terça-feira, 14 de outubro de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

aCordar

Apetecia-lhe, simplesmente. Queria, nada mais. Ela estava a dormir, mas isso não importava. O corpo dele imperava agora e exigia satisfação. Não seria bruto, mas não abdicaria do seu vigor. Anabela, vais ser dele, por momentos, mesmo que tenhas de acordar. As mãos gotejaram da cara para os ombros levando consigo, arrastadas, as alças da camisa de dormir. Era de seda, muito macia, e de cor branca levemente transparente que deixava antever o peito de Anabela. Quer aquele corpo, e agora, não sei bem porquê. Eram cinco da madrugada; José queria compensar o seu cansaço com um pedaço de sexo servido ali mesmo, sem nada, sem ambiente nem contexto. Quer ouvir a Anabela a gemer, gemer de prazer e até mesmo de dor. Simplesmente. Quer vê-la nua, intensa, cheia. Sentir-lhe a pele quente, o intenso dos gritos, o ritmo do ranger da cama e os arranhões daquelas unhas que, tantas vezes, ele não entendia para quê de tanto cuidado. Estava ali deitada, ao seu lado. Agarrava-a agora pelas ancas, encostando-se contra ela até sentir no seu corpo o seu sexo, agora cúmplice e ansioso por a encontrar. Anabela já sem a tal camisa virara-se não de costas para José, expondo toda a sua beleza de fêmea felina, de pele morena e cálida, comestível. Queria-a. Trincou-a até soltar um grito de dor.

            Estava cansado. E disse-lhe que não. Afinal não valeria a pena. Que voltasse a dormir. Mãos pela pele, pelos peitos, pelos cabelos, mãos ao encontro de mãos que se desencontravam nas costas do outro. Boa noite! Boa noite, amor! José já dormia, mas Anabela que tinha sido desperta, velava o amor que sentia. Aqueles cumprimentos surgiram secos. Um, gasto pela aridez da rudeza de carácter; o outro, definhado por uma frieza de ausência e de solidão. Aquela mulher ali, deitada, como se tivesse sido abandonada e preterida, sente no lugar que o marido ocupa um vazio que a diminui – tanto e tanto que chega a questionar os seus atributos de mulher. Por vezes, Anabela, o amor tem destas coisas. Sabes, os homens ainda não aprenderam a amar. É difícil amar sem tropeçar em atitudes estúpidas. Sabes, Anabela, quando a felicidade foi distribuída pelas pessoas, houve algumas que a colheram às pazadas e outras, distantes no amontoado que se fazia, ficaram atrás à espera das migalhas que lhes cabiam. Por vezes, as pessoas fazem coisas estúpidas. O Homem não sabe amar. Não o merecias, Ana que cada vez mais vais perdendo o final do teu nome.

O tilintar da louça na cozinha desperta o Viagente que repousara com o conforto há muito não tido. Um esquivo raio de sol perpassava pela persiana fechada, culminando na doçura do tapete. Ainda dorido, levanta-se e abre a janela. Estava uma manhã soalheira de azul profundo e interminável. O Viagente inspira a suave brisa matinal daquele Sábado, enquanto, na cozinha, as louças se agitavam bruscamente. Ele pára, reflecte sobre as palavras que José lhe havia confiado na noite anterior. A cafeteira atirada para o fogão e a voz de Anabela que praguejava. A manhã tinha há muito começado para ela, mas só agora é que se levantara para preparar o pequeno-almoço. O rádio tocava as oito e meia, noticiando as principais novidades que numa manhã de Sábado, igual a tantas outras, poderiam acontecer.

O Viagente olha o céu e a distância daquele azul limpo. Estava um belo dia para celebrar, mas na cozinha não havia sol e o azul celeste escondia-se atrás de uma nuvem. Veste-se e desce. Anabela estava sentada com a cabeça entre as mãos, a janela fechada e o leite a ferver. Bom dia, Anabela! Bom dia! Ela ergue o olhar. Olhar de quem não dormira, olhar desvairado daqueles que buscam o que, muitas vezes, nem eles próprios sabem… um olhar triste e cansado. Já acordado? O Viagente acorda, não ouvira o que se tinha passado durante a noite, pois o quente de uma cama e a comodidade que essa sensação comporta são pequenos pormenores que devem ser saboreados em plenitude. Dormira, para sempre… O leite fervia atrás, transbordara e o gás, por ele apagado, adensava o ar. O Viagente desliga o fogão e abre a janela perante a impassividade da dona da casa que estagnava, despenteada, observando a parede.

O José tinha saído cerca de meia hora antes para ir ver o seu paciente canídeo: havia dados para analisar, uma pequena festa para fazer. É dever de qualquer veterinário confirmar se o animal tinha passado bem a noite, se inspirava cuidados de maior. Por isso, foi. Disse que assim que pudesse voltava para ir à tal feira, seguindo o programa que tinham delineado.

A Anabela sentia-se perdida na cozinha que ela própria tinha decorado. Os móveis pareciam-lhe vazios e baços, ainda que tivessem os serviços que comprara meses antes de casar; o chão estava frio, embora passadeiras o atapetassem ricamente. As bancadas estavam nuas, e nem os electrodomésticos que nelas estavam arrumados lhe conferiam o movimento e utilidade que mereciam. Havia apenas um silêncio profundo e um frio de gelo absoluto. O Viagente, quando entrar na cozinha, saudando Anabela, sentiu nas palavras da esposa de José esse mesmo frio e um vazio no estar. Era linda a mulher que agora se levantava para segurar um sorriso ao Viagente; era o sorriso que se entrega aos estranhos, quando o nosso mundo está em turbilhão, mas que ninguém deve perceber. Despenteada, sorri, nos seus olhos-avelã, sufocando as lágrimas. Ele viu naquela cara, ainda ensonada, a mesma expressão de desconforto que na noite anterior ela tinha desenhado depois da discussão. O Viagente relembrava-a, ontem, linda e magnífica, como sempre. Com uma maquilhagem de palavras e sorrisos, ela tentou agora disfarçar uma ou outra lágrima que descuidadamente verteu dos seus olhos. Mesmo estando na sua casa, a presença de um estranho deixava aquela mulher desconfortável e sem jeito. No início, o Viagente fingiu não ter visto aquele cenário. A frase quase sempre limpa Está um lindo dia é demasiado óbvia para quem ouve. Certamente percebeu alguma coisa durante a madrugada. Valha-me Deus… depois daquela cena antes do jantar, só faltava mesmo isso, pensavas para ti. Mas ele não ouviu nada; tinha dormido como uma pedra e a sua justeza não permitiria tal afronta. O Viagente com aquela frase apenas queria aliviar um certo ar pesado. Anabela ainda assim era formidável. Passou a mão pela cara e pelo cabelo, declarando: De vez em quando não consigo dormir e, depois, fico neste estado que vês e sorriu. Sorriu com as forças que vêm do fundo do sofrimento. Um sorriso de vencedor depois de uma derrota. Um sorriso de uma mulher soberba.

O Viagente contemplava… Ana era uma mulher magnífica, Bela, concebida no pecado feliz da Natureza. O pijama que trazia era leve como ela tinha sido. Estava em calções, exibindo a perfeição escultural das pernas, e o top colado cingia-lhe o redondo dos seios livres. O Viagente contemplava. Uma mulher, ali, lindíssima, que impotentemente deixava macular a sua beleza pelas facécias que a vida nos impinge. Ele sabia-o: sabia porque também é um homem como todos os outros; sabia porque sente que a vida vivida com intensidade nos arrasta para onde só os outros é que podem cair; sabia porque era por isso que ali estava – para ajudar o amigo. E sorria com essas pilhérias da vida, sorria ainda assim com o espírito crente de que há uma escapatória, mesmo quando tudo parece perdido. Ris Anabela, vejo-o, ris com aquela vontade de querer mostrar o íntimo de ti. Queres falar, fala. Estou aqui para te ouvir. Sempre há noites em que não se pode dormir. Está um calorão… Anabela condescende: É verdade… e arrasta-se para junto dele, puxando uma cadeira, onde o senta. O Viagente sentado observa de perto o corpo quente de Anabela e tacteia o perfume do seu braço que lhe indica o lugar. Tinha ficado um silêncio incomodativo naquele espaço que obrigava a que outra frase oca não deixasse morrer o momento. O diálogo tinha necessariamente de levar outro rumo. O rumo da abertura e do alívio. O que queres comer? Na expressão de Anabela havia uma ruga, traço calcado pelas maldades que a vida faz. Rasgava-lhe a testa, ainda subtil, pondo um não-sei-quê de tristeza. Era quase imperceptível. O Viagente nunca tinha reparado nela, talvez devido aos cosméticos, ou talvez fruto de um fingimento de felicidade que guardamos todos os dias para os outros. E Anabela guardava – tinha, na verdade, essa felicidade para os que estavam à sua volta. Todavia, agora não a conseguia esconder. O Viagente via a ruga claramente. Era uma ruga das maldades que a vida nos faz. A velhice que chega antes do tempo e se instala para sempre; uma velhice triste que te põe feia, Anabela. Uma velhice que te desenha traços que não são teus, sulcos profundos que te pesam e te sufocam. Nem sempre é o tempo que nos envelhece, por vezes são as pessoas. O Viagente ainda não lhe tinha respondido, instalara-se um silêncio na cozinha. Anabela também estava estranhamente constrangida. Havia qualquer coisa que lhe bloqueava as palavras: ou era a sua clara falta de à-vontade perante um homem que não conhecia, ou então um quelque chose estranho que nele brotava.

Deixa estar que eu faço. O mínimo que eu posso fazer é preparar o pequeno-almoço. Acto gentil de um homem que se disponibiliza para elaborar a primeira refeição do dia. Há muito tempo que ninguém me prepara o pequeno-almoço. O Zé anda sempre muito ocupado... O Viagente notou logo ali algo de estranho naquela presença fortuita do ninguém, quando lá deveria estar o José. Não era flagrante, mas simplesmente o subconsciente de uma mulher sistematicamente não olhada. O Viagente levanta-se, em tons de simpatia descomplexada e diz Saem duas torradas quentinhas com leite morno. O pão não era fresco e o pacote de leite já estava aberto, mas ainda assim ele soube dar-lhe as voltas necessárias para tornar aqueles elementos num momento de requinte.

Anabela sentou-se, docemente obrigada pelo amigo. Foi ele que a serviu, solícito. Ela sorria para aquele homem que a começava a fascinar. Tinha um travo a aventura, um sabor a humanidade. Era um bom homem. Fumega da chávena um cheiro macio, branco, e maduro. Estranho por assim dizer, não cheirava praticamente a leite, mas a um perfume atractivo, estranhamente atractivo. Sentados frente-a-frente, o Viagente levanta-se para ir buscar as torradas. Quentes, derretiam a manteiga que se emaranhava pelos favos secos do pão. Tranquilamente a conversa foi surgindo e o ambiente tornou-se mais claro. Já nem se lembrava de um pequeno-almoço tão aconchegante: como é bom sentir o conforto de uma companhia que nos ouve… Então como é ter de aturar tanta criançada?! Anabela ri agora diferente. Ah, os meus meninos… são tão lindos! Adoro trabalhar com eles. Amo-os a todos. É como se fossem meus filhos. E saber que amanhã serão homens… Sabes, é por isso que dou o máximo por eles. Trabalho como se tivesse uma missão nas minhas mãos, a missão de fazer das crianças homens verdadeiros, que entendam o valor do amor. Ela falava, como se sentisse que de facto estava alguém do outro lado a ouvi-la. Iam aparecendo migalhas que caiam para a toalha branca e o pires sujava-se com uma ou outra gota mais ríspida que saltara. Deve ser, realmente, muito aliciante trabalhar com miúdos. Sempre podemos voltar à nossa infância e tentar viver com eles os restos que ainda somos da pureza que já foi e não volta mais. A Anabela tinha saído da mesa para levar a louça suja para a máquina-de-lavar. Apetecia-lhe confiar toda a vida nele. Apetecia-lhe falar, contar as amarguras, a tristeza que a vida lhe fazia. Ela contava: Vês a minha vida? E o sorriso sumia-se-lhe, a testa franzia-se, sulcava-se a ruga e a expressão entristecia, escorregando para o sofrimento. Mas e tu?! O Zé só pensa em trabalho… Agora quer ganhar para comprar isto, depois de termos isto já quer comprar aquilo, depois aqueloutro… Não sei, não sei o que ele quer da vida! A tua vida é que é bem curiosa. Andas, viajas, sem querer muito saber do trabalho ou do dinheiro… pelo menos é isso que das tuas palavras eu percebo. Não queres saber de horários nem de despesas. Não é por aí que o Viagente quer ir, mas compreendia. Vivo neste mundo, Anabela, tal como tu e José… ela atira Onde é que ele está agora? Não estava, era verdade. O Viagente, entre o sentimento que devia ao amigo e o que ouvia, tentava equilibrar-se. Anabela lacrimejava e estende as mãos, procurando o amparo do recém-confidente.

Ou é por causa do cão engenheiro, ou por causa da gata da doutora… As mãos da Anabela agarravam a mão calejada do Viagente. Ela estava em pé a seu lado. Contava: e eu fico para aqui sempre sozinha. Depois, quando chega, ainda se põe com exigências como seu eu fosse um brinquedo que tem de o satisfazer sem que ele tenha de dar nada em troca. Havia agora não mágoa mas um desprezo em relação ao José. Menosprezou-lhe o trabalho e o empenho que ele lhes dedica. Anabela agarra a mão do amigo, como se estivesse a cair e aquela fosse o seu último sustentáculo. Ele contemplava-a, atordoado menos com as revelações que lhe fazia do que com a sensualidade de Anabela. Ela, frágil e carente, olha-o, aproximando-se, incautamente suavizando a mão do Viagente com a pele da coxa. Sabes, no casamento há fases complicadas. Com certeza, vocês estão a passar um desses momentos. Tens de ter calma, Anabela! dizendo isto, afasta escrupulosamente as suas mãos. Transpirava. O coração pulava como louco. E havia José na ausência presente daquela cozinha, o Viagente sabia-o por isso afastara as mãos. E quanto tempo têm essas fases? Quanto tempo terei de ficar à espera? Já nem certeza tenho se ele está de facto a trabalhar ou se me está a enganar! Anabela, percebendo o Viagente, afasta-se e arruma umas chávenas que não estavam no sítio. Agora de costas, prossegue: Ele já não me ama! Usa-me apenas como objecto sexual. Mas, digo-te com sinceridade, isso vai acabar! Ai vai acabar, vai! que já não aguento mais! Desaperta um botão do top descobrindo o seio quase na totalidade. Volta-se, devagar, para o Viagente que via, incomodadamente deslumbrado, a revelação do peito de Anabela sem soutien. Ela aproxima-se e o Viagente deseja-a, deseja-a ardentemente. Anabela percebe-o e sorri. Enquanto dizia aquelas palavras aproxima-se dele, ostentando não sabendo bem porquê a sua condição de mulher. Era-o, sim… era-o de um pleno cheio impossível de não ver. Estava calor na cozinha. O Viagente ardia e Anabela aproxima-se, queimando-o. Passa por trás dele, afagando-lhe o cabelo. Percorre um arrepio de prazer por ele todo. Dão outra vez as mãos. Ela senta-se na cadeira a seu lado e encosta a perna na sua. O Viagente, excitado, procura com a mão aquela coxa irresistível e acaricia-a. Ela encosta-se e ele sente o seio escorregar pelo seu peito. José está ausente na presença constante da amizade. O Viagente deseja aquela mulher.

No entanto, passando-lhe as mãos pelo cabelo, tocando-lhe suavemente a face, diz: És uma grande mulher! Beija-lhe a cara. Temos de arrumar isto! Já são horas de irmos para o festival de música! Deixa-te estar que eu, desta vez, arrumo! O Viagente ergue-se titubeante, tremendo das pernas e arruma a mesa.

 André Matias

Ricardo Oliveira