quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A granítica aldeia de Cândida

Um anjo caído
asda
ccO Viagente segue com a criança a seu lado para a aldeia, empurrado pelo imperativo e pelo apertar árduo das falanges minúsculas da pequena criatura. As casas desmaiavam-se na rua, única, principal e ditadora. Era a rua central: por ali se passa, nela se vai, com ela se anda. A rua era estéril, onde nem as ervas daninhas ousavam esgueirar por entre as fendas dos paralelos. À volta estavam casas de granito, quase impedindo a passagem. As suas pedras desprendiam-se e interrompiam a estreita rua como se nunca tivesse havido passagem por ali. Ela era estreita, por isso Cândida e o Viagente caminhavam em fila, embora nunca desprendessem as mãos. Havia uma casa tão velha! Parecia anterior à rua. As portas fechadas e as janelas emparedadas assinalavam um vandalismo anunciado. Os seus tijolos graníticos ainda sustentavam o resto do telhado, mas não… não vivia lá ninguém. Fora uma boa casa. Era grande. Tinha dois currais por baixo, mas só silêncio. Não se ouviam os animais. A casa vazia e na rua nenhum indício de vida.

ccTodas as casas tinham uma cor desmaiada e carcomida pelo sol, como se ele teimasse em sugar os últimos resquícios de brilho das pedras. Embora arranjados, os lares não vertiam efervescências de alegria viva. Não tinham janelas e as fechaduras tristes das portas resguardavam-se maniacamente da estrada. Como se tivessem recebido esconjura divina, becos de casas asmáticas asfixiavam-se em atropelo. Fios de putrefacção maculavam as pedras com um odor insalubre. Abundava a escuridão nas pequenas frinchas do casario. O pensamento do Viagente estava escuro como as frinchas. Ele procurava alguém, uma pessoa que os pudesse auxiliar. Decerto que alguém haveria de conhecer Cândida. Era impossível que isso não acontecesse. O posto da guarda também não haveria de ser muito longe. Numa aldeia tudo é perto, tudo é ali, sem que haja um além. Mas não havia ninguém e não encontrou… e o posto da guarda não apareceu, nem existia.

ccNo entanto, há um ruído que fura o silêncio; um som que perfuma de humanidade o povoado. O Viagente e Cândida caminham. Há uma porta aberta. Eles caminham. Uma casa aberta e o calor de uma conversa. Avançam. Entram! Era uma taberna, onde quatro homens trocavam cartas de sueca à luz baça dos copos de vinho. Estavam ali, junto da lareira extinta, por entre o fumo dos cigarros que lhes turvava as feições. As mesas eram simples e toscas de um pinho sujo e gasto pelos cotovelos de homens rudes. Ao fundo o balcão erguia-se como um púlpito que não encontrava orador. Dois homens tristes sorviam uma evasão de inconsciência na aguardente. Ninguém falava. O silêncio descia desde o tecto de madeira e teias de aranha para a boca dos fregueses. O Viagente sem soltar a pequena Cândida de suas mãos estava aturdido. Queria falar com alguém, mas toda a aldeia parecia abandonada em silêncio. O posto da guarda sumira-se por entre as casas e nada mais havia do que aquela pequena taberna. Ouvia-se uma música de ausência que incomodava o Viagente; ousando interromper o bater enfadado das copas, não se deteve: Onde é o posto da guarda? Ninguém responde. Onde é o posto da guarda?! pergunta ansioso ao silêncio. A sua voz ecoou desfazendo-se na eternidade do granito; as copas foram seguidas pelas espadas e paus dos olhares. Responde-lhe um silêncio de ninguém.

ccDe dentro surge o taberneiro, o Pôncio, vetusto homem que desloca a sua majestade sobre uma bengala com punho em prata trabalhada barrocamente. Perante a sua aparição no balcão, respeitosamente, o colégio dos anciãos retira o boné em sinal de reverência, enquanto em certa estupefacção o Viagente, agarrando a mão da criança menos para a confortar do que para se segurar, se dirige na sua direcção. O senhor sabe dizer-me onde é o posto da guarda? Finalmente… chegaste! afirma o taberneiro. Confuso, o Viagente recua. Procuro o posto da guarda! Ela foi… O pai dela, sabe onde está? O taberneiro insiste, O que lhe fizeste? Mas insurge-se numa pergunta: Vais dizer ou não onde é a guarda? Vindos do deserto de pedras caladas, um pequeno tumulto invade a taberna. Quem é este? O que faz a Cândida com ele, Pôncio? Erguera-se de entre o anonimato da gente uma voz grave. Aturdido, o Viagente para se proteger encosta a cabeça da menina ao seu colo.

ccGermano, sossega. A tua filha já está connosco. Pôncio acalma o pai da criança, o tal que o Viagente com uma sofreguidão de justiça procurava: Vamos a isto! Já temos o que queremos. Um tremor abana as pernas daquele que encontrou Cândida. Uma torrente de nada avassala-o, afogando-o. Cai para um não-infinito. E eram tantos sonhos. Estatela-se contra um vazio imenso de uma luz negra, oca, que lhe queima o chão. Tantos ideais sugados para o abismo. Era o Mundo a girar tanto. O Viagente ali parado e tudo a rodar. Cai. Parado. Cai para o nada. Para o vazio. Rodopia, passando-lhe por entre os dedos destroços da sua justiça. Cai desamparado, sempre. Cândida era a última esperança de humanidade no meio dos cacos do seu mundo. Procura-a. Ainda estava a seu lado, tímida e de cabeça baixa. Agarra a sua mãozinha fria com as forças de um moribundo. Cândida!... Olham-se nos olhos. Ela sorri levemente, seca, indiferente, adulta, de alto. O que nos fazem, Cândida? A miúda a estourar de gozo não conteve uma gargalhada estrondosa, arrancando-lhe violentamente a sua mão e correndo, filial, para o regaço do pai.

ccPor instantes, no estancar que o turbilhão do tempo permite, toda a realidade que havia construído desapareceu. Desabou… Uma gota de água, temperada de sal triste, tenta esgueirar-se por entre uma pálpebra desiludida. Mas um empurrão forte degola o único gesto de piedade que o Viagente poderia dar ao seu ser. Cândida… porquê? Tão linda, tão indefesa! Tu és tão frágil e vou salvar-te! Mas não… turvam-se os olhos para não ver a verdade, cinge-se-lhe a boca, guardando as palavras que não quer dizer. E uma lágrima, aquela que vem desde a lembrança da voz tímida daquele ser indefeso. Um punho empurra-o. Não pode chorar. Alguém o atira para fora da taberna. E nem poder sequer chorar por ti, Cândida...

ccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccAndré Matias
ccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccRicardo Oliveira

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

A granítica aldeia de Cândida

Os olhos...


Percorreram não muitos passos até chegar às primeiras casas. A estrada esganava-se por entre fragas que teimavam em não deixar a humidade se dissipar. Os dois caminhavam decididos. No meio de uma propriedade vazia, murada por pequenas pedras erguidas por mãos que já não conheciam o tempo, perdia-se um animal. Sumido pela neblina matinal, não se distinguia de pronto: apenas traços de um quadrúpede de pequeno porte, com costelas salientes e pêlo continuamente sujo e sem brio. Pelagem preta-gasta, patas toscas e desarranjadas, o bicho entretinha-se em engano escavando no lodo um osso sumido. É um cão! Insosso e destemperado, arrastava-se à entrada da povoação, mostrando uma idade avançada, onde o coxear da sua pata traseira dizia os maus-tratos de alguém.

Cândida e o Viagente não se detiveram, porém um cão nunca dorme. Persegue-os e Cândida parece indiferente. Ladra aos pés do Viagente. Este, embora apressado, estanca a marcha para tentar perceber o animal (talvez tenha fome). A fraqueza latejava-lhe nas pernas e um ladrar solto mas tosco esvaiu-se novamente da sua boca. Cândida parece incomodada. Sem se aperceber disso, o Viagente pousa a mão sobre a cabeça daquele cão e cruza o seu olhar no dele. Que triste és! Lágrimas eternas daquelas que se colam à vida como se toda ela fosse sofrimento. Tanta tristeza! Dor desde a profundeza do seu ser, desde o momento em que o teu amigo dono te deixou. De onde vem tanta mágoa? Afaga-lhe o focinho, mas o cão não sorri. Cândida está perturbada.

Este animal foi mesmo maltratado! Não tanto como eu!... O Viagente percebe a mensagem que Cândida lhe quis transmitir e decide retomar a direcção da aldeia. Lançou um último olhar ao seu amigo triste e sorriu-lhe. Sorriu-lhe com aquele sorriso de quem sabe que a vida é injusta, que ela pesa, que dói desde o momento em que nos entregamos a ela. Sorri o Viagente e o cão percebe, não nos lábios, mas nos olhos. O Viagente desliga as mãos do pêlo. Dá-lhe um impotente sorriso de compaixão para justificar todas as maldades, um sorriso para acariciar tudo o que faz sofrer. O cão percebe e não sorri: olha agora Cândida e desvia. Os seus olhares tocaram-se, sim. O Viagente sentiu nas pupilas de olhos canídeos um ardor, um sentimento. Não o entende, não o podia entender – é simplesmente um cão, um cão. A estrada solitária era a única veia da aldeia. Por ali se entrava, por ali se saía. O homem e a menina continuam a andar, já é manhã e é urgente encontrar as autoridades aldeãs. O Viagente dá-lhe a mão e segue caminho. No entanto, os diálogos inacabados são como espectro que nos perseguem durante os sonhos e o cão agarra-se às pernas do Viagente. Não o morde, apenas lhe puxa as calças, suplicante. Cândida agarra a mão do seu companheiro com uma força que ele nunca lhe vira. O Viagente sacode-o, tenta livrar-se do pobre animal, agora animado por um espírito de desvairada sandice. O Viagente, fiel de insólita balança, pende para um dos pratos. O cão perderá mais esta batalha. Continuará, lazarento, a sofrer a sua pena de enjeitado. Seguem para a aldeia.

André Matias
Ricardo Oliveira