Abraçar-te, sempre; mas (ela) e um tilintar de chaves
Saltaram para um abraço interminável. Abraçaram-se com força para agarrarem bem aquele momento e resgatarem-no ao contínuo dos acontecimentos. Abraçaram-se com força, com a força com que se abraçam os amigos sinceros. Um abraço… uma orquestra de movimentos encontrou novamente o ritmo de uma sinfonia antiga há muito não tocada. Dois corpos diferentes voltaram a sentir-se em amizade. A fusão de um sentir. Num ápice alegrias e tristezas partilhadas… o fio de uma vida emaranhou-os outra vez num novelo de duas pontas. Assaltaram-se memórias, risos de cumplicidade. Ali os dois, uma vez mais… outra vez, como em crianças. Passara muito tempo. Igual, tudo igual, no dentro deles. O Viagente regressava como se apenas ontem tivessem conversado longamente numa soirée qualquer, de uma qualquer casa que a amizade aluga, por vezes, nas estradas que unem duas vidas. Abraçavam-se e olhavam-se com uma saudade do que havia ainda por conquistar. Caminharam. Sobrepondo o braço carinhosamente sobre o José, o Viagente entrega-lhe toda a protecção e segurança dum amigo. O José também o aperta para si, recebendo com gratidão a renovada amizade deste velho amigo, que regressava da sua nunca ausência. Sorriam, ainda que o motivo do reencontro fosse entristecedor.
Emoção misturava-se em alvoraçado pandemónio de alegria. Juntos, há quanto tempo. Como tens andado… nem fazes ideia, como tem sido a minha vida desde o dia em que parti para a universidade. A vida que tínhamos e deixámos de ter é imensa quando se cresce. Eh! isso foi há tanto tempo… como ainda te lembras, José, quase que já se tinha escapado da memória. É verdade, foi mesmo assim… Dois homens que recordam em turbilhão anos, dias, momentos em vida. Como tudo era diferente, pá… Se era…, éramos novos e ingénuos, sonhadores de um além que não existe, do futuro que não quer aparecer, de um amanhã que se esqueceu de chegar. Mas tu… como estás diferente. Já não era aquele rapaz, o José, que o Viagente tinha na memória. Estudara, era agora um veterinário de sucesso, casara… Mas fala-me de ti e das tuas coisas! O Viagente observava-o. De facto algo não estava bem com aquele agora homem. Latejava-lhe nas veias uma preocupação temerosa que dissimuladamente escondia. O Viagente não tinha muito que contar, pelo menos cria ele, a um médico veterinário. A sua vida que tanto se mesclara com a do José tinha-se escorrido por outros mundos, tão diferentes e distantes. Dois homens e um abraço. Ligando agora duas esferas que sempre o foram mas que agora se tinham transformado em pequenas carapaças. Já não eram mais aquelas duas pequenas bolas de sabão que com o vento se uniam e pegavam para reflectir um raio de luz.
José abriu a porta ao Viagente. Agora vivia quase luxuosamente, descansado sobre os honorários da sua nova profissão. Entraram para uma sala-de-estar de traço elegantemente moderno, decorada de um modo artístico com quadros nas paredes. O Viagente por momentos sentiu-se desconfortável, pois sabia que o seu aspecto andrajoso não se coadunava com um estar em amizade na casa de um amigo. Essa sala estava num plano inferior à porta da entrada, dando-lhe um aconchego abertamente sofisticado. Sentaram-se os dois, prolongando a conversa que encetaram. Os risos eram agora gargalhadas contentes, e estoiros de emoção brotavam tranquilamente. O Viagente sentou-se, observava a alcatifa e a promessa de liberdade que a janela modernista lhe trazia no feixe da última luz da tarde. Porém era ali que devia estar. Era ali que queria estar, ainda que o luxo lhe causasse algum desconforto. Agora trabalho nesta medicina dos animais…Estou a montar uma clínica. Acabei agora mesmo de vir de lá… Era já o final daquela tarde. O sol entrava pelas janelas, grandes e cheias de luz. À sua volta o conforto de um lar inexplicavelmente lasso: sentia-se. Palavras, conversas… Ficas para jantar. Está decidido e não se aceitam desculpas. O Viagente estava agora preso. Não queria que a sua presença fosse um motivo para qualquer atrito. Tentou declinar, mas impossível. José, não estou decentemente condigno para me sentar à mesa de um amigo… Que se deixasse dessas coisas, pois um banho seria tomado e roupas seriam emprestadas. A conversa prossegue.
Ouve-se um tilintar de chaves que ansiosamente queriam entrar já cansadas de um dia de trabalho. É a Anabela, vais gostar de a conhecer. A porta abre. Era efectivamente Anabela. Tinha sido um encontro casual na universidade. As educadoras de infância tinham todas um fraquinho pelos rapazes dos cursos de ciências. Era normal… Conheceram-se numa noite académica, simpatizaram um com o outro. Acabaram por casar. O Viagente sabia que havia uma mulher no caminho do José, claro que sabia, era esse o problema, mas nunca a tinha visto, não sabia como era, quem era. Retinha apenas alguns traços do seu rosto e da sua personalidade, mas nada conhecia. Era final de tarde e batia na parede daquela sala um sol quente. Olá, já cheguei! As palavras saíam-lhe da boca espessas e cheias, carregadas por uma doçura estonteante. Ela entra. José diz: Olá! E apresenta sumariamente as duas personagens que estáticas se olhavam na distância, de surpresa. Os olhos da Anabela eram castanhos brilhantes como a juventude, cor de avelã profunda como a sensualidade, límpidos e serenos como a beleza. A Anabela tinha um ar simplesmente felino. O castanho dos olhos amendoados penetrava no íntimo. Tinha um olhar profundo e quente. Na sala não estava ninguém. Os quadros da parede, a janela e a liberdade que estava lá fora à espera desvaneceram-se; o Viagente ficou suspenso naquele olhar feminino. Pestanas longas e pretas escondiam as relíquias devagar numa calma sensual e natural. Olhos nos olhos na distância que se encurtava e tudo suspenso como se não houvesse mais nada para além daquela mulher. Ela vinha, semi-sorrindo para o insólito do momento. O Viagente estava visivelmente perturbado, porém, Anabela parecia desfrutar do momento, vendo nos olhos e na roupa desfeita daquele homem o sabor a aventura que a sua vida não via há muito. Por isso, dirigia-se para ele divertida e sedutora. José estava apagado algures pela sala. O Viagente sentia vergonha de não o conseguir ver. Mas não conseguia, não podia tirar os olhos da mulher que se aproximava. Beijou-o na face esquerda primeiro com os seus lábios carnudos e subtilmente húmidos, pousando a mão direita sobre o braço do Viagente. Ele podia sentir o perfume natural da presença e o seu coração a estourar de fantasia. Prazer… disse o Viagente esmagado por aquela mulher, suando friamente nas mãos. Afasta-se devagar, olha nos olhos o Viagente como num apelo e ele beija-lhe a face, simulando um à-vontade que não tinha. Os cabelos dela cobriram-lhe a face momentaneamente. Eram cabelos de chocolate-castanho que deslizava em tranquilidade sedutora, lisos e compridos. O toque da sua pele morena arrepiou o Viagente desde o princípio que faz dele homem. Sobressaltado e envergonhado, o Viagente afasta o rosto da face quente de Anabela.
Na camisa que trazia estavam as marcas de uma tarde de reboliço. Os miúdos não param de me sujar quando é o dia de expressão plástica. Estranhamente, aquelas manchas de um cromatismo desequilibrado exalavam uma silhueta de escultura. A Anabela era uma mulher naturalmente quente pela sua simpatia pueril. Doce, realmente cândida, mas tenra e felina, como uma fêmea em desfile terno. Sobriamente vestida, condizente com o respeito próprio que uma pessoa com a sua profissão deve ter, a mulher do José era simplesmente esplêndida.
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