pela pista. Havia que comer tranquilamente, saborear o bom vinho com que o presenteavam. Olhos nos olhos, sempre, Anabela pergunta: Nunca te arrependeste? Por acaso… não, disse o Viagente. Não me arrependo da vida que escolhi, sou isto.


A frase do Viagente pairava sobre o jantar como uma verdade inesperada. José enternecia-se como que saboreando memórias, arrancando aos momentos partilhados com aquele companheiro a magia que ele punha na vida. Anabela sorria com os olhos brilhantes e húmidos, juntando curtos pedaços de frango que levava à boca devagar e pausadamente. Havia um solo de guitarra que falava agora, enquanto na mesa repousava um silêncio feliz. Era um silêncio meditativo e apaziguador. O silêncio necessário para que as palavras ditas deixem de ser palavras e nasçam como fragmentos de vida em quem as ouve. A guitarra falava. Parecia contar uma história de amor que a bateria desencontrava; parecia uma história de dois amantes desencontrados que se procuravam na harmonia da música.


O Viagente termina o prato. Queres mais? Tu come! remata José imperativo. As palavras vinham agora com outra tonalidade. A culpa talvez fosse do saxofone soprano e das vassouras que deslizavam pela pele da tarola naquele seu jazz mais calmo e menos grosseiro. Estou satisfeitíssimo… Bebo, se me servires, mais um copo! José levanta-se e serve o amigo. Ele bebe. O vinho intenso e profundo tinha um fim interminável como o sabor do amor. José, aproveitando o ensejo de estar de pé, levanta os pratos da mesa, declarando que iria buscar a sobremesa. Anabela olhou-o, enternecida, percebendo que o marido queria redimir-se da discussão que aconteceu na cozinha e das palavras áridas que arremessou ao amigo. Não deixou criar momentos mortos, acelerou o passo, e trouxe rapidamente a sobremesa do frigorífico. Não é por nada, mas uma coisa assim não podes ter comido, porque não há ninguém que faça uma mousse de chocolate como a minha Anabela. Redimia-se o José, porque afinal era uma simples mousse instantânea que a Anabela tinha preparado numa batedeira eléctrica e ela sabia-o. Mas aquele possessivo, determinantemente pronominal, aquele simplesmente minha abriu-lhe novamente a sala para que entrasse pleno e se sentasse verdadeiramente à mesa com os outros dois. Da Anabela um sorriso tenro e terno: ela desculpa-te porque é a tua mulher e porque ainda assim te ama. Serviu três taças de mousse de chocolate, dizendo ao mesmo tempo que se sentava: A tua viagem parece-me muito rica. Não queres contar nenhuma aventura?


O Viagente olha-o, redescobrindo no seu olhar os olhos antigos da infância; os olhos inocentes e verdadeiros; os olhos meigos e doces do amigo. Por isso, o Viagente sorri enquanto recorda, por isso, ele conta não as aventuras que passou, mas a história que as fez viver. Era uma mulher…nem sei como vos hei-de dizer. Era a minha companheira. Amava-a como nunca amei ninguém. Sei lá, amigos, como vos hei-de contar. É tão difícil ver-me ao espelho, dizer o que sou, sem me magoar. Há que ter calma. Os erros são a vicissitude de se estar vivo. E eu errei, como errei, amigos… Por isso, erro agora ainda. Por vezes, a presença daquilo que somos faz tão mal aos outros. E eu nem sempre vi, nem sempre vejo. Erro. Erro tanto quando me expando para o mundo dos que me ouvem… Há que ter calma. O erro é uma vicissitude de se estar vivo. Aquela pergunta do amigo suscitou no Viagente as memórias do baú que tinha fechado antes de começar a andar. Não queres falar, eu sei, não queres falar porque iniciaste uma viagem sem regresso, em que procuras o que não foste e queres saber o porquê.


Coloco o dedo no ponteiro do relógio e agarro o pêndulo por momentos, para poder dar a este homem o tempo necessário de se espelhar. Precisa-o como o ar que respira, como o sangue que lhe corre nas veias. Tempo. É nele que anda à procura do que aconteceu. Projecta-se no teu futuro as acções do teu passado que não queres repetir. Tempo. Paz. Dor. Magoa… dói-te ainda aquele dia em que te foram ditas as palavras que pensaste que nunca seriam para ti. Sentado, naquele banco de réu, ela disse-te um adeus profundo como a cova de um poço. Escuro. Queres apagar esse dia com um branco de paz, mas esse escuro é demasiado espesso, grosso e peganhento. Homem, tens os teus amigos à espera naquelas cadeiras, inertes pelo tempo que pude suspender. Não o consigo por muito mais tempo, porque a corda do relógio vital é forte e o pêndulo é balanceado pelo dinamismo das gerações. Volta àquela sala e fala, fala com eles para te dizeres a ti que tens um passado que queres enfrentar. O Viagente, depois de uma rápida introspecção, continua. Ela era linda, mas nunca a conheci. Nunca quis ouvir o que ela tinha a dizer, porque sempre tive muito a falar. Então eu mostrava-lhe todo o mundo contido nas minhas palavras fúteis e ela ouvia apaixonada; aprendia de mim a maneira de existir. Mas eu não via, não a conhecia. Companheiros, fiz uma viagem pelo amor de olhos fechados, pensei que o amor fosse um sentimento meu e que se eu amasse muito… mas não soube que o amor é um sentimento nosso. Certo dia… foi nessa noite. Estávamos na varanda da minha casa. Eu calculava nas estrelas o número infinito do meu amor e ela disse-me que era louco, porque o amor não estava nas estrelas. Disse-me que o amor estava aqui na terra, nas pessoas, e que eram as pessoas que tinham de ser amadas, não as estrelas. Nessa noite, ela despediu-se, foi. Deixou a vila e a mim. Ela tinha falado e, pela primeira vez, eu tinha reparado que a voz dela era ondulada e rouca. Pela primeira vez, reparei que ela discordava de mim. Pela primeira vez, vi que ela existia e que a tinha inundado de mim. E agora, onde estás dentro de mim? Memória de um sentimento meu que encontrei no teu ser. Onde estás? Pela primeira vez… a luz das estrelas que eu lhe espalhava ofuscava-a. Ofuscou-a tanto. Encandeou-a até ela ter de deixar de me ver. Por isso ela foi. Deixou a vila naquela noite. Errei tanto, demasiado. Por vezes, distraímo-nos tanto com o que somos, que esquecemos que os outros também existem tanto como nós; sonham e amam com a mesma intensidade… sentem como um eu que também necessita de gritar ao mundo a sua presença. A música tinha terminado, porém José não se levantava da cadeira. Anabela segurava uma colher de mousse que teimava em não levar à boca. Estava triste Anabela, parecendo reconhecer na vida daquele insólito homem uma qualquer coisa de familiar. Era aquela história. Era o amor, sempre tão difícil de compreender para o Homem. Naquela noite percebi o que tinha feito. Dei somente importância ao amor que sentia e nada fiz para o cultivar. O amor tem de ser cultivado. É como uma planta frágil que, se não recebe os cuidados das mãos hábeis do agricultor, morre à força das intempéries. E eu, amigos…as minhas mãos são ásperas, não sabem cuidar de planta tão subtil. A música retoma como num golpe de mágica. Novamente os tons quentes da sala animam-se pela cadência melódica daquele jazz, agora numa dinâmica crescente de alegria contraditória. Anabela, finalmente, leva a colher à boca e saboreia por dentro as palavras do Viagente. Na manhã seguinte, decidi desfazer-me de toda a vida que tinha como se me pudesse despir das minhas acções anteriores, e saí em busca de mim próprio por essas estradas que a vida nos vai fazendo cruzar. Saí à minha procura. Saí com a esperança de me renovar. Encontrar-me nas estradas que entrecruzo com os outros seres que me habitam e procurar neles, sim, procurar neles a beleza que eles têm, para me construir. Por isso saí, procurando no outro a minha existência. Por isso, hoje sou um peregrino. Um peregrino que deseja encontrar o amor que o faz viver. Por isso, depois de ver os homens e olhá-los profundamente, paro para estar contigo, contigo que me acompanhas sem estares a meu lado, companheira. O jazz fecha-se num emaranhado de sons descruzados, numa desarmonia que se melodia depois. Anabela termina a mousse e adoça a vertigem das memórias do Viagente com um sorriso faiscante e sincero.


O eco das palavras do Viagente refracta-se até à inexistência, o CD termina. O silêncio é uma música de notas ausentes. Ninguém fala. José e Anabela estão fixos nele: a vida, por vezes, arrasta um peso tão grande… aquele homem, aquele homem de sorriso largo e coração aberto, carregava o peso imenso da culpa, a força esmagadora da perda. Anabela e José não ousavam quebrar o silêncio, estavam os três suspensos num daqueles raros momentos em que se dialoga por dentro e se escuta aquela voz, filha do silêncio, que diz: “Tu também erraste!” A tal história que todos queriam que fosse relatada não surgiu. Não apareceu nenhum rio atravessado a vau, nenhuma fogueira acesa no meio do nenhures para aquecer uma lata de feijão. Muito menos uma palavra saiu daquela passagem pela aldeia em que vagueava um fantasma vestido de criança. Não, nada disso fora contado, apenas a dor, a tristeza de um homem que se fez à estrada.


Todavia, Anabela era mulher, estava habituada a sofrer, guardava em si a dor pulsante da vida. Ela sabia que da dor nasce o prazer, por isso compôs um sorriso, com um travo a tristeza. Era preciso desanuviar aquele clima pesado – uma mulher tem sempre a sensibilidade necessária para puxar uma conversa para o rumo certo. Uma vez mais, o jazz que toca soa à primeira faixa do CD. Desta vez levanta-se Anabela. Chega de jazz, já estou saturada! Por isso, dirigindo-se para o aparelho de alta-fidelidade pergunta ao Viagente que tipo de música aprecia. Gosto bastante de música tradicional. Ela sorri, agora sem o sabor da tristeza, porque há momentos em que a felicidade é tão grande que esquecemos as restantes dores que sentimos. Simplesmente, porque sinto naqueles instrumentos uma singeleza original, uma pureza dos ancestrais. Nisto, intervém José: Era só o que mais faltava, essa agora… Com que então vais-me dizer que um so-li-dó trauteado num cavaquinho está carregado dessa abrangência intelectual toda?! Só mesmo tu, olha… Ó José, lá estás tu outra vez. Essa insensibilidade egoísta, não por comentares a música, mas por escarneceres das palavras do teu amigo, empurra-te para fora de qualquer esfera que uma conversa cria. Excluis-te, porque pisas o espaço do outro, esmagas unicamente para que a tua posição sobressaia.


O Viagente, recomposto da viagem que tinha contado e revivido, aconchega os pés num tapete macio que o acarinhava, acrescenta: Mas dentro da música tradicional, o que mais me preenche é, sobretudo, a música celta. É nestes momentos que apetece soltar uma gargalhada, porém Anabela conteve-se, embora o rubor na sua face a denunciasse. Curioso! Também gosto desse tipo de música! Também sinto isso que dizes, tem graça. Aprecio uma boa sinfonia, ou um jazz cheio de swing, mas continuo a ver na nossa música tradicional a voz de um ontem que se mantém aqui. Engraçado! Não era costume Anabela falar assim deste jeito, por metáforas, mas o Viagente tinha-a contaminado pelo seu modo de falar. Na vida, por vezes acontece encontrar alguém que entende as palavras que dizemos, é nesses dias, em que descobrimos que não estamos sós, que nos apetece sorrir, dançar, falar e no fim, ou talvez no princípio, amar.


Vou colocar um CD que comprei há pouco tempo. O tal silêncio retira-se como a sombra ao chegar a noite; não há lugar para as sombras na luz que a música celta faz, por isso José também participa, sorrindo: Lá estás tu com os teus gostos despropositados! É um grupo de inspiração celta, diz Anabela, Muito interessante! De facto, interessante é como as pessoas tocam na vida uma das outras sem o saberem, sem adivinharem que uma simples palavra avulsa e inocente poderá suscitar emoções tão simples como a cheiro a flores ou tão forte como a brusquidão de um vendaval. Anabela não sabia que aquele homem que ali estava diante si era um tocador. Sentia a música para não estar sozinho, assim, simplesmente. Não trovava às damas medievais, nem cantava feitos de heróis míticos. Apenas soprava. Soprava para aquela gaita-de-foles, que agora estava partida. O CD começa a tocar e a sala preenche-se com os sons dos antigos tão sabiamente de hoje. Anabela, dançando sem ousadia, mas sensualmente descomplexada, regressa à mesa.


Se o José não menosprezava verdadeiramente esta música, pelo menos não a considerava tanto como a verdadeira música, a mais intelectual, a mais erudita. Por isso, aqueles sons nada lhe diziam. Gostas?! perguntou Anabela. O Viagente responde-lhe com um brilho nos olhos e um sorriso nos lábios. Vai haver um festival de música tradicional este fim-de-semana cá na cidade – vinha mesmo a calhar para ele, podia encontrar alguém que soubesse arranjar a sua gaita-de-foles. Uma óptima ideia seria irem vocês os dois, atalhou José, temendo que Anabela o arrastasse para meio daquele folclore que não apreciava. No calor do entusiasmo que aquela música oferecia, Anabela dispara: Vamos lá amanhã! José sorri para a ideia como um adulto para o disparate de uma criança. O marido mostrava-se insensível, e por isso quis despachar o frete para o amigo. O Viagente reparando no quadro, percebeu que o melhor seria aceitar: Combinado! Amanhã estamos lá os três.