O banho que não lava a sujidade que fere
Anabela… o calor da tua pele no toque subtil que trocámos, o teu perfume em toda a sala como uma promessa irrealizável e o teu sabor... o teu sabor a Primavera, leve e fresco como uma surpresa. Ainda não tinham terminado o cumprimento. Anabela… os teus cabelos perfumando a minha mão eternamente. Saiu, subitamente, um seco Anabela… largado em suspensão pela sala. Faltava-lhe aquele pedaço que o protocolo e a etiqueta obrigam: é este o meu amigo de que te falava. Já não era preciso, Anabela já o tinha tocado naquele cumprimento de circunstância É verdade, querido… Com aquela aridez, José voltava a entrar na sala para que a conversa voltasse a ser a três. O Viagente percebeu que o José sentira que, de repente, tinha sido despejado da sua própria casa, decidindo, depois, entrar sem bater à porta. Felizmente estavam outra vez os três naquela sala, em que o sol ainda se esforçava por entrar numa última tentativa de prolongar o dia. O silêncio, que com o José tinha entrado na sala, fora quebrado por um Anda! Vou-te mostrar o resto da casa! José arrasta o amigo, que a observa, distraidamente, apreciando o gosto caro do companheiro. Melancólica e tímida, Anabela seguia atrás dos amigos sem dizer palavra. Vai para a cozinha deixar as compras que trouxera do supermercado, antecipando a realização do jantar. Este é o quarto onde vais ficar! O Viagente coloca docemente o seu cajado ao lado da cama para o segurar sempre vertical, quando o sonho ousasse mais do que a vida poderia prometer. Olha em volta. É um bonito quarto, com uma varanda de onde se pode ver a cidade. Mas não toda, porque isso é um privilégio dos ricos e José não era rico. Era um homem esforçado que tentava subir a pulso pelo complicado emaranhado da estrutura social. Da varanda, viam-se alguns prédios e a parte de trás da praça, onde devia estar Cesário a fotografar. Pousou sobre a cama o odre vazio e o alforge onde estava o diário. No chão, por cima do tapete, depositou a gaita-de-foles como uma derrota, como o fim de uma música nunca audível. O tapete absorveu o último som, o gemido que poderia ter soado como um alarme da vida que acontece lá fora – lá fora, por todo esse lá fora por onde o Viagente errou – se aquele tapete não fosse tão luxuoso e alcatifado. Mas era. A gaita-de-foles deitou-se partida e silenciosa.
Podes ficar aqui o tempo que quiseres! disse, abrindo os braços, José. E os dois companheiros voltaram a abraçar-se emotivamente, batendo nas costas com amizade. Ficarei! Mas primeiro tenho de tomar um banho! Anda, dou-te uma roupa…
Já na casa-de-banho, o Viagente por fim pôde retemperar as suas forças com uma água quentinha e o conforto de diversos sabonetes, cremes de banho e champôs. São tantos! exclamou já não me lembrava! Por vezes, parece que esqueço o tempo em que vivo. Por vezes, parece que vivo por dentro de um passado qualquer imaginado que quero supor que é o meu presente… A água caía reconfortante. Naquele compartimento, Sozinho. Sai em humanizada pressão a água quente pelos buracos finos do chuveiro. Prepara-se para o banho que tardava há muito. Escorre-se a água por aquele corpo, uma água límpida que sararia todas as mazelas ainda tão presentes daquele tempo junto ao pelourinho. Já passou. E está agora ali na casa daquele amigo com quem tinha tanto em comum. Sentiu-lhe no seu olhar intranquilidade. Estava incompreensivelmente distante. Sentia-lhe… A água permanecia quente, exalando vapores opacos pela casa-de-banho. Pelo ralo esvaíam-se as últimas sequelas de uma caminhada intensa. O barulho marulhante daquela água tranquilizava-o. Pensava para si num nada plácido e harmonioso. Meditava na incapacidade de a água e o sabão não conseguirem lavar estados de alma e dores de consciência. Um banho… Aquele pairar meditativo do Viagente interrompe-se com palavras soltas, que não temem entrar descaradamente pela porta que se mantinha fechada. Abruptas, irrompem exigindo ser ouvidas. Enquanto se estava a ensaboar, ouviu a voz forte de José emergindo pelo silêncio que a água deixava. Anabela e José discutiam. Ainda o teu perfume na minha mão, Anabela, perfume eterno que me envolve o corpo num abraço quente e suave… Anabela em todos os lugares daquela banheira, nas gotas de água, que por mim escorregam lentamente, como o teu cabelo no meu rosto. És sempre assim eram palavras masculinas. Em frase, este conjunto de palavras normalmente vem acompanhado por um ponto de exclamação autoritário – coloquemo-lo És sempre assim! Era o José do outro lado da porta. Longe, longe José, tão longe… gritas tão alto e não te ouço. Estás tão longe, José… Assim… decerto que caracterizaria alguma coisa. Mas assim como? O que é ser assim? José, a Anabela é assim como? Não vejo a pertinência desse ponto de exclamação na frase. Ela era assim, mas com umas suaves reticências das quais lhe não vias a beleza. Não percebo… tens a mania de… O Viagente apanhava em descontexto palavras desconexas. Eram para a Anabela, disso estava certo. Vinham emotivamente da cozinha. Tentava encontrar-se algum sentido de causalidade, ou tão-somente um fio de coerência. A Anabela fazia a comida, simulando ignorar as palavras duras do marido: Julgas que me enganas? Relembro… relembro a tua forma de amar. Uma forma de amar em que tu amas para ser amado como numa troca mercantilista. E tu nunca ficavas a perder… A água corria pelos cabelos sujos do Viagente. O seu calor apaziguava as feridas…
Sempre que trago homens… a mesma coisa! Porquê? Porque gritas assim José, não eras tão intempestivo quando na escola nos tentavam passar a perna ao trocarmos berlindes. Relativizavas tudo… Tinha que ser saiu tristemente de um Viagente desconcertado por toda a situação. Sentiste o frio do vento e o vazio da rua, quando te expulsámos da sala com aquele cumprimento. Não tive culpa. Claro que não teve culpa, a Anabela é simplesmente uma mulher plena que não passaria indiferente em qualquer espaço. Foi sem querer, pá! Uns remorsos infundados inundavam o Viagente por cima daquela água quente, incapaz de afastar tal sensação. Tu não vês… Ver. Não sei bem o que é isso. Gostava de ver, de ver o que é a relação entre as pessoas, perceber porque há-de alguém estar triste e resolver: encontrar uma solução, como um alquimista, que ensine a todos o como amar-se. Mas eu não sei, não consigo ouvir o que vocês dizem aí do outro lado da porta, nessa divisão partilhada. Estou na casa-de-banho, só, a água suaviza a minha pele dura da jornada e não consigo ouvir…
Mas o que é que eu fiz, diz lá… uma frase de feminino nervoso. Por isso, veio com reticências. É sabido que elas têm mais força argumentativa do que a brutalidade daquele ponto de exclamação. Como deixam em suspensão aquilo que não foi dito, que ficara propositadamente em entrelinear contexto, as reticências são muito mais ameaçadoras e desconfortáveis. José não disse, não podia dizer nada. Eram apenas os seus ciúmes que o aguilhoavam para continuar numa discussão disparatadamente desconcertante. Somente um masculino tu sabes o que é que eu estou a falar saiu, apenas para tentar ficar por cima. Eu sei bem do que é que falas, José, não me precisas de dizer. Talvez fosse melhor tentares dizê-lo à Anabela, mas não o queres porque não consegues. Um gemido quase surdo …nunca te fiz isso… anuncia o princípio frágil do choro de uma mulher. Anabela, o contorno sensual do teu corpo junto à perturbação da minha vergonha. José crescia para a esposa numa violência verbal que a ele próprio surpreendia, se pudesse pensar. Era a dor. A dor inflingida pela perda anunciada ou pensada da mulher que sempre amou, e ainda por cima para um amigo, para aquele amigo que tomava banho na sua banheira e dormiria no quarto que lhe facultara. O Viagente não ouvia, não podia ouvir, porque José não dizia o que sentia, vociferava impropérios sem destacar a razão de onde provinham. És uma falsa.
A água deixou de correr. O Viagente tinha fechado a torneira, dando a entender pelo parar do trabalhar da caldeira que não tardaria a chegar à cozinha. Com a água foram também aquelas frases pelo ramal do esgoto. Que se sumam para longe, de onde não possam jamais encontrar o caminho de regresso. Terminava o banho a pensar, a pensar não no que tinha feito, porque nada fizera, mas no que desconhecia que iria fazer.
André Matias
Ricardo Oliveira