terça-feira, 14 de outubro de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

aCordar

Apetecia-lhe, simplesmente. Queria, nada mais. Ela estava a dormir, mas isso não importava. O corpo dele imperava agora e exigia satisfação. Não seria bruto, mas não abdicaria do seu vigor. Anabela, vais ser dele, por momentos, mesmo que tenhas de acordar. As mãos gotejaram da cara para os ombros levando consigo, arrastadas, as alças da camisa de dormir. Era de seda, muito macia, e de cor branca levemente transparente que deixava antever o peito de Anabela. Quer aquele corpo, e agora, não sei bem porquê. Eram cinco da madrugada; José queria compensar o seu cansaço com um pedaço de sexo servido ali mesmo, sem nada, sem ambiente nem contexto. Quer ouvir a Anabela a gemer, gemer de prazer e até mesmo de dor. Simplesmente. Quer vê-la nua, intensa, cheia. Sentir-lhe a pele quente, o intenso dos gritos, o ritmo do ranger da cama e os arranhões daquelas unhas que, tantas vezes, ele não entendia para quê de tanto cuidado. Estava ali deitada, ao seu lado. Agarrava-a agora pelas ancas, encostando-se contra ela até sentir no seu corpo o seu sexo, agora cúmplice e ansioso por a encontrar. Anabela já sem a tal camisa virara-se não de costas para José, expondo toda a sua beleza de fêmea felina, de pele morena e cálida, comestível. Queria-a. Trincou-a até soltar um grito de dor.

            Estava cansado. E disse-lhe que não. Afinal não valeria a pena. Que voltasse a dormir. Mãos pela pele, pelos peitos, pelos cabelos, mãos ao encontro de mãos que se desencontravam nas costas do outro. Boa noite! Boa noite, amor! José já dormia, mas Anabela que tinha sido desperta, velava o amor que sentia. Aqueles cumprimentos surgiram secos. Um, gasto pela aridez da rudeza de carácter; o outro, definhado por uma frieza de ausência e de solidão. Aquela mulher ali, deitada, como se tivesse sido abandonada e preterida, sente no lugar que o marido ocupa um vazio que a diminui – tanto e tanto que chega a questionar os seus atributos de mulher. Por vezes, Anabela, o amor tem destas coisas. Sabes, os homens ainda não aprenderam a amar. É difícil amar sem tropeçar em atitudes estúpidas. Sabes, Anabela, quando a felicidade foi distribuída pelas pessoas, houve algumas que a colheram às pazadas e outras, distantes no amontoado que se fazia, ficaram atrás à espera das migalhas que lhes cabiam. Por vezes, as pessoas fazem coisas estúpidas. O Homem não sabe amar. Não o merecias, Ana que cada vez mais vais perdendo o final do teu nome.

O tilintar da louça na cozinha desperta o Viagente que repousara com o conforto há muito não tido. Um esquivo raio de sol perpassava pela persiana fechada, culminando na doçura do tapete. Ainda dorido, levanta-se e abre a janela. Estava uma manhã soalheira de azul profundo e interminável. O Viagente inspira a suave brisa matinal daquele Sábado, enquanto, na cozinha, as louças se agitavam bruscamente. Ele pára, reflecte sobre as palavras que José lhe havia confiado na noite anterior. A cafeteira atirada para o fogão e a voz de Anabela que praguejava. A manhã tinha há muito começado para ela, mas só agora é que se levantara para preparar o pequeno-almoço. O rádio tocava as oito e meia, noticiando as principais novidades que numa manhã de Sábado, igual a tantas outras, poderiam acontecer.

O Viagente olha o céu e a distância daquele azul limpo. Estava um belo dia para celebrar, mas na cozinha não havia sol e o azul celeste escondia-se atrás de uma nuvem. Veste-se e desce. Anabela estava sentada com a cabeça entre as mãos, a janela fechada e o leite a ferver. Bom dia, Anabela! Bom dia! Ela ergue o olhar. Olhar de quem não dormira, olhar desvairado daqueles que buscam o que, muitas vezes, nem eles próprios sabem… um olhar triste e cansado. Já acordado? O Viagente acorda, não ouvira o que se tinha passado durante a noite, pois o quente de uma cama e a comodidade que essa sensação comporta são pequenos pormenores que devem ser saboreados em plenitude. Dormira, para sempre… O leite fervia atrás, transbordara e o gás, por ele apagado, adensava o ar. O Viagente desliga o fogão e abre a janela perante a impassividade da dona da casa que estagnava, despenteada, observando a parede.

O José tinha saído cerca de meia hora antes para ir ver o seu paciente canídeo: havia dados para analisar, uma pequena festa para fazer. É dever de qualquer veterinário confirmar se o animal tinha passado bem a noite, se inspirava cuidados de maior. Por isso, foi. Disse que assim que pudesse voltava para ir à tal feira, seguindo o programa que tinham delineado.

A Anabela sentia-se perdida na cozinha que ela própria tinha decorado. Os móveis pareciam-lhe vazios e baços, ainda que tivessem os serviços que comprara meses antes de casar; o chão estava frio, embora passadeiras o atapetassem ricamente. As bancadas estavam nuas, e nem os electrodomésticos que nelas estavam arrumados lhe conferiam o movimento e utilidade que mereciam. Havia apenas um silêncio profundo e um frio de gelo absoluto. O Viagente, quando entrar na cozinha, saudando Anabela, sentiu nas palavras da esposa de José esse mesmo frio e um vazio no estar. Era linda a mulher que agora se levantava para segurar um sorriso ao Viagente; era o sorriso que se entrega aos estranhos, quando o nosso mundo está em turbilhão, mas que ninguém deve perceber. Despenteada, sorri, nos seus olhos-avelã, sufocando as lágrimas. Ele viu naquela cara, ainda ensonada, a mesma expressão de desconforto que na noite anterior ela tinha desenhado depois da discussão. O Viagente relembrava-a, ontem, linda e magnífica, como sempre. Com uma maquilhagem de palavras e sorrisos, ela tentou agora disfarçar uma ou outra lágrima que descuidadamente verteu dos seus olhos. Mesmo estando na sua casa, a presença de um estranho deixava aquela mulher desconfortável e sem jeito. No início, o Viagente fingiu não ter visto aquele cenário. A frase quase sempre limpa Está um lindo dia é demasiado óbvia para quem ouve. Certamente percebeu alguma coisa durante a madrugada. Valha-me Deus… depois daquela cena antes do jantar, só faltava mesmo isso, pensavas para ti. Mas ele não ouviu nada; tinha dormido como uma pedra e a sua justeza não permitiria tal afronta. O Viagente com aquela frase apenas queria aliviar um certo ar pesado. Anabela ainda assim era formidável. Passou a mão pela cara e pelo cabelo, declarando: De vez em quando não consigo dormir e, depois, fico neste estado que vês e sorriu. Sorriu com as forças que vêm do fundo do sofrimento. Um sorriso de vencedor depois de uma derrota. Um sorriso de uma mulher soberba.

O Viagente contemplava… Ana era uma mulher magnífica, Bela, concebida no pecado feliz da Natureza. O pijama que trazia era leve como ela tinha sido. Estava em calções, exibindo a perfeição escultural das pernas, e o top colado cingia-lhe o redondo dos seios livres. O Viagente contemplava. Uma mulher, ali, lindíssima, que impotentemente deixava macular a sua beleza pelas facécias que a vida nos impinge. Ele sabia-o: sabia porque também é um homem como todos os outros; sabia porque sente que a vida vivida com intensidade nos arrasta para onde só os outros é que podem cair; sabia porque era por isso que ali estava – para ajudar o amigo. E sorria com essas pilhérias da vida, sorria ainda assim com o espírito crente de que há uma escapatória, mesmo quando tudo parece perdido. Ris Anabela, vejo-o, ris com aquela vontade de querer mostrar o íntimo de ti. Queres falar, fala. Estou aqui para te ouvir. Sempre há noites em que não se pode dormir. Está um calorão… Anabela condescende: É verdade… e arrasta-se para junto dele, puxando uma cadeira, onde o senta. O Viagente sentado observa de perto o corpo quente de Anabela e tacteia o perfume do seu braço que lhe indica o lugar. Tinha ficado um silêncio incomodativo naquele espaço que obrigava a que outra frase oca não deixasse morrer o momento. O diálogo tinha necessariamente de levar outro rumo. O rumo da abertura e do alívio. O que queres comer? Na expressão de Anabela havia uma ruga, traço calcado pelas maldades que a vida faz. Rasgava-lhe a testa, ainda subtil, pondo um não-sei-quê de tristeza. Era quase imperceptível. O Viagente nunca tinha reparado nela, talvez devido aos cosméticos, ou talvez fruto de um fingimento de felicidade que guardamos todos os dias para os outros. E Anabela guardava – tinha, na verdade, essa felicidade para os que estavam à sua volta. Todavia, agora não a conseguia esconder. O Viagente via a ruga claramente. Era uma ruga das maldades que a vida nos faz. A velhice que chega antes do tempo e se instala para sempre; uma velhice triste que te põe feia, Anabela. Uma velhice que te desenha traços que não são teus, sulcos profundos que te pesam e te sufocam. Nem sempre é o tempo que nos envelhece, por vezes são as pessoas. O Viagente ainda não lhe tinha respondido, instalara-se um silêncio na cozinha. Anabela também estava estranhamente constrangida. Havia qualquer coisa que lhe bloqueava as palavras: ou era a sua clara falta de à-vontade perante um homem que não conhecia, ou então um quelque chose estranho que nele brotava.

Deixa estar que eu faço. O mínimo que eu posso fazer é preparar o pequeno-almoço. Acto gentil de um homem que se disponibiliza para elaborar a primeira refeição do dia. Há muito tempo que ninguém me prepara o pequeno-almoço. O Zé anda sempre muito ocupado... O Viagente notou logo ali algo de estranho naquela presença fortuita do ninguém, quando lá deveria estar o José. Não era flagrante, mas simplesmente o subconsciente de uma mulher sistematicamente não olhada. O Viagente levanta-se, em tons de simpatia descomplexada e diz Saem duas torradas quentinhas com leite morno. O pão não era fresco e o pacote de leite já estava aberto, mas ainda assim ele soube dar-lhe as voltas necessárias para tornar aqueles elementos num momento de requinte.

Anabela sentou-se, docemente obrigada pelo amigo. Foi ele que a serviu, solícito. Ela sorria para aquele homem que a começava a fascinar. Tinha um travo a aventura, um sabor a humanidade. Era um bom homem. Fumega da chávena um cheiro macio, branco, e maduro. Estranho por assim dizer, não cheirava praticamente a leite, mas a um perfume atractivo, estranhamente atractivo. Sentados frente-a-frente, o Viagente levanta-se para ir buscar as torradas. Quentes, derretiam a manteiga que se emaranhava pelos favos secos do pão. Tranquilamente a conversa foi surgindo e o ambiente tornou-se mais claro. Já nem se lembrava de um pequeno-almoço tão aconchegante: como é bom sentir o conforto de uma companhia que nos ouve… Então como é ter de aturar tanta criançada?! Anabela ri agora diferente. Ah, os meus meninos… são tão lindos! Adoro trabalhar com eles. Amo-os a todos. É como se fossem meus filhos. E saber que amanhã serão homens… Sabes, é por isso que dou o máximo por eles. Trabalho como se tivesse uma missão nas minhas mãos, a missão de fazer das crianças homens verdadeiros, que entendam o valor do amor. Ela falava, como se sentisse que de facto estava alguém do outro lado a ouvi-la. Iam aparecendo migalhas que caiam para a toalha branca e o pires sujava-se com uma ou outra gota mais ríspida que saltara. Deve ser, realmente, muito aliciante trabalhar com miúdos. Sempre podemos voltar à nossa infância e tentar viver com eles os restos que ainda somos da pureza que já foi e não volta mais. A Anabela tinha saído da mesa para levar a louça suja para a máquina-de-lavar. Apetecia-lhe confiar toda a vida nele. Apetecia-lhe falar, contar as amarguras, a tristeza que a vida lhe fazia. Ela contava: Vês a minha vida? E o sorriso sumia-se-lhe, a testa franzia-se, sulcava-se a ruga e a expressão entristecia, escorregando para o sofrimento. Mas e tu?! O Zé só pensa em trabalho… Agora quer ganhar para comprar isto, depois de termos isto já quer comprar aquilo, depois aqueloutro… Não sei, não sei o que ele quer da vida! A tua vida é que é bem curiosa. Andas, viajas, sem querer muito saber do trabalho ou do dinheiro… pelo menos é isso que das tuas palavras eu percebo. Não queres saber de horários nem de despesas. Não é por aí que o Viagente quer ir, mas compreendia. Vivo neste mundo, Anabela, tal como tu e José… ela atira Onde é que ele está agora? Não estava, era verdade. O Viagente, entre o sentimento que devia ao amigo e o que ouvia, tentava equilibrar-se. Anabela lacrimejava e estende as mãos, procurando o amparo do recém-confidente.

Ou é por causa do cão engenheiro, ou por causa da gata da doutora… As mãos da Anabela agarravam a mão calejada do Viagente. Ela estava em pé a seu lado. Contava: e eu fico para aqui sempre sozinha. Depois, quando chega, ainda se põe com exigências como seu eu fosse um brinquedo que tem de o satisfazer sem que ele tenha de dar nada em troca. Havia agora não mágoa mas um desprezo em relação ao José. Menosprezou-lhe o trabalho e o empenho que ele lhes dedica. Anabela agarra a mão do amigo, como se estivesse a cair e aquela fosse o seu último sustentáculo. Ele contemplava-a, atordoado menos com as revelações que lhe fazia do que com a sensualidade de Anabela. Ela, frágil e carente, olha-o, aproximando-se, incautamente suavizando a mão do Viagente com a pele da coxa. Sabes, no casamento há fases complicadas. Com certeza, vocês estão a passar um desses momentos. Tens de ter calma, Anabela! dizendo isto, afasta escrupulosamente as suas mãos. Transpirava. O coração pulava como louco. E havia José na ausência presente daquela cozinha, o Viagente sabia-o por isso afastara as mãos. E quanto tempo têm essas fases? Quanto tempo terei de ficar à espera? Já nem certeza tenho se ele está de facto a trabalhar ou se me está a enganar! Anabela, percebendo o Viagente, afasta-se e arruma umas chávenas que não estavam no sítio. Agora de costas, prossegue: Ele já não me ama! Usa-me apenas como objecto sexual. Mas, digo-te com sinceridade, isso vai acabar! Ai vai acabar, vai! que já não aguento mais! Desaperta um botão do top descobrindo o seio quase na totalidade. Volta-se, devagar, para o Viagente que via, incomodadamente deslumbrado, a revelação do peito de Anabela sem soutien. Ela aproxima-se e o Viagente deseja-a, deseja-a ardentemente. Anabela percebe-o e sorri. Enquanto dizia aquelas palavras aproxima-se dele, ostentando não sabendo bem porquê a sua condição de mulher. Era-o, sim… era-o de um pleno cheio impossível de não ver. Estava calor na cozinha. O Viagente ardia e Anabela aproxima-se, queimando-o. Passa por trás dele, afagando-lhe o cabelo. Percorre um arrepio de prazer por ele todo. Dão outra vez as mãos. Ela senta-se na cadeira a seu lado e encosta a perna na sua. O Viagente, excitado, procura com a mão aquela coxa irresistível e acaricia-a. Ela encosta-se e ele sente o seio escorregar pelo seu peito. José está ausente na presença constante da amizade. O Viagente deseja aquela mulher.

No entanto, passando-lhe as mãos pelo cabelo, tocando-lhe suavemente a face, diz: És uma grande mulher! Beija-lhe a cara. Temos de arrumar isto! Já são horas de irmos para o festival de música! Deixa-te estar que eu, desta vez, arrumo! O Viagente ergue-se titubeante, tremendo das pernas e arruma a mesa.

 André Matias

Ricardo Oliveira

terça-feira, 24 de junho de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

Um copo a dois

Cá estamos. Anunciou José, sem euforia, no entanto. O Viagente e ele tinham chegado ao bar, Anabela tinha ficado em casa, visto que se sentia exausta aqueles miúdos são umas pestes…, por isso ficara em casa e além do mais amanhã é que era o grande dia, iam ao festival de música! Todavia, José, ou por ter menos interesse nesse festival, ou por ter algo importante a falar com o velho amigo, trouxera-o ao bar, naquela Sexta-feira à noite. O José desligou o carro. Estacionou-o num parque fechado ali não muito longe. É aqui! Aqui era o bar onde iríamos pôr a conversa em dia, que há muito estava desactualizada. Praticamente era ali que toda a razão de ser da vinda do Viagente se consubstanciava. Entraram, não sem antes o porteiro os cumprimentar, olhando-os de relance para confirmar que estavam condignamente apropriados para frequentar aquele tipo de espaço. Parece bonito… que elegância! Comentava com honestidade o Viagente, enquanto observava as mesas baixas, negras a condizer com o almofadado das cadeiras, quase poltronas. O chique prolongava-se na mistura de perfumes, na música discreta, nas conversas a meia-voz e na roupa dos clientes. Entravam: as pessoas distribuíam-se pelo bar de um modo sossegado, tranquilo e muito elegante. Rondariam os trinta, trinta e cinco anos, talvez um pouco mais: não dava para perceber bem pelas caras femininas que ricamente se camuflavam por entre cosméticos. A um canto, mas não em claustrofobia fumava-se socialmente. Com os risos e os tilintares de copos compunham-se em acordes notas de um piano e de uma guitarra-baixo. Tu é que és um sortudo! José seguia o seu caminho até à mesa, não ouvindo o comentário não sarcástico, mas acutilante do companheiro. A elegância transbordava no modo de vestir até dos empregados do balcão, sobriamente paradoxais no seu branco-negro. Os clientes pareciam sorrir sempre, com convém quando se sai à noite e sorriam, mas não riam alto para não perturbar a música ou confundir o branco com o preto do fato dos empregados, alinhados militarmente.


Os dois amigos não preferiram o balcão, mais propício para aqueles que com um café ou um whisky olham sorrateiramente, para que nessa noite possam dormir em companhia. Dirigem-se para a tal mesa, que fica no meio do bar, aconchegada pela pacatez de uma coluna e de uma planta de interior. Bar muito interessante. De facto, pá! Abriu há pouco tempo, é a coisa mais in que se tem cá. José tinha razão. Era um bar de design moderno, esquadrinhado para satisfazer os novos gostos de uma classe bem sucedida. De tons avermelhados, que se conjugavam com um preto brilhante, as paredes refulgiam uma luz indirecta branca-quente. No tal balcão em que se mediam olhares e se passeavam corpos, reluzia uma pedra mármore iluminada agora em tons de frio. Contrastavam-se cromatismos, cruzavam-se homens e mulheres. Sentaram-se. José estava tenso, mordia nervosamente as unhas. Não falava. O Viagente contemplava. Diante, cruzavam-se umas pernas altas e morenas de uma italiana. Enquanto os dois amigos se ambientavam ao espaço, um porque queria desfrutar da novidade, o outro porque lhe fugiam as palavras para o que tinha que dizer, chega um empregado, que saudando-os com mordomias lhes pergunta o que querem tomar. O José, como anfitrião, antecipa-se e pede para ambos um Porto reserva, mas tawny não ruby. O empregado franze o sobrolho pelo exotismo do pedido. Deve ter a mania que é enólogo… mais um bocado e começaria a dissertar sobre a problemática do envelhecimento do vinho em balseiros, resmungava o empregado pelo caminho ao longo do corredor que o levava à prateleira dos vinhos espirituosos. Belo sítio, José, muito aconchegante, cheio de caras bonitas, de aromas promissores! Sorriram-se, estavam agora dois homens, dois amigos, sozinhos sem mais ninguém, sem qualquer tipo de entraves que lhes imputassem um comentário mais ousado de juvenil ostentação. De facto, de facto… há aqui coisa interessante. Soltou-se a gargalhada fraterna. A escaramuça do jantar nem sequer tinha agora lugar nas suas memórias. Eram outra vez aqueles putos que queriam ser homens, e que já o eram. Entretanto, vieram os Portos, twanies tal como o senhor pediu, disse ironicamente o empregado solícito pousando os copos na mesa. O empregado roda sobre si mesmo, educadamente, e afasta-se calmamente como a música que terminava. Mas porque estás tão tenso, José? o Viagente pensava. Também houve alguém que se afastou de ti? Ou és tu que te afastas de alguém? Sabes porque te chamei? perguntou José. De alguma forma já descobri, amigo, nem sempre a vida nos ama ou nós sabemos amar a vida. Ele estava triste. Os seus olhos profundos procuravam arrumar uma imensidão de vivências para as concentrar em palavras naquele momento. Perturbava-se. É a minha Anabela… José pausava o discurso, levava o Porto quente e sensual, como a sua esposa, aos lábios levemente. Na mesa em frente, a italiana mostrava as coxas e um olhar promissor para os que estavam consigo, e diagonalmente para os amigos que falavam. José bebia, procurava as palavras. Eu nem sei bem como é que te hei-de dizer isto, quer dizer… pá! Ela não está quando preciso dela. Chego do trabalho, cansado, estoirado cheio de problemas e ela nada, estás a perceber?! Não é a Anabela de antigamente, é como se fosse outra. Não é a mesma coisa! Homem, tem calma. Eu sei que precisas de descomprimir esse sofrimento que te esmaga. Vá, tem calma, diz-me o que é que se passa. Se eu soubesse, ai se eu soubesse era tudo muito mais fácil. Não entendo, percebes?! Simplesmente não entendo; parece que não está mais aqui comigo… sinto-a a fugir-me das mãos como grãos de areia seca, pá! E tenho medo, muito medo…tu desculpa-me, tu desculpa-me de eu estar com estas coisas. Estás tenso, amigo, já não te via assim há muito tempo. Tem calma, tu tem calma que tudo tem solução. Mas diz-me ao certo o que se passa, para tentar poder ajudar-te. Homem, a Anabela simplesmente não está.


Respirou fundo, engoliu em seco e finalmente começou a falar: É a minha Anabela. Ela endoidece-me. Já não me ama como dantes. Esqueceu todas as promessas e ela tem tudo, amigo, dou-lhe tudo. Que hei-de fazer? Ao balcão, o empregado falava trocistamente com o colega. A italiana descruzava as pernas. No entanto, o Viagente estava realmente atento ao que o amigo lhe dizia. Calma. Antes de te dizer o que hás-de fazer, tens de me contar o que se passa! José bebeu um trago ousado, no fim da boca permanecia o doce frutado e o perfume, o sabor de Anabela. Ela quando eu venho do trabalho recebe-me sem alegria. Está sempre cansada e triste por me ver. José pousou o copo e, olhando-o vazio, continuou: Sabes, a minha vida parece que desabou. O casamento é uma coisa difícil de manter. Quando olho para o passado e vejo tudo aquilo que construí com a minha mulher… agora parece que nada existe, parece que se quebrou qualquer coisa. Quando chego a casa do trabalho, ela recebe-me fria e distante. Acho que já não me ama. Suspirou, pela primeira vez enfrentando o olhar do amigo que o escutava, alheio ao movimento do bar. É duro manter o amor no casamento, sabes?, parece que estamos gastos, parece que somos dois velhos sem novas aventuras para viver. Estamos juntos por um hábito, uma rotina que nos prende àquela casa e que nenhum de nós quer quebrar, pelo menos por enquanto. A Anabela é a minha vida, entendes? Faço tudo por ela! Mas agora parece que nada resulta. Sabes… não a sinto comigo, como a sentia quando começámos a namorar. Já não temos aqueles vinte anos cheios de mística e de sonho. Tu desculpa-me estes desabafos, mas eu tenho que me abrir com alguém…Lá estás tu com essas coisas, homem, estás à-vontade comigo, respondeu o Viagente com aquele olhar de amigo que quer compreender e ajudar o outro. Já não há aquele brilhar de olhos que ela tinha quando lhe dava qualquer coisa. Já lhe trouxe prendas que vim a encontrar arremessadas com desprezo num canto qualquer. Agora que lhe ofereço roupas caras e até algumas jóias, ela olha-as com uma espécie de ternura indiferente. Não sei bem…, mas parece que anda à procura nessas coisas de algo, não entendo!


O bar estava agora simplesmente fechado para eles. Havia sido criada uma bolha sustentada por aquela coluna e pela planta de interior. Eram os fustes que aguentavam os capitéis de uma conversa de confissão em desabafo. Estavam ali, sós e alheados do resto. Sinto-me sozinho, pá… sozinho dentro da minha casa e sozinho na cama. Não quero parecer piegas, mas eu não sei o que se passa. Há algum tempo que a Anabela não me procura para estarmos juntos. Estou a perdê-la, amigo, e não sei o que fazer… Sabes o que acho? José não deixa o Viagente responder. Sabes o que acho? Acho que há outro homem! Tenho quase a certeza. Nunca lhe disse nada, porque agora levantou-se um muro entre nós que impede que falemos. Agora não falamos, pronunciamos sílabas que formam palavras, mas não comunicamos. Acho que há um homem na vida dela. Acho que ela se apaixonou por outro! Estou a perder a minha mulher, amigo, e não consigo fazer nada! José continha-se, conversava em tom baixo, embora quisesse explodir. Já nem na cama, sabes?, já nem na cama conseguimos comunicar. Já nem na cama encontro a minha Anabela. Desaprendemos o Amor. As mãos dela não me procuram e já não me lembro da última vez em que adormecemos abraçados um ao outro. De vez em quando fazemos sexo, mas já não nos amamos. Faço sexo com uma mulher distante, uma mulher que não se entrega, fria e sem desejo. Sexo seco. Sexo forçado, como um cumprimento de um dever; como o cumprimento do seu dever de mulher. José segura a cabeça com as mãos para não se perder; à sua frente, o Viagente tentava encontrar a solução para oferecer ao companheiro. É verdade… já não fazemos amor, é apenas sexo, um sexo barato em que apenas vemos um corpo e nada mais à nossa frente. Tu achas que há alguém metido?! pergunta de um modo magoado José. Como é que tu queres que eu saiba disso? Não estarás a efabular a situação?, tu tem calma… vocês são novos, não se casaram levianamente e estou certo de que há ainda amor entre vós. Eu não sei, pá, não sei, não sei nada… sinto sempre a situação a fugir por entre as minhas mãos. Eu tenho este projecto da clínica em que me farto de lutar. Tem tudo para resultar, mas consome muito tempo; quase que nem estou em casa. E quando chego, discutimos – pois, isso eu já percebi (José que estava a rodar o cálix do Porto de cabeça baixa sente-se descoberto por aquele comentário) – quase todos os dias por coisas tão insignificantes. Já não falamos à mesa, não compartilhamos os momentos. Não sei… mas tem que haver alguém… não me sai tal ideia da cabeça.


A italiana exibia gloriosamente as pernas rijas e morenas, alheia e distante da conversa dos que estavam ao seu lado. Tentava escutar as palavras sinceras e doridas daqueles amigos que falavam em aparente calma. Ela sabia que dialogavam sobre o amor, sobre uma mulher, sentia o cheiro da desilusão, o momento perfeito para surgir. Mas ainda não. O ambiente estava carregado; o fumo dos cigarros ao canto do bar criava um nimbo de suspensão do tempo. À volta daquela mesa, duas pessoas, dois homens, dois amigos, duas vidas, uma situação – e uma terceira pessoa que estava num não-ali. Urgia sair uma frase da boca do Viagente. Como nestas alturas a massa dos conceitos se desmultiplica numa fina sensibilidade apavorante entre a leveza do grama e a opressão da tonelada. Cada termo, cada frase devem nestas alturas ser milimetricamente escolhidas. É por isso que um amigo, ao aconselhar, inicia o seu discurso por uma pequena interjeição que se prolonga no tempo, para o ganhar um pouco mais. Há gaguejos, gesticulações, há inclusive um certo movimentar no assento para encontrar a posição argumentativa mais confortável para a ingrata tarefa de dizer as palavras certas. O Viagente olha nos olhos José até deixar de o ver, até fixar apenas a pupila para o poder ver inteiramente sem complexos e sem pudores. Tem calma, amigo! Tenho a certeza que a Anabela te adora como no primeiro momento. Sabes que o casamento tem dessas coisas. Por vezes, há momentos em que os amantes parecem desencontrar-se, mas caminham lado a lado. Ela ama-te, José, que tolice a tua pensares que te está a trair! Calma! As palavras saem da boca daquele amigo longas, em gerúndio para que ecoassem bem no fundo do seu sentir. Entretanto, ela foi ao balcão buscar uma bebida e passa junto deles, olhando-os com uma promessa escondida nos lábios que não descerraram. José e o Viagente, no entanto, estavam distraídos, absorvidos pelo estranho mundo das relações humanas. É complicado, ela já não me deseja. E tu, como a desejas? Adoro-a. Como a adoras? Adoro-a com todo o meu amor. Acredito em ti, José, mas, por vezes, o amor é uma viagem entre dois mundos. Tem-la visitado?


O telemóvel do José interrompe a conversa. Devem ser clientes…, suspirou como se a vida tivesse o peso de um padecimento. Afasta-se um pouco da mesa para procurar um certo espaço para o diálogo. Sim…, senhor Engenheiro, como está?!… sim! … perfeitamente, senhor Engenheiro. Não se preocupe, nem o senhor nem a sua esposa. Leve-o directo para a minha clínica que resolveremos prontamente a situação. Até já e cumprimentos à sua esposa. A situação era as convulsões repentinas do chihuahua de companhia da mulher de um tal engenheiro Menezes. Levanta-te! Vamos embora! Tenho que ir trabalhar! A conversa ficaria aí, presa e não suspensa. Era uma urgência muito importante: não se podia perder um cliente daqueles. Tinha demasiada influência. Vamos, mexe-te! O chihuahua da mulher do engenheiro Menezes está com convulsões. Tenho que ir lá, rápido! Anda!...

André Matias
Ricardo Oliveira

quinta-feira, 29 de maio de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

“[Eu] Caminho Entrecruzado c/ Purê-sentimentos, Arrependimento, ao Molho Vida”

Na casa de banho, o Viagente vestia-se. Fora buscar ao quarto a sua roupa. Em cima da cama estava um pólo azul-escuro, listado; ao lado, uns jeans também azuis, de uma ganga cuidadosamente lavada. Para os pés, uns chinelos castanhos, não muito quentes, conservando o conforto necessário para este tempo de estio. Há algum tempo que o Viagente não sentia no seu corpo este tipo de roupa, pois as condicionantes da viagem obrigavam-no muitas vezes a abdicar de certas benesses que, para pessoas como os seus anfitriões, eram tidas como normais. O Viagente contemplou, por momentos, aquelas peças de vestuário, o modo como tinham sido dispostas sobre a cama e a função de conjunto que forneciam. Não era aquilo, aquele espectáculo, a que estava habituado. Vestiu. Olhou-se ao espelho. Como estava diferente no mesmo de si. Aquela roupa do José confortava-lhe agora as feridas que ainda lhe marcavam o corpo como uma lembrança. Ainda lhe doíam, quando fazia alguns movimentos bruscos, ainda lhe doíam como uma recordação de que na vida as dores são um anúncio constante duma dor suprema que há-de vir, há-de vir sempre, há-de chegar. Mas ainda não chegara. O Viagente vestira lentamente as roupas do amigo José que se colavam às feridas e lhes punham por cima um manto de beleza, da beleza que a vida também tem; um manto de beleza como um anúncio de todo o prazer que estará por vir, que chegará, sempre, que chegará, mesmo quando as feridas são profundas. O cabelo, que retinha ainda alguma humidade do banho, penteara-se agora para trás em perfeita serenidade.


O Viagente vestiu-se e lá fora, Anabela e José emudeciam. Saiu do quarto… aquelas palavras desordeiras tinham efectivamente ido embora. O silêncio era enorme e, por isso, o Viagente retardou-se em pormenores estéticos, distraído, para que os amigos pudessem pintar a sala com a cor que eles gostavam de mostrar. Dirigiu-se para a sala de jantar, onde uma harmonia superficial deslizava pelas notas jazzísticas que perfumavam o ambiente. A mesa já estava posta. José esperava-o sorrindo, Que elegante… É a tua roupa, caro amigo, que faz com que o Homem pareça mais bonito do que realmente é! José abria o vinho adequado à refeição: deu-o a provar, como mandam as regras da etiqueta, ainda que esbatida pelo à-vontade da amizade. Fizemos um “Frango Grelhado c/ Purê, Ervilha ao Molho Manteiga”. Por entre os silêncios das frases dos amigos, ouvia-se aquela música discreta que contrastava com as cores fortes dos tapetes e o negro da mesa.


O Viagente olhava José com saudade: frango grelhado com puré e ervilhas com molho de manteiga, pensava... O semblante do amigo estava carregado, mas com um sorriso que lhe vinha das artes do fingir. Aquelas artes que se adquirem nos ofícios da vida. José sorria, segurando a garrafa de vinho. Viajava, desde a cozinha, o perfume apetitoso do frango que se fundia harmoniosamente nas notas soltas que o jazz ia discorrendo. Na sala-de-jantar faltava ainda Anabela, que se tinha alongado um pouco mais com os preparativos inerentes a um jantar com convidados. Ausentara-se por momentos para se ir arranjar sobriamente para aquele momento. Enquanto os amigos falavam, aparece Anabela com uma travessa na mão, colorida por um amarelo-creme que vinha do molho de manteiga. O Viagente sabia que desta vez não podia deixar que o José saísse da sala, por isso não permitiu que aquela mulher de vestido preto, cintado, em que o decote prometia mais do que deixava ver, o olhasse de um modo menos confortável. Anabela pousou a travessa sobre a mesa, escrupulosamente arranjada, e convidou os companheiros a sentarem-se: Vá… vamos para a mesa para não deixar arrefecer. Trazia um sorriso que o bâton discreto lhe fazia, os olhos guardavam as lágrimas de uma história de amor inacabada e o vestido preto, o luto por uma discussão que não morrera. Sentaram-se os três. O casal ocupou senhorialmente as cabeceiras da mesa; no lado direito do José, senta-se o Viagente mediando simetricamente os dois anfitriões. O frango exalava um perfume calmo, antevendo um paladar forte mas suave, como a ternura dos campos depois de uma chuva de Verão. O Viagente entretinha-se em cruzamentos de metáforas sensoriais, para disfarçar aquela força incompreensivelmente espontânea que uma mulher tem, quando está no altar que umas sandálias de salto alto lhe podem conferir. Mas não… não deixará que o José saia daquela sala, porque não pode, nem é assim. Todavia, Anabela serviu o Viagente enquanto o olhava de um modo profundo. Um olhar que falava mais do que as palavras permitiam. Um olhar cheio de mar. Cheio de infinito azul no castanho profundo do avelã matizado. Um olhar que dizia uma história de amor doído e sofredor. Um olhar que continuou enquanto Anabela serviu José e depois se serviu.


Nos copos de pé alto, passeava-se o bordeaux em vinho tinto. Perfume: temperos em agradável ligação, misturados por uma mão macia mas certeira. Conversa de elementos. Diálogos de estruturas. Depois daquele primeiro silêncio que se senta em todos os jantares, conviva necessário para desfrutar da formalidade do momento e da riqueza do prato, soltam-se as primeiras palavras. É ao Viagente que cabe falar, encetando a primeira cena de um drama que não terá acto, mas perpassará acções de pleno sentido. Parabéns à cozinheira! Não, não devia ter dito aquilo. Deixou de fora o amigo. E como ele queria tanto mantê-lo ali dentro. Ah, muito obrigado… não é nada de especial, são umas coisinhas normais. É costume fazer aquele tipo de prato, de facto, mas o José ainda quente por aquele ambiente de querela com a Anabela diz: Ora, já não comias disto há muito tempo! José irrompe pela cadência inevitável da música que se escutava longe, por trás, como um pano de fundo. A voz dele, ligeiramente ondulada e nervosa, emergia de uma face pálida e sorridente.


O Viagente percebe nas palavras do amigo a intenção ofensiva, contudo permanece sereno, porque ele sabia que, muitas vezes, dizemos as palavras erradas; muitas vezes, as palavras que devíamos dizer ficam enterradas onde não houve coragem para as juntar em frases; muitas vezes, são ditas a uma pessoa para uma outra que era a que devia ouvir, mas não pode escutá-las, porque não são dirigidas a si. O Viagente sabia que as palavras vestem a pessoa, uma pessoa que existe por trás delas e que com elas se disfarça, quando não consegue dizer o que sente. Por isso, fez: Tens razão. Na verdade, não saboreio uma comida tão deliciosa há muito tempo! Sabes, amigo, foi a vida que escolhi! Anabela, intrigada, pergunta: Mas a tua vida impede-te de comer? O Viagente sorri, esquecendo José a um canto da sala, embora ele permanecesse no topo da mesa. E conta: Não. Quis dizer apenas que, hoje em dia, não costumo comer pratos tão elaborados. Escolhi um caminho para a minha vida e parti em busca dele. Anabela olhava-o intensamente como se ele lhe fosse oferecer uma revelação, uma verdade qualquer que ela sabia existir, mas nunca ousara procurar. O barulho dos talheres trazia à realidade aquelas frases, cortando e levando à boca em pedacinhos comestíveis o significado de cada uma delas. Sabes uma coisa interessante que hoje aconteceu lá na clínica? apareceu lá um caniche com um problema nos olhos. Tem de ser operado. O José tentava disparar a conversa para outra direcção, para se fazer novamente o centro das atenções. Anabela não deu importância, só sabia falar daquilo e nada mais. Tem graça, um dia também conheci um cão, era apenas um cão que tinha nos olhos uma sabedoria que não soube ler. O José não entendera, soara-lhe a disparate; a Anabela pela incompreensão da mensagem queria saber mais. Falas com uma paixão desinteressada… sorriu-se. Não havia nada a fazer: o José não voltaria à clínica de veterinária em que iria operar o caniche; o Viagente via-se mesmo na eminência de falar um pouco mais sobre si próprio para contentar a Anabela. E onde o foste procurar? Os aromas fortes e ternos enfeitavam sensualmente a conversa. Ao longe, como a música, estava José, duplamente arrependido: porque tinha sido mal-educado com o seu amigo, que ali viera a seu chamamento e porque tinha desencadeado o diálogo entre a sua mulher e o Viagente, auto-excluíndo-se. Bebia o vinho. Terminava um copo. Enchia outro. Anabela estava linda, comendo e saboreando as palavras do Viagente. Sabiam a aventura. Sabiam a terra e a vida… O Viagente contava… e por isso é que fui para lá, assim sem nada. Larguei tudo e trajei-me como um peregrino. Um genuíno peregrino que avança pelo mundo à procura de si nas amizades que vai fazendo ao longo do caminho…


Desinibido, o Viagente enchia novamente o prato Delicioso! Subtilmente, nascia um rubor nas faces de Anabela, talvez do vinho ou quiçá das palavras. O Viagente reassume a sua narrativa, reencontrando o tom na melodia que acontecia. ...visitei localidades que são homens, conheci paisagens que são metáforas e então compreendi que a maneira de me entender era por dentro da metáfora… José corta-o: Sempre foste um poeta! Metáforas!... As metáforas, que têm a ver com a vida? A vida dos homens faz-se trabalhando. Trabalhando para vencer e sustentar a família. São palavras muito românticas as tuas… continuas o mesmo sonhador de sempre, pá! Mas a vida não é isso. Se a vida não é isso, então o que deveria ser? Ter um carro de gama alta, uma casa com decoração moderna, uma mulher bonita, sem saber no meio de tudo isto onde está a felicidade e a essência de ser com ela? Latejavam estas palavras pelas veias do Viagente.


Tu, afinal, o que ganhaste? O Viagente olha-o e responde Nada. Tu é que ganhaste e ganhas muito. Tens razão, José, este homem-andarilho não tem os luxos que agora possuis, mas foi a ele que chamaste, foi a ele a quem recorreste, porque sabes, sim… sabe-lo bem, que desde puto foi ele que sempre te ajudou a descobrires o teu caminho, a perceberes quem tu és. Mas estás agora cego pelos prazeres da vida que escolheste. Não sei bem o que é a vida, José. Por isso, fui à procura dela, para sentir em cada momento toda a força que dela pode vir. Era disto que falávamos quando éramos mais pequenos: como seria possível meter a força das ondas dentro de uma caixinha de fósforos. Anabela embevecia-se com a simplicidade grande daquelas frases daquele agora mais amigo. Ela entendia-o. Sim. Ela entendia-o, porque também ela no sorriso das suas crianças mantinha uma força viva da verdadeira dimensão de existir. O Viagente conhecia a distância que agora o separava do seu amigo. Sabia também que no momento em que iniciaram a corrida da vida, o José disparou desenfreadamente, enquanto ele caminhou devagar pela pista. Havia que comer tranquilamente, saborear o bom vinho com que o presenteavam. Olhos nos olhos, sempre, Anabela pergunta: Nunca te arrependeste? Por acaso… não, disse o Viagente. Não me arrependo da vida que escolhi, sou isto.


A frase do Viagente pairava sobre o jantar como uma verdade inesperada. José enternecia-se como que saboreando memórias, arrancando aos momentos partilhados com aquele companheiro a magia que ele punha na vida. Anabela sorria com os olhos brilhantes e húmidos, juntando curtos pedaços de frango que levava à boca devagar e pausadamente. Havia um solo de guitarra que falava agora, enquanto na mesa repousava um silêncio feliz. Era um silêncio meditativo e apaziguador. O silêncio necessário para que as palavras ditas deixem de ser palavras e nasçam como fragmentos de vida em quem as ouve. A guitarra falava. Parecia contar uma história de amor que a bateria desencontrava; parecia uma história de dois amantes desencontrados que se procuravam na harmonia da música.


O Viagente termina o prato. Queres mais? Tu come! remata José imperativo. As palavras vinham agora com outra tonalidade. A culpa talvez fosse do saxofone soprano e das vassouras que deslizavam pela pele da tarola naquele seu jazz mais calmo e menos grosseiro. Estou satisfeitíssimo… Bebo, se me servires, mais um copo! José levanta-se e serve o amigo. Ele bebe. O vinho intenso e profundo tinha um fim interminável como o sabor do amor. José, aproveitando o ensejo de estar de pé, levanta os pratos da mesa, declarando que iria buscar a sobremesa. Anabela olhou-o, enternecida, percebendo que o marido queria redimir-se da discussão que aconteceu na cozinha e das palavras áridas que arremessou ao amigo. Não deixou criar momentos mortos, acelerou o passo, e trouxe rapidamente a sobremesa do frigorífico. Não é por nada, mas uma coisa assim não podes ter comido, porque não há ninguém que faça uma mousse de chocolate como a minha Anabela. Redimia-se o José, porque afinal era uma simples mousse instantânea que a Anabela tinha preparado numa batedeira eléctrica e ela sabia-o. Mas aquele possessivo, determinantemente pronominal, aquele simplesmente minha abriu-lhe novamente a sala para que entrasse pleno e se sentasse verdadeiramente à mesa com os outros dois. Da Anabela um sorriso tenro e terno: ela desculpa-te porque é a tua mulher e porque ainda assim te ama. Serviu três taças de mousse de chocolate, dizendo ao mesmo tempo que se sentava: A tua viagem parece-me muito rica. Não queres contar nenhuma aventura?


O Viagente olha-o, redescobrindo no seu olhar os olhos antigos da infância; os olhos inocentes e verdadeiros; os olhos meigos e doces do amigo. Por isso, o Viagente sorri enquanto recorda, por isso, ele conta não as aventuras que passou, mas a história que as fez viver. Era uma mulher…nem sei como vos hei-de dizer. Era a minha companheira. Amava-a como nunca amei ninguém. Sei lá, amigos, como vos hei-de contar. É tão difícil ver-me ao espelho, dizer o que sou, sem me magoar. Há que ter calma. Os erros são a vicissitude de se estar vivo. E eu errei, como errei, amigos… Por isso, erro agora ainda. Por vezes, a presença daquilo que somos faz tão mal aos outros. E eu nem sempre vi, nem sempre vejo. Erro. Erro tanto quando me expando para o mundo dos que me ouvem… Há que ter calma. O erro é uma vicissitude de se estar vivo. Aquela pergunta do amigo suscitou no Viagente as memórias do baú que tinha fechado antes de começar a andar. Não queres falar, eu sei, não queres falar porque iniciaste uma viagem sem regresso, em que procuras o que não foste e queres saber o porquê.


Coloco o dedo no ponteiro do relógio e agarro o pêndulo por momentos, para poder dar a este homem o tempo necessário de se espelhar. Precisa-o como o ar que respira, como o sangue que lhe corre nas veias. Tempo. É nele que anda à procura do que aconteceu. Projecta-se no teu futuro as acções do teu passado que não queres repetir. Tempo. Paz. Dor. Magoa… dói-te ainda aquele dia em que te foram ditas as palavras que pensaste que nunca seriam para ti. Sentado, naquele banco de réu, ela disse-te um adeus profundo como a cova de um poço. Escuro. Queres apagar esse dia com um branco de paz, mas esse escuro é demasiado espesso, grosso e peganhento. Homem, tens os teus amigos à espera naquelas cadeiras, inertes pelo tempo que pude suspender. Não o consigo por muito mais tempo, porque a corda do relógio vital é forte e o pêndulo é balanceado pelo dinamismo das gerações. Volta àquela sala e fala, fala com eles para te dizeres a ti que tens um passado que queres enfrentar. O Viagente, depois de uma rápida introspecção, continua. Ela era linda, mas nunca a conheci. Nunca quis ouvir o que ela tinha a dizer, porque sempre tive muito a falar. Então eu mostrava-lhe todo o mundo contido nas minhas palavras fúteis e ela ouvia apaixonada; aprendia de mim a maneira de existir. Mas eu não via, não a conhecia. Companheiros, fiz uma viagem pelo amor de olhos fechados, pensei que o amor fosse um sentimento meu e que se eu amasse muito… mas não soube que o amor é um sentimento nosso. Certo dia… foi nessa noite. Estávamos na varanda da minha casa. Eu calculava nas estrelas o número infinito do meu amor e ela disse-me que era louco, porque o amor não estava nas estrelas. Disse-me que o amor estava aqui na terra, nas pessoas, e que eram as pessoas que tinham de ser amadas, não as estrelas. Nessa noite, ela despediu-se, foi. Deixou a vila e a mim. Ela tinha falado e, pela primeira vez, eu tinha reparado que a voz dela era ondulada e rouca. Pela primeira vez, reparei que ela discordava de mim. Pela primeira vez, vi que ela existia e que a tinha inundado de mim. E agora, onde estás dentro de mim? Memória de um sentimento meu que encontrei no teu ser. Onde estás? Pela primeira vez… a luz das estrelas que eu lhe espalhava ofuscava-a. Ofuscou-a tanto. Encandeou-a até ela ter de deixar de me ver. Por isso ela foi. Deixou a vila naquela noite. Errei tanto, demasiado. Por vezes, distraímo-nos tanto com o que somos, que esquecemos que os outros também existem tanto como nós; sonham e amam com a mesma intensidade… sentem como um eu que também necessita de gritar ao mundo a sua presença. A música tinha terminado, porém José não se levantava da cadeira. Anabela segurava uma colher de mousse que teimava em não levar à boca. Estava triste Anabela, parecendo reconhecer na vida daquele insólito homem uma qualquer coisa de familiar. Era aquela história. Era o amor, sempre tão difícil de compreender para o Homem. Naquela noite percebi o que tinha feito. Dei somente importância ao amor que sentia e nada fiz para o cultivar. O amor tem de ser cultivado. É como uma planta frágil que, se não recebe os cuidados das mãos hábeis do agricultor, morre à força das intempéries. E eu, amigos…as minhas mãos são ásperas, não sabem cuidar de planta tão subtil. A música retoma como num golpe de mágica. Novamente os tons quentes da sala animam-se pela cadência melódica daquele jazz, agora numa dinâmica crescente de alegria contraditória. Anabela, finalmente, leva a colher à boca e saboreia por dentro as palavras do Viagente. Na manhã seguinte, decidi desfazer-me de toda a vida que tinha como se me pudesse despir das minhas acções anteriores, e saí em busca de mim próprio por essas estradas que a vida nos vai fazendo cruzar. Saí à minha procura. Saí com a esperança de me renovar. Encontrar-me nas estradas que entrecruzo com os outros seres que me habitam e procurar neles, sim, procurar neles a beleza que eles têm, para me construir. Por isso saí, procurando no outro a minha existência. Por isso, hoje sou um peregrino. Um peregrino que deseja encontrar o amor que o faz viver. Por isso, depois de ver os homens e olhá-los profundamente, paro para estar contigo, contigo que me acompanhas sem estares a meu lado, companheira. O jazz fecha-se num emaranhado de sons descruzados, numa desarmonia que se melodia depois. Anabela termina a mousse e adoça a vertigem das memórias do Viagente com um sorriso faiscante e sincero.


O eco das palavras do Viagente refracta-se até à inexistência, o CD termina. O silêncio é uma música de notas ausentes. Ninguém fala. José e Anabela estão fixos nele: a vida, por vezes, arrasta um peso tão grande… aquele homem, aquele homem de sorriso largo e coração aberto, carregava o peso imenso da culpa, a força esmagadora da perda. Anabela e José não ousavam quebrar o silêncio, estavam os três suspensos num daqueles raros momentos em que se dialoga por dentro e se escuta aquela voz, filha do silêncio, que diz: “Tu também erraste!” A tal história que todos queriam que fosse relatada não surgiu. Não apareceu nenhum rio atravessado a vau, nenhuma fogueira acesa no meio do nenhures para aquecer uma lata de feijão. Muito menos uma palavra saiu daquela passagem pela aldeia em que vagueava um fantasma vestido de criança. Não, nada disso fora contado, apenas a dor, a tristeza de um homem que se fez à estrada.


Todavia, Anabela era mulher, estava habituada a sofrer, guardava em si a dor pulsante da vida. Ela sabia que da dor nasce o prazer, por isso compôs um sorriso, com um travo a tristeza. Era preciso desanuviar aquele clima pesado – uma mulher tem sempre a sensibilidade necessária para puxar uma conversa para o rumo certo. Uma vez mais, o jazz que toca soa à primeira faixa do CD. Desta vez levanta-se Anabela. Chega de jazz, já estou saturada! Por isso, dirigindo-se para o aparelho de alta-fidelidade pergunta ao Viagente que tipo de música aprecia. Gosto bastante de música tradicional. Ela sorri, agora sem o sabor da tristeza, porque há momentos em que a felicidade é tão grande que esquecemos as restantes dores que sentimos. Simplesmente, porque sinto naqueles instrumentos uma singeleza original, uma pureza dos ancestrais. Nisto, intervém José: Era só o que mais faltava, essa agora… Com que então vais-me dizer que um so-li-dó trauteado num cavaquinho está carregado dessa abrangência intelectual toda?! Só mesmo tu, olha… Ó José, lá estás tu outra vez. Essa insensibilidade egoísta, não por comentares a música, mas por escarneceres das palavras do teu amigo, empurra-te para fora de qualquer esfera que uma conversa cria. Excluis-te, porque pisas o espaço do outro, esmagas unicamente para que a tua posição sobressaia.


O Viagente, recomposto da viagem que tinha contado e revivido, aconchega os pés num tapete macio que o acarinhava, acrescenta: Mas dentro da música tradicional, o que mais me preenche é, sobretudo, a música celta. É nestes momentos que apetece soltar uma gargalhada, porém Anabela conteve-se, embora o rubor na sua face a denunciasse. Curioso! Também gosto desse tipo de música! Também sinto isso que dizes, tem graça. Aprecio uma boa sinfonia, ou um jazz cheio de swing, mas continuo a ver na nossa música tradicional a voz de um ontem que se mantém aqui. Engraçado! Não era costume Anabela falar assim deste jeito, por metáforas, mas o Viagente tinha-a contaminado pelo seu modo de falar. Na vida, por vezes acontece encontrar alguém que entende as palavras que dizemos, é nesses dias, em que descobrimos que não estamos sós, que nos apetece sorrir, dançar, falar e no fim, ou talvez no princípio, amar.


Vou colocar um CD que comprei há pouco tempo. O tal silêncio retira-se como a sombra ao chegar a noite; não há lugar para as sombras na luz que a música celta faz, por isso José também participa, sorrindo: Lá estás tu com os teus gostos despropositados! É um grupo de inspiração celta, diz Anabela, Muito interessante! De facto, interessante é como as pessoas tocam na vida uma das outras sem o saberem, sem adivinharem que uma simples palavra avulsa e inocente poderá suscitar emoções tão simples como a cheiro a flores ou tão forte como a brusquidão de um vendaval. Anabela não sabia que aquele homem que ali estava diante si era um tocador. Sentia a música para não estar sozinho, assim, simplesmente. Não trovava às damas medievais, nem cantava feitos de heróis míticos. Apenas soprava. Soprava para aquela gaita-de-foles, que agora estava partida. O CD começa a tocar e a sala preenche-se com os sons dos antigos tão sabiamente de hoje. Anabela, dançando sem ousadia, mas sensualmente descomplexada, regressa à mesa.


Se o José não menosprezava verdadeiramente esta música, pelo menos não a considerava tanto como a verdadeira música, a mais intelectual, a mais erudita. Por isso, aqueles sons nada lhe diziam. Gostas?! perguntou Anabela. O Viagente responde-lhe com um brilho nos olhos e um sorriso nos lábios. Vai haver um festival de música tradicional este fim-de-semana cá na cidade – vinha mesmo a calhar para ele, podia encontrar alguém que soubesse arranjar a sua gaita-de-foles. Uma óptima ideia seria irem vocês os dois, atalhou José, temendo que Anabela o arrastasse para meio daquele folclore que não apreciava. No calor do entusiasmo que aquela música oferecia, Anabela dispara: Vamos lá amanhã! José sorri para a ideia como um adulto para o disparate de uma criança. O marido mostrava-se insensível, e por isso quis despachar o frete para o amigo. O Viagente reparando no quadro, percebeu que o melhor seria aceitar: Combinado! Amanhã estamos lá os três.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

O banho que não lava a sujidade que fere
Anabela… o calor da tua pele no toque subtil que trocámos, o teu perfume em toda a sala como uma promessa irrealizável e o teu sabor... o teu sabor a Primavera, leve e fresco como uma surpresa. Ainda não tinham terminado o cumprimento. Anabela… os teus cabelos perfumando a minha mão eternamente. Saiu, subitamente, um seco Anabela… largado em suspensão pela sala. Faltava-lhe aquele pedaço que o protocolo e a etiqueta obrigam: é este o meu amigo de que te falava. Já não era preciso, Anabela já o tinha tocado naquele cumprimento de circunstância É verdade, querido… Com aquela aridez, José voltava a entrar na sala para que a conversa voltasse a ser a três. O Viagente percebeu que o José sentira que, de repente, tinha sido despejado da sua própria casa, decidindo, depois, entrar sem bater à porta. Felizmente estavam outra vez os três naquela sala, em que o sol ainda se esforçava por entrar numa última tentativa de prolongar o dia. O silêncio, que com o José tinha entrado na sala, fora quebrado por um Anda! Vou-te mostrar o resto da casa! José arrasta o amigo, que a observa, distraidamente, apreciando o gosto caro do companheiro. Melancólica e tímida, Anabela seguia atrás dos amigos sem dizer palavra. Vai para a cozinha deixar as compras que trouxera do supermercado, antecipando a realização do jantar. Este é o quarto onde vais ficar! O Viagente coloca docemente o seu cajado ao lado da cama para o segurar sempre vertical, quando o sonho ousasse mais do que a vida poderia prometer. Olha em volta. É um bonito quarto, com uma varanda de onde se pode ver a cidade. Mas não toda, porque isso é um privilégio dos ricos e José não era rico. Era um homem esforçado que tentava subir a pulso pelo complicado emaranhado da estrutura social. Da varanda, viam-se alguns prédios e a parte de trás da praça, onde devia estar Cesário a fotografar. Pousou sobre a cama o odre vazio e o alforge onde estava o diário. No chão, por cima do tapete, depositou a gaita-de-foles como uma derrota, como o fim de uma música nunca audível. O tapete absorveu o último som, o gemido que poderia ter soado como um alarme da vida que acontece lá fora – lá fora, por todo esse lá fora por onde o Viagente errou – se aquele tapete não fosse tão luxuoso e alcatifado. Mas era. A gaita-de-foles deitou-se partida e silenciosa.
Podes ficar aqui o tempo que quiseres! disse, abrindo os braços, José. E os dois companheiros voltaram a abraçar-se emotivamente, batendo nas costas com amizade. Ficarei! Mas primeiro tenho de tomar um banho! Anda, dou-te uma roupa…

Já na casa-de-banho, o Viagente por fim pôde retemperar as suas forças com uma água quentinha e o conforto de diversos sabonetes, cremes de banho e champôs. São tantos! exclamou já não me lembrava! Por vezes, parece que esqueço o tempo em que vivo. Por vezes, parece que vivo por dentro de um passado qualquer imaginado que quero supor que é o meu presente… A água caía reconfortante. Naquele compartimento, Sozinho. Sai em humanizada pressão a água quente pelos buracos finos do chuveiro. Prepara-se para o banho que tardava há muito. Escorre-se a água por aquele corpo, uma água límpida que sararia todas as mazelas ainda tão presentes daquele tempo junto ao pelourinho. Já passou. E está agora ali na casa daquele amigo com quem tinha tanto em comum. Sentiu-lhe no seu olhar intranquilidade. Estava incompreensivelmente distante. Sentia-lhe… A água permanecia quente, exalando vapores opacos pela casa-de-banho. Pelo ralo esvaíam-se as últimas sequelas de uma caminhada intensa. O barulho marulhante daquela água tranquilizava-o. Pensava para si num nada plácido e harmonioso. Meditava na incapacidade de a água e o sabão não conseguirem lavar estados de alma e dores de consciência. Um banho… Aquele pairar meditativo do Viagente interrompe-se com palavras soltas, que não temem entrar descaradamente pela porta que se mantinha fechada. Abruptas, irrompem exigindo ser ouvidas. Enquanto se estava a ensaboar, ouviu a voz forte de José emergindo pelo silêncio que a água deixava. Anabela e José discutiam. Ainda o teu perfume na minha mão, Anabela, perfume eterno que me envolve o corpo num abraço quente e suave… Anabela em todos os lugares daquela banheira, nas gotas de água, que por mim escorregam lentamente, como o teu cabelo no meu rosto. És sempre assim eram palavras masculinas. Em frase, este conjunto de palavras normalmente vem acompanhado por um ponto de exclamação autoritário – coloquemo-lo És sempre assim! Era o José do outro lado da porta. Longe, longe José, tão longe… gritas tão alto e não te ouço. Estás tão longe, José… Assim… decerto que caracterizaria alguma coisa. Mas assim como? O que é ser assim? José, a Anabela é assim como? Não vejo a pertinência desse ponto de exclamação na frase. Ela era assim, mas com umas suaves reticências das quais lhe não vias a beleza. Não percebo… tens a mania de… O Viagente apanhava em descontexto palavras desconexas. Eram para a Anabela, disso estava certo. Vinham emotivamente da cozinha. Tentava encontrar-se algum sentido de causalidade, ou tão-somente um fio de coerência. A Anabela fazia a comida, simulando ignorar as palavras duras do marido: Julgas que me enganas? Relembro… relembro a tua forma de amar. Uma forma de amar em que tu amas para ser amado como numa troca mercantilista. E tu nunca ficavas a perder… A água corria pelos cabelos sujos do Viagente. O seu calor apaziguava as feridas…

Sempre que trago homens… a mesma coisa! Porquê? Porque gritas assim José, não eras tão intempestivo quando na escola nos tentavam passar a perna ao trocarmos berlindes. Relativizavas tudo… Tinha que ser saiu tristemente de um Viagente desconcertado por toda a situação. Sentiste o frio do vento e o vazio da rua, quando te expulsámos da sala com aquele cumprimento. Não tive culpa. Claro que não teve culpa, a Anabela é simplesmente uma mulher plena que não passaria indiferente em qualquer espaço. Foi sem querer, pá! Uns remorsos infundados inundavam o Viagente por cima daquela água quente, incapaz de afastar tal sensação. Tu não vês… Ver. Não sei bem o que é isso. Gostava de ver, de ver o que é a relação entre as pessoas, perceber porque há-de alguém estar triste e resolver: encontrar uma solução, como um alquimista, que ensine a todos o como amar-se. Mas eu não sei, não consigo ouvir o que vocês dizem aí do outro lado da porta, nessa divisão partilhada. Estou na casa-de-banho, só, a água suaviza a minha pele dura da jornada e não consigo ouvir…

Mas o que é que eu fiz, diz lá… uma frase de feminino nervoso. Por isso, veio com reticências. É sabido que elas têm mais força argumentativa do que a brutalidade daquele ponto de exclamação. Como deixam em suspensão aquilo que não foi dito, que ficara propositadamente em entrelinear contexto, as reticências são muito mais ameaçadoras e desconfortáveis. José não disse, não podia dizer nada. Eram apenas os seus ciúmes que o aguilhoavam para continuar numa discussão disparatadamente desconcertante. Somente um masculino tu sabes o que é que eu estou a falar saiu, apenas para tentar ficar por cima. Eu sei bem do que é que falas, José, não me precisas de dizer. Talvez fosse melhor tentares dizê-lo à Anabela, mas não o queres porque não consegues. Um gemido quase surdo …nunca te fiz isso… anuncia o princípio frágil do choro de uma mulher. Anabela, o contorno sensual do teu corpo junto à perturbação da minha vergonha. José crescia para a esposa numa violência verbal que a ele próprio surpreendia, se pudesse pensar. Era a dor. A dor inflingida pela perda anunciada ou pensada da mulher que sempre amou, e ainda por cima para um amigo, para aquele amigo que tomava banho na sua banheira e dormiria no quarto que lhe facultara. O Viagente não ouvia, não podia ouvir, porque José não dizia o que sentia, vociferava impropérios sem destacar a razão de onde provinham. És uma falsa.
A água deixou de correr. O Viagente tinha fechado a torneira, dando a entender pelo parar do trabalhar da caldeira que não tardaria a chegar à cozinha. Com a água foram também aquelas frases pelo ramal do esgoto. Que se sumam para longe, de onde não possam jamais encontrar o caminho de regresso. Terminava o banho a pensar, a pensar não no que tinha feito, porque nada fizera, mas no que desconhecia que iria fazer.
André Matias
Ricardo Oliveira

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

Abraçar-te, sempre; mas (ela) e um tilintar de chaves
Saltaram para um abraço interminável. Abraçaram-se com força para agarrarem bem aquele momento e resgatarem-no ao contínuo dos acontecimentos. Abraçaram-se com força, com a força com que se abraçam os amigos sinceros. Um abraço… uma orquestra de movimentos encontrou novamente o ritmo de uma sinfonia antiga há muito não tocada. Dois corpos diferentes voltaram a sentir-se em amizade. A fusão de um sentir. Num ápice alegrias e tristezas partilhadas… o fio de uma vida emaranhou-os outra vez num novelo de duas pontas. Assaltaram-se memórias, risos de cumplicidade. Ali os dois, uma vez mais… outra vez, como em crianças. Passara muito tempo. Igual, tudo igual, no dentro deles. O Viagente regressava como se apenas ontem tivessem conversado longamente numa soirée qualquer, de uma qualquer casa que a amizade aluga, por vezes, nas estradas que unem duas vidas. Abraçavam-se e olhavam-se com uma saudade do que havia ainda por conquistar. Caminharam. Sobrepondo o braço carinhosamente sobre o José, o Viagente entrega-lhe toda a protecção e segurança dum amigo. O José também o aperta para si, recebendo com gratidão a renovada amizade deste velho amigo, que regressava da sua nunca ausência. Sorriam, ainda que o motivo do reencontro fosse entristecedor.
Emoção misturava-se em alvoraçado pandemónio de alegria. Juntos, há quanto tempo. Como tens andado… nem fazes ideia, como tem sido a minha vida desde o dia em que parti para a universidade. A vida que tínhamos e deixámos de ter é imensa quando se cresce. Eh! isso foi há tanto tempo… como ainda te lembras, José, quase que já se tinha escapado da memória. É verdade, foi mesmo assim… Dois homens que recordam em turbilhão anos, dias, momentos em vida. Como tudo era diferente, pá… Se era…, éramos novos e ingénuos, sonhadores de um além que não existe, do futuro que não quer aparecer, de um amanhã que se esqueceu de chegar. Mas tu… como estás diferente. Já não era aquele rapaz, o José, que o Viagente tinha na memória. Estudara, era agora um veterinário de sucesso, casara… Mas fala-me de ti e das tuas coisas! O Viagente observava-o. De facto algo não estava bem com aquele agora homem. Latejava-lhe nas veias uma preocupação temerosa que dissimuladamente escondia. O Viagente não tinha muito que contar, pelo menos cria ele, a um médico veterinário. A sua vida que tanto se mesclara com a do José tinha-se escorrido por outros mundos, tão diferentes e distantes. Dois homens e um abraço. Ligando agora duas esferas que sempre o foram mas que agora se tinham transformado em pequenas carapaças. Já não eram mais aquelas duas pequenas bolas de sabão que com o vento se uniam e pegavam para reflectir um raio de luz.
José abriu a porta ao Viagente. Agora vivia quase luxuosamente, descansado sobre os honorários da sua nova profissão. Entraram para uma sala-de-estar de traço elegantemente moderno, decorada de um modo artístico com quadros nas paredes. O Viagente por momentos sentiu-se desconfortável, pois sabia que o seu aspecto andrajoso não se coadunava com um estar em amizade na casa de um amigo. Essa sala estava num plano inferior à porta da entrada, dando-lhe um aconchego abertamente sofisticado. Sentaram-se os dois, prolongando a conversa que encetaram. Os risos eram agora gargalhadas contentes, e estoiros de emoção brotavam tranquilamente. O Viagente sentou-se, observava a alcatifa e a promessa de liberdade que a janela modernista lhe trazia no feixe da última luz da tarde. Porém era ali que devia estar. Era ali que queria estar, ainda que o luxo lhe causasse algum desconforto. Agora trabalho nesta medicina dos animais…Estou a montar uma clínica. Acabei agora mesmo de vir de lá… Era já o final daquela tarde. O sol entrava pelas janelas, grandes e cheias de luz. À sua volta o conforto de um lar inexplicavelmente lasso: sentia-se. Palavras, conversas… Ficas para jantar. Está decidido e não se aceitam desculpas. O Viagente estava agora preso. Não queria que a sua presença fosse um motivo para qualquer atrito. Tentou declinar, mas impossível. José, não estou decentemente condigno para me sentar à mesa de um amigo… Que se deixasse dessas coisas, pois um banho seria tomado e roupas seriam emprestadas. A conversa prossegue.
Ouve-se um tilintar de chaves que ansiosamente queriam entrar já cansadas de um dia de trabalho. É a Anabela, vais gostar de a conhecer. A porta abre. Era efectivamente Anabela. Tinha sido um encontro casual na universidade. As educadoras de infância tinham todas um fraquinho pelos rapazes dos cursos de ciências. Era normal… Conheceram-se numa noite académica, simpatizaram um com o outro. Acabaram por casar. O Viagente sabia que havia uma mulher no caminho do José, claro que sabia, era esse o problema, mas nunca a tinha visto, não sabia como era, quem era. Retinha apenas alguns traços do seu rosto e da sua personalidade, mas nada conhecia. Era final de tarde e batia na parede daquela sala um sol quente. Olá, já cheguei! As palavras saíam-lhe da boca espessas e cheias, carregadas por uma doçura estonteante. Ela entra. José diz: Olá! E apresenta sumariamente as duas personagens que estáticas se olhavam na distância, de surpresa. Os olhos da Anabela eram castanhos brilhantes como a juventude, cor de avelã profunda como a sensualidade, límpidos e serenos como a beleza. A Anabela tinha um ar simplesmente felino. O castanho dos olhos amendoados penetrava no íntimo. Tinha um olhar profundo e quente. Na sala não estava ninguém. Os quadros da parede, a janela e a liberdade que estava lá fora à espera desvaneceram-se; o Viagente ficou suspenso naquele olhar feminino. Pestanas longas e pretas escondiam as relíquias devagar numa calma sensual e natural. Olhos nos olhos na distância que se encurtava e tudo suspenso como se não houvesse mais nada para além daquela mulher. Ela vinha, semi-sorrindo para o insólito do momento. O Viagente estava visivelmente perturbado, porém, Anabela parecia desfrutar do momento, vendo nos olhos e na roupa desfeita daquele homem o sabor a aventura que a sua vida não via há muito. Por isso, dirigia-se para ele divertida e sedutora. José estava apagado algures pela sala. O Viagente sentia vergonha de não o conseguir ver. Mas não conseguia, não podia tirar os olhos da mulher que se aproximava. Beijou-o na face esquerda primeiro com os seus lábios carnudos e subtilmente húmidos, pousando a mão direita sobre o braço do Viagente. Ele podia sentir o perfume natural da presença e o seu coração a estourar de fantasia. Prazer… disse o Viagente esmagado por aquela mulher, suando friamente nas mãos. Afasta-se devagar, olha nos olhos o Viagente como num apelo e ele beija-lhe a face, simulando um à-vontade que não tinha. Os cabelos dela cobriram-lhe a face momentaneamente. Eram cabelos de chocolate-castanho que deslizava em tranquilidade sedutora, lisos e compridos. O toque da sua pele morena arrepiou o Viagente desde o princípio que faz dele homem. Sobressaltado e envergonhado, o Viagente afasta o rosto da face quente de Anabela.
Na camisa que trazia estavam as marcas de uma tarde de reboliço. Os miúdos não param de me sujar quando é o dia de expressão plástica. Estranhamente, aquelas manchas de um cromatismo desequilibrado exalavam uma silhueta de escultura. A Anabela era uma mulher naturalmente quente pela sua simpatia pueril. Doce, realmente cândida, mas tenra e felina, como uma fêmea em desfile terno. Sobriamente vestida, condizente com o respeito próprio que uma pessoa com a sua profissão deve ter, a mulher do José era simplesmente esplêndida.

sexta-feira, 7 de março de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

Diluências na aguarela de um encontro

A avenida terminava numa grande praça que principiava, monumental, com uma fonte que prendia água no céu limpo e seco de Junho. O céu era imenso como a praça. Estava quente o dia e os recém-companheiros de jornada aproximavam-se vagarosamente do centro da cidade. O Viagente tinha sede, mas não ousou dizer. A água da fonte caía desprendida do céu. Agora, o sol do meio-dia desmaiava o movimento das gentes que se enumeravam pelo infinito da distância. Estava calor. O estio era ainda mais quente ali na praça, onde os prédios se afastavam para o sol cozer as lajes.

Por entre os escombros da memória, o Viagente encontrou uma outra fonte, aquela dos tempos idos da sua infância com o José. Era uma fonte de onde se podia beber. Ele tinha sede… As pedras quentes, cortadas em azulejos rectangulares, formavam naquela praça um mar tépido de um granito não muito polido. Era o chão: nele estava criado um atrito calculado que facilitava uma locomoção apressada, e que permitia uma estadia passageira a pé àquele que se quisesse demorar, preso, a este ou àquele pormenor mais despercebido. Cesário dizia: Pássaros nas lajes, saltitantes, fogem da fonte amedrontados. Ali, uma andorinha limpa as asas não com a água, que suja, mas com o bico, que confia. Uma pomba, doente e frágil, de ter bebido arrependida, cai no chão quente sem cuidado. Pois é, Cesário, é uma fonte sem nascente; água sem vida. Ainda me lembro quando aqui estava aquela simples bica de onde nós bebíamos alegremente depois de nos estafarmos a jogar à bola… Mas agora não, estou estafado ainda, mas repuxos mais altos que os prédios emergem do chão gradeado numa escultura informe.

O perímetro da praça delimitava-se por pilastras que, em sentido, construíam colunatas. Em cima delas, os edifícios antigos, mas modernamente remodelados, mantinham a sua vénia para o centro daquela ágora. Num dos prédios, no ponto-metade daquele terreiro estava um relógio amarelo que, por graça, era ainda de ponteiros. Mantinha-se assim por fora, para mascarar o processo digital que os tempos modernos trouxeram. Já não havia o pêndulo, nem a corda alimentava o processo mecânico. Cesário contava: Subitamente, vejo nas águas formas novas de uma vida que nasce. No topo do repuxo, uma cabeça que ajeita um longo cabelo ondulado; no fluxo que a eleva, um belo corpo de uma mulher. Não é verdade, Cesário, não nasce vida alguma desta fonte. A cidade preferiu que ela fosse um espectáculo que se contemple e não uma arte que nos alimente. O chão daquele fórum era quente e não esquálido. Estava limpo; um batalhão de aspiradores eléctricos sorvia todos os detritos, mantendo tudo em perfeita regularidade. Porém, o Viagente não podia esquecer aquela vénia das construções à dama que ali se exibia. Era a fonte. Tinha sede ainda… Rodeando a praça, enfileiravam-se cafés. Ele não tinha dinheiro e tão-pouco iria pedir ao seu novo amigo.
Cesário divertido e triste surpreendia um novo instantâneo: Por baixo das arcadas, ao canto, o café high-life da cidade. Um homem que veste para a moda, fuma, na esplanada, um charuto esplêndido e rico. As gargalhadas, solenes e distintas, ouvem-se refinadas. A elegância dos perfumes mistura-se com o suor dos que passam para ver as estátuas que, sentadas, conversam devagar. Pessoas tão longe ali ao lado no café, Cesário… Que língua falarão? Será que entenderão as minhas palavras? Não. Elas estão guardadas num círculo que as circunscreve na praça quadrangular. As gargalhadas… ouves? São melódicas como uma música barroca. Quando rio, rio alto, rio sem música, desarticulado na felicidade de ser. Estavam cheios os cafés, homens e mulheres passeavam pela praça cumprimentando-se, por vezes, com acenos breves de quem diz, num só momento, um olá e um adeus. Tudo era estranho. O Viagente pensava: Já era assim quando cá estive?!
Porém, no outro ângulo das colunatas, que rasavam as memórias da minha juventude, estava um café que dos outros se destacava metaforicamente. Arrumado em geometria ao canto, o café vivia há muito tempo em obstinada contrariedade com as mudanças estéticas que o espaço envolvente sofria. O único que teimava em se manter rústico, o mesmo que não queria modernizar a sua imagem, o Café da Arcada era o refúgio para muitos daqueles que queriam conversar. As pedras de dominó e as cartas da sueca eram muitas vezes substituídas por letras e palavras, que se trocavam entre os clientes através do papel já usado das toalhas de mesa. Comiam-se petiscos, cheirava a petinguinhas fritas e a ovos acabados de cozer. Entraram. Era ali que amiúde o Cesário ia tomar religiosamente a sua bica: encontrava-se com outras pessoas, trocava palavras por metáforas, desabafos de sentimentos, e olhares de reflexão. Sentiam-se ali bem, os que frequentavam aquele café. Havia mesmo quem ali tivesse uma mesa reservada, unicamente para estar aí, consigo mesmo, esperando que o seu outro chegasse para mostrar o que ontem tinha visto.
O Viagente e o Cesário sentaram-se a uma mesa, não no canto, de frente para a porta. Saiu um café fumegante, veio uma água mineral fresca. Como era estranho estar ali, naquele café, sentado, com aquele Cesário, homem que desconhecia mas que se afigurava presente todas as vezes que rabiscava no seu diário. Nada disseram, de nada falaram; apenas olhar lá para fora, enquanto pessoas entravam, procurando um pouco da verdade calma na aparência indiferente da cidade. A despesa ficou na conta. Parece que Cesário era um cliente habitual. Teve a gentileza de me curar a sede que tinha, que tantas vezes tinha, de entender o que via na cidade. A fonte, novamente.
...com os seus repuxos intermináveis que ousavam beijar o céu como uma perfeição inalcançável. Jactos de água lançados ao firmamento pelo Homem que se pretende ser o que não pode. Ainda assim, as águas em frenesi cinético mantêm sempre a translucidez de mostrar a vida. Na pulverização controlada, magicando-se uma neblina mecânica, a água continuava a deixar-se fecundar pelos raios de sol que a trespassavam em arco-íris de prazer. O sol está forte naquela já tarde de Verão. De dentro do café, os amigos olhavam. Eis a fonte inesgotável da habilidade do Homem que fazia a água jorrar ciclicamente, como se a urbanização nunca tivesse um fim. A fonte sempre. Sempre a água que se domina naquela aparência de cinema com que o Homem tanto gosta de presentear o homem. Para dentro do café entra uma lufada de ar seco e asfixiante. Os dois homens daquela mesa improvável levantam-se: o tempo escorre-se por entre os poros do corpo e há em cada um a ansiedade de absorver cada instante. Saíram, porque havia um alguém à espera, um outro para visitar, um terceiro para viver. Cá fora, os amigos observavam. Daquela praça apenas lhes ficou na roupa o cheiro das vozes das pessoas que passavam.
Na distância, sobre o flanco esquerdo da alameda, a urbanização onde vivia o José, finalmente. Para o Viagente era tempo para admirar uma última fotografia de Cesário. A urbanização começava a ver-se ao longe. Cesário observava, caminhando: Fechada pela sisudez do porteiro, a urbanização surge, bege nos azulejos da fachada. Ferem a vista os metais brilhantes, que brilham mais à intensa luz do sol. Geométricas e lineares, amontoam-se casas novas de arquitectura cuidada, harmoniosas. Esse bege daquelas quadrículas dos azulejos exalta o brilho do inox, perene. Alguns verdes mascaram a beleza urbana e consumista dos metais com a natureza, nos relvados em volta. Escondido, por trás, brincam crianças no parque infantil, como naquela saudosa juventude em que brincávamos no parque, que não era parque mas já era sítio de brincadeira. Ao lado, dois tenistas no court, deviam ser os pais, e um que fotografava não os homens que praticavam desporto, mas a beleza que os homens não têm. É um senhor de estilo aburguesado, de perfil italiano, dedo nipónico… As crianças ao lado, brincando a ser adultos no presente em que são crianças. A urbanização cadenciava casas geminadas de primeiro andar. Em parada, os carros alinhavam-se pelos estacionamentos de cada moradia. Aquelas crianças, poucas, brincam num parque sem areia. Acabrunhados, os baloiços elevam putos que não brincam ao pião. E o tempo segue por entre os poros, trespassando-nos. Das varandas não se vertem sardinheiras; fulge um inoxidável aço em varões contínuos.
E ele fotografava para poder ser uma vez mais criança e poder uma vez mais existir. Existir na fotografia que tirava. Era um velho que se afastava lentamente por entre os beges matizados pelo inox dos metais. Quem seria? Um velho que queria prender o tempo em fotografias, mais um louco que viajava pela cidade. Um velho que se afastava para lá dos muros desta urbanização fechada. Como se chamava? Foi embora, sem saber sequer o nome do Viagente, não perguntou quem eu sou, ou quem tinha sido. Não disse adeus. Sugou-se na sua simplicidade contornada de sentimentos-vividos. Esteve, ali, apenas com ele. Cá cheguei, finalmente! Aqui estou amigo! José, há tanto que não te via!
André Matias
Ricardo Oliveira

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

Reflexões num instante citadino

No autocarro com destino à cidade de José, o Viagente aproveita para descansar. Descansa de todas as dores. Descansa sobre a esperança. Sobre a esperança de homens sem medo de enfrentar a sua própria humanidade na relação com os outros. Homens sem medo de amar o outro. E dorme. Sonha… Sonha com uma Cândida verdadeira, como todas as crianças devem ser. Ela aproximando-se dele ali deitado, sofrendo, para lhe dar a mão; para juntar os pedaços da gaita-de-foles e arranjá-la, como se fosse uma ilusionista que usasse o poder da pureza infantil. A gaita-de-foles a tocar sozinha no aconchego do regaço na menina. E um som primaveril de início de vida, simples e puro como têm de ser todas as crianças… Cândida sorri e canta. O som da gaita-de-foles é completado por uma percussão que vem de outro sítio qualquer. Há algo que não bate certo, a percussão bate fora do tempo e o Viagente abre os olhos para ver melhor a música.
O autocarro passava pela zona industrial, devia estar quase a chegar à cidade. O ruído das empresas criava uma atmosfera pesada, como o ferro oxidado que se amontoava no final de estradas rectas. Estradas sem saída. Lixo sem princípio. Cruzes em forma de avenidas, como uma marca de um padecimento que todos haviam de passar. Camiões atulhados de importações e exportações sem saber onde descarregar o material. Marginalmente às estradas, as empresas laboravam. Fumo. Ruído. E alguns homens, talvez camionistas, à procura de perceber qual seria o seu destino. Ruído e fumo na cabeça atordoada do Viagente. Todas as indústrias eram como caixotes que acondicionavam homens a baixo preço e prontos a servir.
Pela janela, invade um cenário humano, demasiadamente humano, despido de natureza. Há muito que a estrada abandonara a floresta da paragem em que o Viagente se sentara. O campo deu lugar à zona industrial, as árvores às chaminés, os animais aos trabalhadores por turnos, o som da fonte ao contínuo bater das máquinas. Apenas se mantinha um ar húmido, agora matizado por um aroma desconfortável. Era a zona industrial da cidade. Nela fervilha movimento, carros, mercadorias, homens, dinheiro. Mesmo ao lado de uma grande fábrica de pavimentos e azulejos, ergue-se sorumbaticamente um bairro de lata não muito grande. Com chapas e telhas zincadas, torpes e amolgadas fizeram-se paredes, uma sala com cozinha e quarto comuns. Em cada barraca vivem três gerações com garrafas de vinho tinto, acompanhadas por uma pitada de chuto de cavalo. Vivem ali, a par da grande fábrica de pavimentos.
Na zona industrial, as ruas que atravessam foram todas desenhadas por uma régua e esquadro rectificadores. Tudo foi pensado de acordo com a capacidade logística que um espaço com estas propriedades deve ter. A geometria é uma ciência complexa. E os arquitectos que desenharam esta zona industrial esqueceram-se que os homens também são linhas deste espaço; também são uma espécie de geometria. Uma geometria imprecisa, quente, desarmónica… uma geometria demasiado imperfeita para poder viver em desenhos tão óptimos. Tudo está optimamente desumano por contradição.
O ar estava quente, abafado, dentro da camioneta. Amontoavam-se pessoas pelos corredores, suspensas pelos varões polidos do suor que dia-após-dia, rotineiramente, se empurrava. Era de manhã. O Viagente tinha acordado com um torcicolo, devido à trepidação da camioneta, que lhe inculcava dores desconfortáveis. Com um safanão brusco, o veículo pára: é mais uma paragem em que pessoas se enfileiram para entrar na cidade.
Há um silêncio claustrofobicamente irritante a passear pelo corredor. Impera a solidão. Ninguém fala para ninguém, embora todas as caras sejam conhecidas, e os comportamentos sejam descortinados pelo amontoar do hábito. São pessoas de classe média, média-baixa que ali estão. Muitas delas não têm dinheiro para comprar um segundo carro; e por isso obrigam-se a ir para o trabalho de transporte público. Perfumes misturam-se no ar, numa dança de sabores. Vestidos a rigor para lugares de atendimento ao público, plasticamente mascarados com uma indumentária descaracterizante, muitos são os olhos que lançam desconfiança no Viagente. O seu aspecto transpira os sentimentos e acções de que foi alvo. Por isso, as pessoas preferiram não se sentar no lugar que vagara ao seu lado. Há um silêncio que se passeia no corredor. É o silêncio da multidão que habita nas cidades.
As paisagens iam passando e tornando-se mais nítidas conforme a neblina da manhã se levantava. Ao longe, a cidade ganhava contornos de realidade; o maciço citadino começara agora a desenhar-se à sua frente pelo vidro do autocarro. À medida que iam entrando no coração urbano, adensava-se um cheiro, ainda que artificial, tinha a doçura de flores eternamente primaveris, permitindo uma juventude intocável. As ruas estavam em quadrícula ortogonal, gizadas pelas mãos de um urbanista que pensara sobre a mobilidade do automóvel, para satisfação das necessidades individuais. As árvores estavam dispostas milimetricamente, não descurando as sombras que a certas horas do dia estavam direccionadas para bancos de jardim de estética moderna. Não havia relva nas praças. Apenas lajedos graníticos que contribuíam para a optimização do espaço, quer em funcionalidade, quer em higiene. Todas as praças estavam rentabilizadas por estacionamentos subterrâneos, que possibilitavam a manutenção efectiva do espaço público.
Finalmente chegaram à central de camionagem e, ainda antes do autocarro parar, já estão todos preparados para sair, acotovelando-se como se fossem apanhar um novo transporte. O Viagente permanece sentado à espera que o alvoroço da chegada se desvaneça. Entretanto, vai olhando pelas janelas para ver tanta gente com tantas direcções diferentes e sempre tão iguais. Tanta gente que chega e vai a pensar que pode fazer tanta coisa… para o mundo ser sempre o mesmo. Saiu do autocarro. Àquela hora da manhã, quase meio-dia, a central de camionagem pululava de actividade. Era gente a andar para a frente e para trás, numa azáfama típica de cidade a que o Viagente já não estava habituado. A fome oprimia-lhe o estômago. Não tinha dinheiro. Se ainda tivesse a sua gaita-de-foles capaz, era ali mesmo que tocaria. Decerto que alguém perderia breves segundos da sua vida para mandar com desprezo um ou dois trocos. Mas não valia a pena pensar nisso agora; a fome demandava a decisão mais célere. Não se atemorizou; com facilidade encontraria o caminho certo a seguir. Tinha de chegar o mais rápido possível a casa do José. Deixou para trás os cheiros de comida, que vinham das pequenas lojas de fast-food da central. Não comeria até chegar à casa do seu amigo. Tinha de o abraçar fortemente para que a amizade pudesse ainda ser mais forte. Mas onde é que ele morava? Há tanto tempo que o não o visitava… e a cidade era tão grande… Saiu da central de camionagem empurrado por uma luz filtrante que resplandecia no alcatrão de uma alameda.
Fora da central, estendia-se a alameda até ao coração da cidade. Aí as pessoas pendulavam-se ao ritmo metronímico do semáforo. O espaço era não muito grande, ladeado por prédios de meia-idade, cosmeticamente trabalhados para receber as mais recentes casas de moda. Desorientado, urgia acercar-se de alguém que lhe fornecesse duas ou três indicações. Tinha a morada do amigo escrita na contra-capa do diário, para nunca a perder. Sentia no olhar apressado das pessoas um desdém altivo, aquele com que se esbofeteia os sem-abrigo que fazem já parte da paisagem. Não duvidava que a sua figura inviabilizava a comunicação.
A um canto dessa alameda, buscando a melhor perspectiva, estava um homem que fotografava. Pela lente da sua máquina, captava a realidade numa outra, que só o olhar de um artista pode sentir. De estilo subtilmente aburguesado, trajando com asseio à inglesa, rosto de traço levemente italiano, o velho mirava as sensações que o circundavam em movimento. Não fotografava os edifícios; somente retratava os transeuntes para conseguir uma descrição humana da cidade. Era isso que lhe dava prazer e sorria. Sorria, porque a beleza de uma cidade está em todas as pessoas que a compõem.
O Viagente sentia em si aquela aflição tão própria daquele que chega a um sítio novo. Não sabia como ir, travava-se-lhe o andar face ao desconhecido das ruas. Os outros corriam em demasia, para que se pudessem deter perante um homem que está perdido. Naquela altura, o Viagente não queria ser apedrejado com um agora não tenho tempo, ou mesmo com um indiferente não sou de cá. Por isso, acercou-se daquele velho, que, por um instante, tinha estancado os ponteiros da sua vida, para retratar o que o envolvia. Aproxima-se do homem e pergunta: O senhor, porventura, sabe dizer-me onde é esta rua? (Apontando com o dedo para a contra-capa do diário.) Ele diz-lhe que conhece muito bem a rua e que até o acompanhava. O Viagente aceita a proposta, confiante na bondade humana; devia ser da proximidade do reencontro com o José, estava reanimado novamente e disposto a falar. A falar e a ouvir que é aquilo que tão bem o ser humano sabe fazer. Curioso, até me fica em caminho no passeio que estou a fazer. É a primeira vez que vem à nossa cidade? É, de facto respondi eu, um pouco embaraçado. É uma cidade tranquila, sossegada, e ainda pacatamente segura. E com a curiosidade de quem pinta mandou-me um Então nada conhece daqui, pois não? Larguei um, Apenas um amigo que pretendo visitar, quase monossilábico. Tem graça como as cidades ainda são elementos de união entre as pessoas… Mas venha comigo! que estou aqui entretido a fotografar o que passa. Pergunta-lhe o Viagente: Como se chama? Soltou-se um Cesário. Nome invulgar numa invulgar pessoa. Caminhavam, e Cesário, que conduzia os passos, comandou também o diálogo.
Entretanto, a alameda desembocava numa avenida interminável, com duas faixas de rodagem em cada via e carros. Imensos carros, num atropelamento maldito de sons de motores, e de impropérios lançados pelas janelas dos condutores. Ao centro, havia um separador semeado com alguns bancos, de toque modernista, para ninguém contemplar as vistas largas, pelo menos em altura, dos prédios, de um lado, e dos prédios, do outro lado. Parquímetros tinham substituído os canteiros de hortenses; prédios altos de espelho-escuro ostentavam um metropolitanismo constante. Assobiavam escapes melodicamente, como o chilrear de pássaros idos. Felizmente, nos passeios havia muita gente, correndo para cima e para baixo, que só parava na retina fotográfica do meu amigo Cesário, que em habilidade nipónica fotografava, com palavras, uma loja de roupa que surgia.
Passávamos, falávamos, e ele fotografava: na montra vítrea, dois manequins à luz forte dos holofotes que ofusca, no irreverente verde florescente e no fuschia, os olhos. Num estrado branco, de madeira pintado, dois manequins empoleiram-se. Estas são as cores deste Verão, amigo, são as imposições da moda! Um, recostado, salienta os seios que nunca amamentarão. Os colarinhos, vitorianos, luzem de verde o pescoço espevitado em postura british. Preto, um bolero sobressai honesto sobre os ombros. Uma saia antracite antevê olhares suspeitos, quando andar. O outro, em pé, sem cabeça, veste uma camisa fina de algodão, fuschia; condiz com a antracite-sarja das calças. E nesses manequins estavam todas as pessoas, porque podiam estar, assim como não estava ninguém – esta é a verdade.
Deram mais um passo e um novo clique: a máquina dispara. Lá dentro, por detrás de um balcão de estética moderna, uma rapariga arfa. Para cá e para lá, rodopia em torno de uma máquina registadora, fiscalizante. Dos olhos, o brilho das sombras, a tensão do rímel. Da face, a alvura da base, a fulgência do gloss imposto. As mãos pianam pelas teclas, em capitalistas cálculos de esbanjar. Uma sophisticated girl passa, tchoc, tchoc, tchoc, altiva, segurando numa mão o telemóvel da moda e na outra roupa que pegava e largava. Uma colaboradora olha, séria e muda, a cliente que passava de carteira alçada no braço erguido. Perfumada, elegantíssima e plástica, largava e pegava as roupas com desdém. Via os modelos, os tamanhos; procurava os melhores preços, frenética. E uma repulsa que senti… Ela que apanhasse, se quisesse… Ainda pensei em entrar, mas não havia nada a fazer naquela loja. A moça olha, de baixo, para o espectáculo. Dentro da sua farda de loja da moda, a rapariga curva-se. Simples, mas bela, repetia os gestos maquinalmente. Dobrava roupa, roupa dos que queriam ver, dos queriam passear, dos que queriam rebaixar. Esplêndida, a cliente passa como um adorno que se enfeita. No escuro, a beleza muda da colaboradora sobressaía como um pedaço de franqueza entre o ramalhete de papoulas postiças. O interior da loja sabia a um aroma de ar-condicionado mascarado. O martelado apressado das pop-musics marcavam um ritmo desconcertante. Tudo era artificialmente coberto por uma maquilhagem sazonal de pressa, atrevida. Nada havia ali para ver. Mais um passo e um novo frame captado de intensidade sensorial pelo dedo hábil de Cesário.
Depois daquela porta, apenas uma última montra. E o flash, intenso, rápido, fez-nos reflectir naquele vidro, momentaneamente opaco. Eis que na reflexão vítrea da montra seguinte se vêem os trajes não sofisticados de dois homens que caminham. O cajado a segurar um, que não podia; a máquina fotográfica na mão nervosa do outro, que falava. Passaram rápido, efémeras miragens na loja de roupa em que nunca entraram. As imagens ficaram eternamente retratadas no fundo do vidro daquela montra, como uma pintura deles da nossa presença no mundo.
André Matias
Ricardo Oliveira