quinta-feira, 24 de abril de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

O banho que não lava a sujidade que fere
Anabela… o calor da tua pele no toque subtil que trocámos, o teu perfume em toda a sala como uma promessa irrealizável e o teu sabor... o teu sabor a Primavera, leve e fresco como uma surpresa. Ainda não tinham terminado o cumprimento. Anabela… os teus cabelos perfumando a minha mão eternamente. Saiu, subitamente, um seco Anabela… largado em suspensão pela sala. Faltava-lhe aquele pedaço que o protocolo e a etiqueta obrigam: é este o meu amigo de que te falava. Já não era preciso, Anabela já o tinha tocado naquele cumprimento de circunstância É verdade, querido… Com aquela aridez, José voltava a entrar na sala para que a conversa voltasse a ser a três. O Viagente percebeu que o José sentira que, de repente, tinha sido despejado da sua própria casa, decidindo, depois, entrar sem bater à porta. Felizmente estavam outra vez os três naquela sala, em que o sol ainda se esforçava por entrar numa última tentativa de prolongar o dia. O silêncio, que com o José tinha entrado na sala, fora quebrado por um Anda! Vou-te mostrar o resto da casa! José arrasta o amigo, que a observa, distraidamente, apreciando o gosto caro do companheiro. Melancólica e tímida, Anabela seguia atrás dos amigos sem dizer palavra. Vai para a cozinha deixar as compras que trouxera do supermercado, antecipando a realização do jantar. Este é o quarto onde vais ficar! O Viagente coloca docemente o seu cajado ao lado da cama para o segurar sempre vertical, quando o sonho ousasse mais do que a vida poderia prometer. Olha em volta. É um bonito quarto, com uma varanda de onde se pode ver a cidade. Mas não toda, porque isso é um privilégio dos ricos e José não era rico. Era um homem esforçado que tentava subir a pulso pelo complicado emaranhado da estrutura social. Da varanda, viam-se alguns prédios e a parte de trás da praça, onde devia estar Cesário a fotografar. Pousou sobre a cama o odre vazio e o alforge onde estava o diário. No chão, por cima do tapete, depositou a gaita-de-foles como uma derrota, como o fim de uma música nunca audível. O tapete absorveu o último som, o gemido que poderia ter soado como um alarme da vida que acontece lá fora – lá fora, por todo esse lá fora por onde o Viagente errou – se aquele tapete não fosse tão luxuoso e alcatifado. Mas era. A gaita-de-foles deitou-se partida e silenciosa.
Podes ficar aqui o tempo que quiseres! disse, abrindo os braços, José. E os dois companheiros voltaram a abraçar-se emotivamente, batendo nas costas com amizade. Ficarei! Mas primeiro tenho de tomar um banho! Anda, dou-te uma roupa…

Já na casa-de-banho, o Viagente por fim pôde retemperar as suas forças com uma água quentinha e o conforto de diversos sabonetes, cremes de banho e champôs. São tantos! exclamou já não me lembrava! Por vezes, parece que esqueço o tempo em que vivo. Por vezes, parece que vivo por dentro de um passado qualquer imaginado que quero supor que é o meu presente… A água caía reconfortante. Naquele compartimento, Sozinho. Sai em humanizada pressão a água quente pelos buracos finos do chuveiro. Prepara-se para o banho que tardava há muito. Escorre-se a água por aquele corpo, uma água límpida que sararia todas as mazelas ainda tão presentes daquele tempo junto ao pelourinho. Já passou. E está agora ali na casa daquele amigo com quem tinha tanto em comum. Sentiu-lhe no seu olhar intranquilidade. Estava incompreensivelmente distante. Sentia-lhe… A água permanecia quente, exalando vapores opacos pela casa-de-banho. Pelo ralo esvaíam-se as últimas sequelas de uma caminhada intensa. O barulho marulhante daquela água tranquilizava-o. Pensava para si num nada plácido e harmonioso. Meditava na incapacidade de a água e o sabão não conseguirem lavar estados de alma e dores de consciência. Um banho… Aquele pairar meditativo do Viagente interrompe-se com palavras soltas, que não temem entrar descaradamente pela porta que se mantinha fechada. Abruptas, irrompem exigindo ser ouvidas. Enquanto se estava a ensaboar, ouviu a voz forte de José emergindo pelo silêncio que a água deixava. Anabela e José discutiam. Ainda o teu perfume na minha mão, Anabela, perfume eterno que me envolve o corpo num abraço quente e suave… Anabela em todos os lugares daquela banheira, nas gotas de água, que por mim escorregam lentamente, como o teu cabelo no meu rosto. És sempre assim eram palavras masculinas. Em frase, este conjunto de palavras normalmente vem acompanhado por um ponto de exclamação autoritário – coloquemo-lo És sempre assim! Era o José do outro lado da porta. Longe, longe José, tão longe… gritas tão alto e não te ouço. Estás tão longe, José… Assim… decerto que caracterizaria alguma coisa. Mas assim como? O que é ser assim? José, a Anabela é assim como? Não vejo a pertinência desse ponto de exclamação na frase. Ela era assim, mas com umas suaves reticências das quais lhe não vias a beleza. Não percebo… tens a mania de… O Viagente apanhava em descontexto palavras desconexas. Eram para a Anabela, disso estava certo. Vinham emotivamente da cozinha. Tentava encontrar-se algum sentido de causalidade, ou tão-somente um fio de coerência. A Anabela fazia a comida, simulando ignorar as palavras duras do marido: Julgas que me enganas? Relembro… relembro a tua forma de amar. Uma forma de amar em que tu amas para ser amado como numa troca mercantilista. E tu nunca ficavas a perder… A água corria pelos cabelos sujos do Viagente. O seu calor apaziguava as feridas…

Sempre que trago homens… a mesma coisa! Porquê? Porque gritas assim José, não eras tão intempestivo quando na escola nos tentavam passar a perna ao trocarmos berlindes. Relativizavas tudo… Tinha que ser saiu tristemente de um Viagente desconcertado por toda a situação. Sentiste o frio do vento e o vazio da rua, quando te expulsámos da sala com aquele cumprimento. Não tive culpa. Claro que não teve culpa, a Anabela é simplesmente uma mulher plena que não passaria indiferente em qualquer espaço. Foi sem querer, pá! Uns remorsos infundados inundavam o Viagente por cima daquela água quente, incapaz de afastar tal sensação. Tu não vês… Ver. Não sei bem o que é isso. Gostava de ver, de ver o que é a relação entre as pessoas, perceber porque há-de alguém estar triste e resolver: encontrar uma solução, como um alquimista, que ensine a todos o como amar-se. Mas eu não sei, não consigo ouvir o que vocês dizem aí do outro lado da porta, nessa divisão partilhada. Estou na casa-de-banho, só, a água suaviza a minha pele dura da jornada e não consigo ouvir…

Mas o que é que eu fiz, diz lá… uma frase de feminino nervoso. Por isso, veio com reticências. É sabido que elas têm mais força argumentativa do que a brutalidade daquele ponto de exclamação. Como deixam em suspensão aquilo que não foi dito, que ficara propositadamente em entrelinear contexto, as reticências são muito mais ameaçadoras e desconfortáveis. José não disse, não podia dizer nada. Eram apenas os seus ciúmes que o aguilhoavam para continuar numa discussão disparatadamente desconcertante. Somente um masculino tu sabes o que é que eu estou a falar saiu, apenas para tentar ficar por cima. Eu sei bem do que é que falas, José, não me precisas de dizer. Talvez fosse melhor tentares dizê-lo à Anabela, mas não o queres porque não consegues. Um gemido quase surdo …nunca te fiz isso… anuncia o princípio frágil do choro de uma mulher. Anabela, o contorno sensual do teu corpo junto à perturbação da minha vergonha. José crescia para a esposa numa violência verbal que a ele próprio surpreendia, se pudesse pensar. Era a dor. A dor inflingida pela perda anunciada ou pensada da mulher que sempre amou, e ainda por cima para um amigo, para aquele amigo que tomava banho na sua banheira e dormiria no quarto que lhe facultara. O Viagente não ouvia, não podia ouvir, porque José não dizia o que sentia, vociferava impropérios sem destacar a razão de onde provinham. És uma falsa.
A água deixou de correr. O Viagente tinha fechado a torneira, dando a entender pelo parar do trabalhar da caldeira que não tardaria a chegar à cozinha. Com a água foram também aquelas frases pelo ramal do esgoto. Que se sumam para longe, de onde não possam jamais encontrar o caminho de regresso. Terminava o banho a pensar, a pensar não no que tinha feito, porque nada fizera, mas no que desconhecia que iria fazer.
André Matias
Ricardo Oliveira

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

Abraçar-te, sempre; mas (ela) e um tilintar de chaves
Saltaram para um abraço interminável. Abraçaram-se com força para agarrarem bem aquele momento e resgatarem-no ao contínuo dos acontecimentos. Abraçaram-se com força, com a força com que se abraçam os amigos sinceros. Um abraço… uma orquestra de movimentos encontrou novamente o ritmo de uma sinfonia antiga há muito não tocada. Dois corpos diferentes voltaram a sentir-se em amizade. A fusão de um sentir. Num ápice alegrias e tristezas partilhadas… o fio de uma vida emaranhou-os outra vez num novelo de duas pontas. Assaltaram-se memórias, risos de cumplicidade. Ali os dois, uma vez mais… outra vez, como em crianças. Passara muito tempo. Igual, tudo igual, no dentro deles. O Viagente regressava como se apenas ontem tivessem conversado longamente numa soirée qualquer, de uma qualquer casa que a amizade aluga, por vezes, nas estradas que unem duas vidas. Abraçavam-se e olhavam-se com uma saudade do que havia ainda por conquistar. Caminharam. Sobrepondo o braço carinhosamente sobre o José, o Viagente entrega-lhe toda a protecção e segurança dum amigo. O José também o aperta para si, recebendo com gratidão a renovada amizade deste velho amigo, que regressava da sua nunca ausência. Sorriam, ainda que o motivo do reencontro fosse entristecedor.
Emoção misturava-se em alvoraçado pandemónio de alegria. Juntos, há quanto tempo. Como tens andado… nem fazes ideia, como tem sido a minha vida desde o dia em que parti para a universidade. A vida que tínhamos e deixámos de ter é imensa quando se cresce. Eh! isso foi há tanto tempo… como ainda te lembras, José, quase que já se tinha escapado da memória. É verdade, foi mesmo assim… Dois homens que recordam em turbilhão anos, dias, momentos em vida. Como tudo era diferente, pá… Se era…, éramos novos e ingénuos, sonhadores de um além que não existe, do futuro que não quer aparecer, de um amanhã que se esqueceu de chegar. Mas tu… como estás diferente. Já não era aquele rapaz, o José, que o Viagente tinha na memória. Estudara, era agora um veterinário de sucesso, casara… Mas fala-me de ti e das tuas coisas! O Viagente observava-o. De facto algo não estava bem com aquele agora homem. Latejava-lhe nas veias uma preocupação temerosa que dissimuladamente escondia. O Viagente não tinha muito que contar, pelo menos cria ele, a um médico veterinário. A sua vida que tanto se mesclara com a do José tinha-se escorrido por outros mundos, tão diferentes e distantes. Dois homens e um abraço. Ligando agora duas esferas que sempre o foram mas que agora se tinham transformado em pequenas carapaças. Já não eram mais aquelas duas pequenas bolas de sabão que com o vento se uniam e pegavam para reflectir um raio de luz.
José abriu a porta ao Viagente. Agora vivia quase luxuosamente, descansado sobre os honorários da sua nova profissão. Entraram para uma sala-de-estar de traço elegantemente moderno, decorada de um modo artístico com quadros nas paredes. O Viagente por momentos sentiu-se desconfortável, pois sabia que o seu aspecto andrajoso não se coadunava com um estar em amizade na casa de um amigo. Essa sala estava num plano inferior à porta da entrada, dando-lhe um aconchego abertamente sofisticado. Sentaram-se os dois, prolongando a conversa que encetaram. Os risos eram agora gargalhadas contentes, e estoiros de emoção brotavam tranquilamente. O Viagente sentou-se, observava a alcatifa e a promessa de liberdade que a janela modernista lhe trazia no feixe da última luz da tarde. Porém era ali que devia estar. Era ali que queria estar, ainda que o luxo lhe causasse algum desconforto. Agora trabalho nesta medicina dos animais…Estou a montar uma clínica. Acabei agora mesmo de vir de lá… Era já o final daquela tarde. O sol entrava pelas janelas, grandes e cheias de luz. À sua volta o conforto de um lar inexplicavelmente lasso: sentia-se. Palavras, conversas… Ficas para jantar. Está decidido e não se aceitam desculpas. O Viagente estava agora preso. Não queria que a sua presença fosse um motivo para qualquer atrito. Tentou declinar, mas impossível. José, não estou decentemente condigno para me sentar à mesa de um amigo… Que se deixasse dessas coisas, pois um banho seria tomado e roupas seriam emprestadas. A conversa prossegue.
Ouve-se um tilintar de chaves que ansiosamente queriam entrar já cansadas de um dia de trabalho. É a Anabela, vais gostar de a conhecer. A porta abre. Era efectivamente Anabela. Tinha sido um encontro casual na universidade. As educadoras de infância tinham todas um fraquinho pelos rapazes dos cursos de ciências. Era normal… Conheceram-se numa noite académica, simpatizaram um com o outro. Acabaram por casar. O Viagente sabia que havia uma mulher no caminho do José, claro que sabia, era esse o problema, mas nunca a tinha visto, não sabia como era, quem era. Retinha apenas alguns traços do seu rosto e da sua personalidade, mas nada conhecia. Era final de tarde e batia na parede daquela sala um sol quente. Olá, já cheguei! As palavras saíam-lhe da boca espessas e cheias, carregadas por uma doçura estonteante. Ela entra. José diz: Olá! E apresenta sumariamente as duas personagens que estáticas se olhavam na distância, de surpresa. Os olhos da Anabela eram castanhos brilhantes como a juventude, cor de avelã profunda como a sensualidade, límpidos e serenos como a beleza. A Anabela tinha um ar simplesmente felino. O castanho dos olhos amendoados penetrava no íntimo. Tinha um olhar profundo e quente. Na sala não estava ninguém. Os quadros da parede, a janela e a liberdade que estava lá fora à espera desvaneceram-se; o Viagente ficou suspenso naquele olhar feminino. Pestanas longas e pretas escondiam as relíquias devagar numa calma sensual e natural. Olhos nos olhos na distância que se encurtava e tudo suspenso como se não houvesse mais nada para além daquela mulher. Ela vinha, semi-sorrindo para o insólito do momento. O Viagente estava visivelmente perturbado, porém, Anabela parecia desfrutar do momento, vendo nos olhos e na roupa desfeita daquele homem o sabor a aventura que a sua vida não via há muito. Por isso, dirigia-se para ele divertida e sedutora. José estava apagado algures pela sala. O Viagente sentia vergonha de não o conseguir ver. Mas não conseguia, não podia tirar os olhos da mulher que se aproximava. Beijou-o na face esquerda primeiro com os seus lábios carnudos e subtilmente húmidos, pousando a mão direita sobre o braço do Viagente. Ele podia sentir o perfume natural da presença e o seu coração a estourar de fantasia. Prazer… disse o Viagente esmagado por aquela mulher, suando friamente nas mãos. Afasta-se devagar, olha nos olhos o Viagente como num apelo e ele beija-lhe a face, simulando um à-vontade que não tinha. Os cabelos dela cobriram-lhe a face momentaneamente. Eram cabelos de chocolate-castanho que deslizava em tranquilidade sedutora, lisos e compridos. O toque da sua pele morena arrepiou o Viagente desde o princípio que faz dele homem. Sobressaltado e envergonhado, o Viagente afasta o rosto da face quente de Anabela.
Na camisa que trazia estavam as marcas de uma tarde de reboliço. Os miúdos não param de me sujar quando é o dia de expressão plástica. Estranhamente, aquelas manchas de um cromatismo desequilibrado exalavam uma silhueta de escultura. A Anabela era uma mulher naturalmente quente pela sua simpatia pueril. Doce, realmente cândida, mas tenra e felina, como uma fêmea em desfile terno. Sobriamente vestida, condizente com o respeito próprio que uma pessoa com a sua profissão deve ter, a mulher do José era simplesmente esplêndida.