“[Eu] Caminho Entrecruzado c/ Purê-sentimentos, Arrependimento, ao Molho Vida”
Na casa de banho, o Viagente vestia-se. Fora buscar ao quarto a sua roupa. Em cima da cama estava um pólo azul-escuro, listado; ao lado, uns jeans também azuis, de uma ganga cuidadosamente lavada. Para os pés, uns chinelos castanhos, não muito quentes, conservando o conforto necessário para este tempo de estio. Há algum tempo que o Viagente não sentia no seu corpo este tipo de roupa, pois as condicionantes da viagem obrigavam-no muitas vezes a abdicar de certas benesses que, para pessoas como os seus anfitriões, eram tidas como normais. O Viagente contemplou, por momentos, aquelas peças de vestuário, o modo como tinham sido dispostas sobre a cama e a função de conjunto que forneciam. Não era aquilo, aquele espectáculo, a que estava habituado. Vestiu. Olhou-se ao espelho. Como estava diferente no mesmo de si. Aquela roupa do José confortava-lhe agora as feridas que ainda lhe marcavam o corpo como uma lembrança. Ainda lhe doíam, quando fazia alguns movimentos bruscos, ainda lhe doíam como uma recordação de que na vida as dores são um anúncio constante duma dor suprema que há-de vir, há-de vir sempre, há-de chegar. Mas ainda não chegara. O Viagente vestira lentamente as roupas do amigo José que se colavam às feridas e lhes punham por cima um manto de beleza, da beleza que a vida também tem; um manto de beleza como um anúncio de todo o prazer que estará por vir, que chegará, sempre, que chegará, mesmo quando as feridas são profundas. O cabelo, que retinha ainda alguma humidade do banho, penteara-se agora para trás em perfeita serenidade.
O Viagente vestiu-se e lá fora, Anabela e José emudeciam. Saiu do quarto… aquelas palavras desordeiras tinham efectivamente ido embora. O silêncio era enorme e, por isso, o Viagente retardou-se em pormenores estéticos, distraído, para que os amigos pudessem pintar a sala com a cor que eles gostavam de mostrar. Dirigiu-se para a sala de jantar, onde uma harmonia superficial deslizava pelas notas jazzísticas que perfumavam o ambiente. A mesa já estava posta. José esperava-o sorrindo, Que elegante… É a tua roupa, caro amigo, que faz com que o Homem pareça mais bonito do que realmente é! José abria o vinho adequado à refeição: deu-o a provar, como mandam as regras da etiqueta, ainda que esbatida pelo à-vontade da amizade. Fizemos um “Frango Grelhado c/ Purê, Ervilha ao Molho Manteiga”. Por entre os silêncios das frases dos amigos, ouvia-se aquela música discreta que contrastava com as cores fortes dos tapetes e o negro da mesa.
O Viagente olhava José com saudade: frango grelhado com puré e ervilhas com molho de manteiga, pensava... O semblante do amigo estava carregado, mas com um sorriso que lhe vinha das artes do fingir. Aquelas artes que se adquirem nos ofícios da vida. José sorria, segurando a garrafa de vinho. Viajava, desde a cozinha, o perfume apetitoso do frango que se fundia harmoniosamente nas notas soltas que o jazz ia discorrendo. Na sala-de-jantar faltava ainda Anabela, que se tinha alongado um pouco mais com os preparativos inerentes a um jantar com convidados. Ausentara-se por momentos para se ir arranjar sobriamente para aquele momento. Enquanto os amigos falavam, aparece Anabela com uma travessa na mão, colorida por um amarelo-creme que vinha do molho de manteiga. O Viagente sabia que desta vez não podia deixar que o José saísse da sala, por isso não permitiu que aquela mulher de vestido preto, cintado, em que o decote prometia mais do que deixava ver, o olhasse de um modo menos confortável. Anabela pousou a travessa sobre a mesa, escrupulosamente arranjada, e convidou os companheiros a sentarem-se: Vá… vamos para a mesa para não deixar arrefecer. Trazia um sorriso que o bâton discreto lhe fazia, os olhos guardavam as lágrimas de uma história de amor inacabada e o vestido preto, o luto por uma discussão que não morrera. Sentaram-se os três. O casal ocupou senhorialmente as cabeceiras da mesa; no lado direito do José, senta-se o Viagente mediando simetricamente os dois anfitriões. O frango exalava um perfume calmo, antevendo um paladar forte mas suave, como a ternura dos campos depois de uma chuva de Verão. O Viagente entretinha-se em cruzamentos de metáforas sensoriais, para disfarçar aquela força incompreensivelmente espontânea que uma mulher tem, quando está no altar que umas sandálias de salto alto lhe podem conferir. Mas não… não deixará que o José saia daquela sala, porque não pode, nem é assim. Todavia, Anabela serviu o Viagente enquanto o olhava de um modo profundo. Um olhar que falava mais do que as palavras permitiam. Um olhar cheio de mar. Cheio de infinito azul no castanho profundo do avelã matizado. Um olhar que dizia uma história de amor doído e sofredor. Um olhar que continuou enquanto Anabela serviu José e depois se serviu.
Nos copos de pé alto, passeava-se o bordeaux em vinho tinto. Perfume: temperos em agradável ligação, misturados por uma mão macia mas certeira. Conversa de elementos. Diálogos de estruturas. Depois daquele primeiro silêncio que se senta em todos os jantares, conviva necessário para desfrutar da formalidade do momento e da riqueza do prato, soltam-se as primeiras palavras. É ao Viagente que cabe falar, encetando a primeira cena de um drama que não terá acto, mas perpassará acções de pleno sentido. Parabéns à cozinheira! Não, não devia ter dito aquilo. Deixou de fora o amigo. E como ele queria tanto mantê-lo ali dentro. Ah, muito obrigado… não é nada de especial, são umas coisinhas normais. É costume fazer aquele tipo de prato, de facto, mas o José ainda quente por aquele ambiente de querela com a Anabela diz: Ora, já não comias disto há muito tempo! José irrompe pela cadência inevitável da música que se escutava longe, por trás, como um pano de fundo. A voz dele, ligeiramente ondulada e nervosa, emergia de uma face pálida e sorridente.
O Viagente percebe nas palavras do amigo a intenção ofensiva, contudo permanece sereno, porque ele sabia que, muitas vezes, dizemos as palavras erradas; muitas vezes, as palavras que devíamos dizer ficam enterradas onde não houve coragem para as juntar em frases; muitas vezes, são ditas a uma pessoa para uma outra que era a que devia ouvir, mas não pode escutá-las, porque não são dirigidas a si. O Viagente sabia que as palavras vestem a pessoa, uma pessoa que existe por trás delas e que com elas se disfarça, quando não consegue dizer o que sente. Por isso, fez: Tens razão. Na verdade, não saboreio uma comida tão deliciosa há muito tempo! Sabes, amigo, foi a vida que escolhi! Anabela, intrigada, pergunta: Mas a tua vida impede-te de comer? O Viagente sorri, esquecendo José a um canto da sala, embora ele permanecesse no topo da mesa. E conta: Não. Quis dizer apenas que, hoje em dia, não costumo comer pratos tão elaborados. Escolhi um caminho para a minha vida e parti em busca dele. Anabela olhava-o intensamente como se ele lhe fosse oferecer uma revelação, uma verdade qualquer que ela sabia existir, mas nunca ousara procurar. O barulho dos talheres trazia à realidade aquelas frases, cortando e levando à boca em pedacinhos comestíveis o significado de cada uma delas. Sabes uma coisa interessante que hoje aconteceu lá na clínica? apareceu lá um caniche com um problema nos olhos. Tem de ser operado. O José tentava disparar a conversa para outra direcção, para se fazer novamente o centro das atenções. Anabela não deu importância, só sabia falar daquilo e nada mais. Tem graça, um dia também conheci um cão, era apenas um cão que tinha nos olhos uma sabedoria que não soube ler. O José não entendera, soara-lhe a disparate; a Anabela pela incompreensão da mensagem queria saber mais. Falas com uma paixão desinteressada… sorriu-se. Não havia nada a fazer: o José não voltaria à clínica de veterinária em que iria operar o caniche; o Viagente via-se mesmo na eminência de falar um pouco mais sobre si próprio para contentar a Anabela. E onde o foste procurar? Os aromas fortes e ternos enfeitavam sensualmente a conversa. Ao longe, como a música, estava José, duplamente arrependido: porque tinha sido mal-educado com o seu amigo, que ali viera a seu chamamento e porque tinha desencadeado o diálogo entre a sua mulher e o Viagente, auto-excluíndo-se. Bebia o vinho. Terminava um copo. Enchia outro. Anabela estava linda, comendo e saboreando as palavras do Viagente. Sabiam a aventura. Sabiam a terra e a vida… O Viagente contava… e por isso é que fui para lá, assim sem nada. Larguei tudo e trajei-me como um peregrino. Um genuíno peregrino que avança pelo mundo à procura de si nas amizades que vai fazendo ao longo do caminho…
Desinibido, o Viagente enchia novamente o prato Delicioso! Subtilmente, nascia um rubor nas faces de Anabela, talvez do vinho ou quiçá das palavras. O Viagente reassume a sua narrativa, reencontrando o tom na melodia que acontecia. ...visitei localidades que são homens, conheci paisagens que são metáforas e então compreendi que a maneira de me entender era por dentro da metáfora… José corta-o: Sempre foste um poeta! Metáforas!... As metáforas, que têm a ver com a vida? A vida dos homens faz-se trabalhando. Trabalhando para vencer e sustentar a família. São palavras muito românticas as tuas… continuas o mesmo sonhador de sempre, pá! Mas a vida não é isso. Se a vida não é isso, então o que deveria ser? Ter um carro de gama alta, uma casa com decoração moderna, uma mulher bonita, sem saber no meio de tudo isto onde está a felicidade e a essência de ser com ela? Latejavam estas palavras pelas veias do Viagente.
Tu, afinal, o que ganhaste? O Viagente olha-o e responde Nada. Tu é que ganhaste e ganhas muito. Tens razão, José, este homem-andarilho não tem os luxos que agora possuis, mas foi a ele que chamaste, foi a ele a quem recorreste, porque sabes, sim… sabe-lo bem, que desde puto foi ele que sempre te ajudou a descobrires o teu caminho, a perceberes quem tu és. Mas estás agora cego pelos prazeres da vida que escolheste. Não sei bem o que é a vida, José. Por isso, fui à procura dela, para sentir em cada momento toda a força que dela pode vir. Era disto que falávamos quando éramos mais pequenos: como seria possível meter a força das ondas dentro de uma caixinha de fósforos. Anabela embevecia-se com a simplicidade grande daquelas frases daquele agora mais amigo. Ela entendia-o. Sim. Ela entendia-o, porque também ela no sorriso das suas crianças mantinha uma força viva da verdadeira dimensão de existir. O Viagente conhecia a distância que agora o separava do seu amigo. Sabia também que no momento em que iniciaram a corrida da vida, o José disparou desenfreadamente, enquanto ele caminhou devagar pela pista. Havia que comer tranquilamente, saborear o bom vinho com que o presenteavam. Olhos nos olhos, sempre, Anabela pergunta: Nunca te arrependeste? Por acaso… não, disse o Viagente. Não me arrependo da vida que escolhi, sou isto.
A frase do Viagente pairava sobre o jantar como uma verdade inesperada. José enternecia-se como que saboreando memórias, arrancando aos momentos partilhados com aquele companheiro a magia que ele punha na vida. Anabela sorria com os olhos brilhantes e húmidos, juntando curtos pedaços de frango que levava à boca devagar e pausadamente. Havia um solo de guitarra que falava agora, enquanto na mesa repousava um silêncio feliz. Era um silêncio meditativo e apaziguador. O silêncio necessário para que as palavras ditas deixem de ser palavras e nasçam como fragmentos de vida em quem as ouve. A guitarra falava. Parecia contar uma história de amor que a bateria desencontrava; parecia uma história de dois amantes desencontrados que se procuravam na harmonia da música.
O Viagente termina o prato. Queres mais? Tu come! remata José imperativo. As palavras vinham agora com outra tonalidade. A culpa talvez fosse do saxofone soprano e das vassouras que deslizavam pela pele da tarola naquele seu jazz mais calmo e menos grosseiro. Estou satisfeitíssimo… Bebo, se me servires, mais um copo! José levanta-se e serve o amigo. Ele bebe. O vinho intenso e profundo tinha um fim interminável como o sabor do amor. José, aproveitando o ensejo de estar de pé, levanta os pratos da mesa, declarando que iria buscar a sobremesa. Anabela olhou-o, enternecida, percebendo que o marido queria redimir-se da discussão que aconteceu na cozinha e das palavras áridas que arremessou ao amigo. Não deixou criar momentos mortos, acelerou o passo, e trouxe rapidamente a sobremesa do frigorífico. Não é por nada, mas uma coisa assim não podes ter comido, porque não há ninguém que faça uma mousse de chocolate como a minha Anabela. Redimia-se o José, porque afinal era uma simples mousse instantânea que a Anabela tinha preparado numa batedeira eléctrica e ela sabia-o. Mas aquele possessivo, determinantemente pronominal, aquele simplesmente minha abriu-lhe novamente a sala para que entrasse pleno e se sentasse verdadeiramente à mesa com os outros dois. Da Anabela um sorriso tenro e terno: ela desculpa-te porque é a tua mulher e porque ainda assim te ama. Serviu três taças de mousse de chocolate, dizendo ao mesmo tempo que se sentava: A tua viagem parece-me muito rica. Não queres contar nenhuma aventura?
O Viagente olha-o, redescobrindo no seu olhar os olhos antigos da infância; os olhos inocentes e verdadeiros; os olhos meigos e doces do amigo. Por isso, o Viagente sorri enquanto recorda, por isso, ele conta não as aventuras que passou, mas a história que as fez viver. Era uma mulher…nem sei como vos hei-de dizer. Era a minha companheira. Amava-a como nunca amei ninguém. Sei lá, amigos, como vos hei-de contar. É tão difícil ver-me ao espelho, dizer o que sou, sem me magoar. Há que ter calma. Os erros são a vicissitude de se estar vivo. E eu errei, como errei, amigos… Por isso, erro agora ainda. Por vezes, a presença daquilo que somos faz tão mal aos outros. E eu nem sempre vi, nem sempre vejo. Erro. Erro tanto quando me expando para o mundo dos que me ouvem… Há que ter calma. O erro é uma vicissitude de se estar vivo. Aquela pergunta do amigo suscitou no Viagente as memórias do baú que tinha fechado antes de começar a andar. Não queres falar, eu sei, não queres falar porque iniciaste uma viagem sem regresso, em que procuras o que não foste e queres saber o porquê.
Coloco o dedo no ponteiro do relógio e agarro o pêndulo por momentos, para poder dar a este homem o tempo necessário de se espelhar. Precisa-o como o ar que respira, como o sangue que lhe corre nas veias. Tempo. É nele que anda à procura do que aconteceu. Projecta-se no teu futuro as acções do teu passado que não queres repetir. Tempo. Paz. Dor. Magoa… dói-te ainda aquele dia em que te foram ditas as palavras que pensaste que nunca seriam para ti. Sentado, naquele banco de réu, ela disse-te um adeus profundo como a cova de um poço. Escuro. Queres apagar esse dia com um branco de paz, mas esse escuro é demasiado espesso, grosso e peganhento. Homem, tens os teus amigos à espera naquelas cadeiras, inertes pelo tempo que pude suspender. Não o consigo por muito mais tempo, porque a corda do relógio vital é forte e o pêndulo é balanceado pelo dinamismo das gerações. Volta àquela sala e fala, fala com eles para te dizeres a ti que tens um passado que queres enfrentar. O Viagente, depois de uma rápida introspecção, continua. Ela era linda, mas nunca a conheci. Nunca quis ouvir o que ela tinha a dizer, porque sempre tive muito a falar. Então eu mostrava-lhe todo o mundo contido nas minhas palavras fúteis e ela ouvia apaixonada; aprendia de mim a maneira de existir. Mas eu não via, não a conhecia. Companheiros, fiz uma viagem pelo amor de olhos fechados, pensei que o amor fosse um sentimento meu e que se eu amasse muito… mas não soube que o amor é um sentimento nosso. Certo dia… foi nessa noite. Estávamos na varanda da minha casa. Eu calculava nas estrelas o número infinito do meu amor e ela disse-me que era louco, porque o amor não estava nas estrelas. Disse-me que o amor estava aqui na terra, nas pessoas, e que eram as pessoas que tinham de ser amadas, não as estrelas. Nessa noite, ela despediu-se, foi. Deixou a vila e a mim. Ela tinha falado e, pela primeira vez, eu tinha reparado que a voz dela era ondulada e rouca. Pela primeira vez, reparei que ela discordava de mim. Pela primeira vez, vi que ela existia e que a tinha inundado de mim. E agora, onde estás dentro de mim? Memória de um sentimento meu que encontrei no teu ser. Onde estás? Pela primeira vez… a luz das estrelas que eu lhe espalhava ofuscava-a. Ofuscou-a tanto. Encandeou-a até ela ter de deixar de me ver. Por isso ela foi. Deixou a vila naquela noite. Errei tanto, demasiado. Por vezes, distraímo-nos tanto com o que somos, que esquecemos que os outros também existem tanto como nós; sonham e amam com a mesma intensidade… sentem como um eu que também necessita de gritar ao mundo a sua presença. A música tinha terminado, porém José não se levantava da cadeira. Anabela segurava uma colher de mousse que teimava em não levar à boca. Estava triste Anabela, parecendo reconhecer na vida daquele insólito homem uma qualquer coisa de familiar. Era aquela história. Era o amor, sempre tão difícil de compreender para o Homem. Naquela noite percebi o que tinha feito. Dei somente importância ao amor que sentia e nada fiz para o cultivar. O amor tem de ser cultivado. É como uma planta frágil que, se não recebe os cuidados das mãos hábeis do agricultor, morre à força das intempéries. E eu, amigos…as minhas mãos são ásperas, não sabem cuidar de planta tão subtil. A música retoma como num golpe de mágica. Novamente os tons quentes da sala animam-se pela cadência melódica daquele jazz, agora numa dinâmica crescente de alegria contraditória. Anabela, finalmente, leva a colher à boca e saboreia por dentro as palavras do Viagente. Na manhã seguinte, decidi desfazer-me de toda a vida que tinha como se me pudesse despir das minhas acções anteriores, e saí em busca de mim próprio por essas estradas que a vida nos vai fazendo cruzar. Saí à minha procura. Saí com a esperança de me renovar. Encontrar-me nas estradas que entrecruzo com os outros seres que me habitam e procurar neles, sim, procurar neles a beleza que eles têm, para me construir. Por isso saí, procurando no outro a minha existência. Por isso, hoje sou um peregrino. Um peregrino que deseja encontrar o amor que o faz viver. Por isso, depois de ver os homens e olhá-los profundamente, paro para estar contigo, contigo que me acompanhas sem estares a meu lado, companheira. O jazz fecha-se num emaranhado de sons descruzados, numa desarmonia que se melodia depois. Anabela termina a mousse e adoça a vertigem das memórias do Viagente com um sorriso faiscante e sincero.
O eco das palavras do Viagente refracta-se até à inexistência, o CD termina. O silêncio é uma música de notas ausentes. Ninguém fala. José e Anabela estão fixos nele: a vida, por vezes, arrasta um peso tão grande… aquele homem, aquele homem de sorriso largo e coração aberto, carregava o peso imenso da culpa, a força esmagadora da perda. Anabela e José não ousavam quebrar o silêncio, estavam os três suspensos num daqueles raros momentos em que se dialoga por dentro e se escuta aquela voz, filha do silêncio, que diz: “Tu também erraste!” A tal história que todos queriam que fosse relatada não surgiu. Não apareceu nenhum rio atravessado a vau, nenhuma fogueira acesa no meio do nenhures para aquecer uma lata de feijão. Muito menos uma palavra saiu daquela passagem pela aldeia em que vagueava um fantasma vestido de criança. Não, nada disso fora contado, apenas a dor, a tristeza de um homem que se fez à estrada.
Todavia, Anabela era mulher, estava habituada a sofrer, guardava em si a dor pulsante da vida. Ela sabia que da dor nasce o prazer, por isso compôs um sorriso, com um travo a tristeza. Era preciso desanuviar aquele clima pesado – uma mulher tem sempre a sensibilidade necessária para puxar uma conversa para o rumo certo. Uma vez mais, o jazz que toca soa à primeira faixa do CD. Desta vez levanta-se Anabela. Chega de jazz, já estou saturada! Por isso, dirigindo-se para o aparelho de alta-fidelidade pergunta ao Viagente que tipo de música aprecia. Gosto bastante de música tradicional. Ela sorri, agora sem o sabor da tristeza, porque há momentos em que a felicidade é tão grande que esquecemos as restantes dores que sentimos. Simplesmente, porque sinto naqueles instrumentos uma singeleza original, uma pureza dos ancestrais. Nisto, intervém José: Era só o que mais faltava, essa agora… Com que então vais-me dizer que um so-li-dó trauteado num cavaquinho está carregado dessa abrangência intelectual toda?! Só mesmo tu, olha… Ó José, lá estás tu outra vez. Essa insensibilidade egoísta, não por comentares a música, mas por escarneceres das palavras do teu amigo, empurra-te para fora de qualquer esfera que uma conversa cria. Excluis-te, porque pisas o espaço do outro, esmagas unicamente para que a tua posição sobressaia.
O Viagente, recomposto da viagem que tinha contado e revivido, aconchega os pés num tapete macio que o acarinhava, acrescenta: Mas dentro da música tradicional, o que mais me preenche é, sobretudo, a música celta. É nestes momentos que apetece soltar uma gargalhada, porém Anabela conteve-se, embora o rubor na sua face a denunciasse. Curioso! Também gosto desse tipo de música! Também sinto isso que dizes, tem graça. Aprecio uma boa sinfonia, ou um jazz cheio de swing, mas continuo a ver na nossa música tradicional a voz de um ontem que se mantém aqui. Engraçado! Não era costume Anabela falar assim deste jeito, por metáforas, mas o Viagente tinha-a contaminado pelo seu modo de falar. Na vida, por vezes acontece encontrar alguém que entende as palavras que dizemos, é nesses dias, em que descobrimos que não estamos sós, que nos apetece sorrir, dançar, falar e no fim, ou talvez no princípio, amar.
Vou colocar um CD que comprei há pouco tempo. O tal silêncio retira-se como a sombra ao chegar a noite; não há lugar para as sombras na luz que a música celta faz, por isso José também participa, sorrindo: Lá estás tu com os teus gostos despropositados! É um grupo de inspiração celta, diz Anabela, Muito interessante! De facto, interessante é como as pessoas tocam na vida uma das outras sem o saberem, sem adivinharem que uma simples palavra avulsa e inocente poderá suscitar emoções tão simples como a cheiro a flores ou tão forte como a brusquidão de um vendaval. Anabela não sabia que aquele homem que ali estava diante si era um tocador. Sentia a música para não estar sozinho, assim, simplesmente. Não trovava às damas medievais, nem cantava feitos de heróis míticos. Apenas soprava. Soprava para aquela gaita-de-foles, que agora estava partida. O CD começa a tocar e a sala preenche-se com os sons dos antigos tão sabiamente de hoje. Anabela, dançando sem ousadia, mas sensualmente descomplexada, regressa à mesa.
Se o José não menosprezava verdadeiramente esta música, pelo menos não a considerava tanto como a verdadeira música, a mais intelectual, a mais erudita. Por isso, aqueles sons nada lhe diziam. Gostas?! perguntou Anabela. O Viagente responde-lhe com um brilho nos olhos e um sorriso nos lábios. Vai haver um festival de música tradicional este fim-de-semana cá na cidade – vinha mesmo a calhar para ele, podia encontrar alguém que soubesse arranjar a sua gaita-de-foles. Uma óptima ideia seria irem vocês os dois, atalhou José, temendo que Anabela o arrastasse para meio daquele folclore que não apreciava. No calor do entusiasmo que aquela música oferecia, Anabela dispara: Vamos lá amanhã! José sorri para a ideia como um adulto para o disparate de uma criança. O marido mostrava-se insensível, e por isso quis despachar o frete para o amigo. O Viagente reparando no quadro, percebeu que o melhor seria aceitar: Combinado! Amanhã estamos lá os três.
Na casa de banho, o Viagente vestia-se. Fora buscar ao quarto a sua roupa. Em cima da cama estava um pólo azul-escuro, listado; ao lado, uns jeans também azuis, de uma ganga cuidadosamente lavada. Para os pés, uns chinelos castanhos, não muito quentes, conservando o conforto necessário para este tempo de estio. Há algum tempo que o Viagente não sentia no seu corpo este tipo de roupa, pois as condicionantes da viagem obrigavam-no muitas vezes a abdicar de certas benesses que, para pessoas como os seus anfitriões, eram tidas como normais. O Viagente contemplou, por momentos, aquelas peças de vestuário, o modo como tinham sido dispostas sobre a cama e a função de conjunto que forneciam. Não era aquilo, aquele espectáculo, a que estava habituado. Vestiu. Olhou-se ao espelho. Como estava diferente no mesmo de si. Aquela roupa do José confortava-lhe agora as feridas que ainda lhe marcavam o corpo como uma lembrança. Ainda lhe doíam, quando fazia alguns movimentos bruscos, ainda lhe doíam como uma recordação de que na vida as dores são um anúncio constante duma dor suprema que há-de vir, há-de vir sempre, há-de chegar. Mas ainda não chegara. O Viagente vestira lentamente as roupas do amigo José que se colavam às feridas e lhes punham por cima um manto de beleza, da beleza que a vida também tem; um manto de beleza como um anúncio de todo o prazer que estará por vir, que chegará, sempre, que chegará, mesmo quando as feridas são profundas. O cabelo, que retinha ainda alguma humidade do banho, penteara-se agora para trás em perfeita serenidade.
O Viagente vestiu-se e lá fora, Anabela e José emudeciam. Saiu do quarto… aquelas palavras desordeiras tinham efectivamente ido embora. O silêncio era enorme e, por isso, o Viagente retardou-se em pormenores estéticos, distraído, para que os amigos pudessem pintar a sala com a cor que eles gostavam de mostrar. Dirigiu-se para a sala de jantar, onde uma harmonia superficial deslizava pelas notas jazzísticas que perfumavam o ambiente. A mesa já estava posta. José esperava-o sorrindo, Que elegante… É a tua roupa, caro amigo, que faz com que o Homem pareça mais bonito do que realmente é! José abria o vinho adequado à refeição: deu-o a provar, como mandam as regras da etiqueta, ainda que esbatida pelo à-vontade da amizade. Fizemos um “Frango Grelhado c/ Purê, Ervilha ao Molho Manteiga”. Por entre os silêncios das frases dos amigos, ouvia-se aquela música discreta que contrastava com as cores fortes dos tapetes e o negro da mesa.
O Viagente olhava José com saudade: frango grelhado com puré e ervilhas com molho de manteiga, pensava... O semblante do amigo estava carregado, mas com um sorriso que lhe vinha das artes do fingir. Aquelas artes que se adquirem nos ofícios da vida. José sorria, segurando a garrafa de vinho. Viajava, desde a cozinha, o perfume apetitoso do frango que se fundia harmoniosamente nas notas soltas que o jazz ia discorrendo. Na sala-de-jantar faltava ainda Anabela, que se tinha alongado um pouco mais com os preparativos inerentes a um jantar com convidados. Ausentara-se por momentos para se ir arranjar sobriamente para aquele momento. Enquanto os amigos falavam, aparece Anabela com uma travessa na mão, colorida por um amarelo-creme que vinha do molho de manteiga. O Viagente sabia que desta vez não podia deixar que o José saísse da sala, por isso não permitiu que aquela mulher de vestido preto, cintado, em que o decote prometia mais do que deixava ver, o olhasse de um modo menos confortável. Anabela pousou a travessa sobre a mesa, escrupulosamente arranjada, e convidou os companheiros a sentarem-se: Vá… vamos para a mesa para não deixar arrefecer. Trazia um sorriso que o bâton discreto lhe fazia, os olhos guardavam as lágrimas de uma história de amor inacabada e o vestido preto, o luto por uma discussão que não morrera. Sentaram-se os três. O casal ocupou senhorialmente as cabeceiras da mesa; no lado direito do José, senta-se o Viagente mediando simetricamente os dois anfitriões. O frango exalava um perfume calmo, antevendo um paladar forte mas suave, como a ternura dos campos depois de uma chuva de Verão. O Viagente entretinha-se em cruzamentos de metáforas sensoriais, para disfarçar aquela força incompreensivelmente espontânea que uma mulher tem, quando está no altar que umas sandálias de salto alto lhe podem conferir. Mas não… não deixará que o José saia daquela sala, porque não pode, nem é assim. Todavia, Anabela serviu o Viagente enquanto o olhava de um modo profundo. Um olhar que falava mais do que as palavras permitiam. Um olhar cheio de mar. Cheio de infinito azul no castanho profundo do avelã matizado. Um olhar que dizia uma história de amor doído e sofredor. Um olhar que continuou enquanto Anabela serviu José e depois se serviu.
Nos copos de pé alto, passeava-se o bordeaux em vinho tinto. Perfume: temperos em agradável ligação, misturados por uma mão macia mas certeira. Conversa de elementos. Diálogos de estruturas. Depois daquele primeiro silêncio que se senta em todos os jantares, conviva necessário para desfrutar da formalidade do momento e da riqueza do prato, soltam-se as primeiras palavras. É ao Viagente que cabe falar, encetando a primeira cena de um drama que não terá acto, mas perpassará acções de pleno sentido. Parabéns à cozinheira! Não, não devia ter dito aquilo. Deixou de fora o amigo. E como ele queria tanto mantê-lo ali dentro. Ah, muito obrigado… não é nada de especial, são umas coisinhas normais. É costume fazer aquele tipo de prato, de facto, mas o José ainda quente por aquele ambiente de querela com a Anabela diz: Ora, já não comias disto há muito tempo! José irrompe pela cadência inevitável da música que se escutava longe, por trás, como um pano de fundo. A voz dele, ligeiramente ondulada e nervosa, emergia de uma face pálida e sorridente.
O Viagente percebe nas palavras do amigo a intenção ofensiva, contudo permanece sereno, porque ele sabia que, muitas vezes, dizemos as palavras erradas; muitas vezes, as palavras que devíamos dizer ficam enterradas onde não houve coragem para as juntar em frases; muitas vezes, são ditas a uma pessoa para uma outra que era a que devia ouvir, mas não pode escutá-las, porque não são dirigidas a si. O Viagente sabia que as palavras vestem a pessoa, uma pessoa que existe por trás delas e que com elas se disfarça, quando não consegue dizer o que sente. Por isso, fez: Tens razão. Na verdade, não saboreio uma comida tão deliciosa há muito tempo! Sabes, amigo, foi a vida que escolhi! Anabela, intrigada, pergunta: Mas a tua vida impede-te de comer? O Viagente sorri, esquecendo José a um canto da sala, embora ele permanecesse no topo da mesa. E conta: Não. Quis dizer apenas que, hoje em dia, não costumo comer pratos tão elaborados. Escolhi um caminho para a minha vida e parti em busca dele. Anabela olhava-o intensamente como se ele lhe fosse oferecer uma revelação, uma verdade qualquer que ela sabia existir, mas nunca ousara procurar. O barulho dos talheres trazia à realidade aquelas frases, cortando e levando à boca em pedacinhos comestíveis o significado de cada uma delas. Sabes uma coisa interessante que hoje aconteceu lá na clínica? apareceu lá um caniche com um problema nos olhos. Tem de ser operado. O José tentava disparar a conversa para outra direcção, para se fazer novamente o centro das atenções. Anabela não deu importância, só sabia falar daquilo e nada mais. Tem graça, um dia também conheci um cão, era apenas um cão que tinha nos olhos uma sabedoria que não soube ler. O José não entendera, soara-lhe a disparate; a Anabela pela incompreensão da mensagem queria saber mais. Falas com uma paixão desinteressada… sorriu-se. Não havia nada a fazer: o José não voltaria à clínica de veterinária em que iria operar o caniche; o Viagente via-se mesmo na eminência de falar um pouco mais sobre si próprio para contentar a Anabela. E onde o foste procurar? Os aromas fortes e ternos enfeitavam sensualmente a conversa. Ao longe, como a música, estava José, duplamente arrependido: porque tinha sido mal-educado com o seu amigo, que ali viera a seu chamamento e porque tinha desencadeado o diálogo entre a sua mulher e o Viagente, auto-excluíndo-se. Bebia o vinho. Terminava um copo. Enchia outro. Anabela estava linda, comendo e saboreando as palavras do Viagente. Sabiam a aventura. Sabiam a terra e a vida… O Viagente contava… e por isso é que fui para lá, assim sem nada. Larguei tudo e trajei-me como um peregrino. Um genuíno peregrino que avança pelo mundo à procura de si nas amizades que vai fazendo ao longo do caminho…
Desinibido, o Viagente enchia novamente o prato Delicioso! Subtilmente, nascia um rubor nas faces de Anabela, talvez do vinho ou quiçá das palavras. O Viagente reassume a sua narrativa, reencontrando o tom na melodia que acontecia. ...visitei localidades que são homens, conheci paisagens que são metáforas e então compreendi que a maneira de me entender era por dentro da metáfora… José corta-o: Sempre foste um poeta! Metáforas!... As metáforas, que têm a ver com a vida? A vida dos homens faz-se trabalhando. Trabalhando para vencer e sustentar a família. São palavras muito românticas as tuas… continuas o mesmo sonhador de sempre, pá! Mas a vida não é isso. Se a vida não é isso, então o que deveria ser? Ter um carro de gama alta, uma casa com decoração moderna, uma mulher bonita, sem saber no meio de tudo isto onde está a felicidade e a essência de ser com ela? Latejavam estas palavras pelas veias do Viagente.
Tu, afinal, o que ganhaste? O Viagente olha-o e responde Nada. Tu é que ganhaste e ganhas muito. Tens razão, José, este homem-andarilho não tem os luxos que agora possuis, mas foi a ele que chamaste, foi a ele a quem recorreste, porque sabes, sim… sabe-lo bem, que desde puto foi ele que sempre te ajudou a descobrires o teu caminho, a perceberes quem tu és. Mas estás agora cego pelos prazeres da vida que escolheste. Não sei bem o que é a vida, José. Por isso, fui à procura dela, para sentir em cada momento toda a força que dela pode vir. Era disto que falávamos quando éramos mais pequenos: como seria possível meter a força das ondas dentro de uma caixinha de fósforos. Anabela embevecia-se com a simplicidade grande daquelas frases daquele agora mais amigo. Ela entendia-o. Sim. Ela entendia-o, porque também ela no sorriso das suas crianças mantinha uma força viva da verdadeira dimensão de existir. O Viagente conhecia a distância que agora o separava do seu amigo. Sabia também que no momento em que iniciaram a corrida da vida, o José disparou desenfreadamente, enquanto ele caminhou devagar pela pista. Havia que comer tranquilamente, saborear o bom vinho com que o presenteavam. Olhos nos olhos, sempre, Anabela pergunta: Nunca te arrependeste? Por acaso… não, disse o Viagente. Não me arrependo da vida que escolhi, sou isto.
A frase do Viagente pairava sobre o jantar como uma verdade inesperada. José enternecia-se como que saboreando memórias, arrancando aos momentos partilhados com aquele companheiro a magia que ele punha na vida. Anabela sorria com os olhos brilhantes e húmidos, juntando curtos pedaços de frango que levava à boca devagar e pausadamente. Havia um solo de guitarra que falava agora, enquanto na mesa repousava um silêncio feliz. Era um silêncio meditativo e apaziguador. O silêncio necessário para que as palavras ditas deixem de ser palavras e nasçam como fragmentos de vida em quem as ouve. A guitarra falava. Parecia contar uma história de amor que a bateria desencontrava; parecia uma história de dois amantes desencontrados que se procuravam na harmonia da música.
O Viagente termina o prato. Queres mais? Tu come! remata José imperativo. As palavras vinham agora com outra tonalidade. A culpa talvez fosse do saxofone soprano e das vassouras que deslizavam pela pele da tarola naquele seu jazz mais calmo e menos grosseiro. Estou satisfeitíssimo… Bebo, se me servires, mais um copo! José levanta-se e serve o amigo. Ele bebe. O vinho intenso e profundo tinha um fim interminável como o sabor do amor. José, aproveitando o ensejo de estar de pé, levanta os pratos da mesa, declarando que iria buscar a sobremesa. Anabela olhou-o, enternecida, percebendo que o marido queria redimir-se da discussão que aconteceu na cozinha e das palavras áridas que arremessou ao amigo. Não deixou criar momentos mortos, acelerou o passo, e trouxe rapidamente a sobremesa do frigorífico. Não é por nada, mas uma coisa assim não podes ter comido, porque não há ninguém que faça uma mousse de chocolate como a minha Anabela. Redimia-se o José, porque afinal era uma simples mousse instantânea que a Anabela tinha preparado numa batedeira eléctrica e ela sabia-o. Mas aquele possessivo, determinantemente pronominal, aquele simplesmente minha abriu-lhe novamente a sala para que entrasse pleno e se sentasse verdadeiramente à mesa com os outros dois. Da Anabela um sorriso tenro e terno: ela desculpa-te porque é a tua mulher e porque ainda assim te ama. Serviu três taças de mousse de chocolate, dizendo ao mesmo tempo que se sentava: A tua viagem parece-me muito rica. Não queres contar nenhuma aventura?
O Viagente olha-o, redescobrindo no seu olhar os olhos antigos da infância; os olhos inocentes e verdadeiros; os olhos meigos e doces do amigo. Por isso, o Viagente sorri enquanto recorda, por isso, ele conta não as aventuras que passou, mas a história que as fez viver. Era uma mulher…nem sei como vos hei-de dizer. Era a minha companheira. Amava-a como nunca amei ninguém. Sei lá, amigos, como vos hei-de contar. É tão difícil ver-me ao espelho, dizer o que sou, sem me magoar. Há que ter calma. Os erros são a vicissitude de se estar vivo. E eu errei, como errei, amigos… Por isso, erro agora ainda. Por vezes, a presença daquilo que somos faz tão mal aos outros. E eu nem sempre vi, nem sempre vejo. Erro. Erro tanto quando me expando para o mundo dos que me ouvem… Há que ter calma. O erro é uma vicissitude de se estar vivo. Aquela pergunta do amigo suscitou no Viagente as memórias do baú que tinha fechado antes de começar a andar. Não queres falar, eu sei, não queres falar porque iniciaste uma viagem sem regresso, em que procuras o que não foste e queres saber o porquê.
Coloco o dedo no ponteiro do relógio e agarro o pêndulo por momentos, para poder dar a este homem o tempo necessário de se espelhar. Precisa-o como o ar que respira, como o sangue que lhe corre nas veias. Tempo. É nele que anda à procura do que aconteceu. Projecta-se no teu futuro as acções do teu passado que não queres repetir. Tempo. Paz. Dor. Magoa… dói-te ainda aquele dia em que te foram ditas as palavras que pensaste que nunca seriam para ti. Sentado, naquele banco de réu, ela disse-te um adeus profundo como a cova de um poço. Escuro. Queres apagar esse dia com um branco de paz, mas esse escuro é demasiado espesso, grosso e peganhento. Homem, tens os teus amigos à espera naquelas cadeiras, inertes pelo tempo que pude suspender. Não o consigo por muito mais tempo, porque a corda do relógio vital é forte e o pêndulo é balanceado pelo dinamismo das gerações. Volta àquela sala e fala, fala com eles para te dizeres a ti que tens um passado que queres enfrentar. O Viagente, depois de uma rápida introspecção, continua. Ela era linda, mas nunca a conheci. Nunca quis ouvir o que ela tinha a dizer, porque sempre tive muito a falar. Então eu mostrava-lhe todo o mundo contido nas minhas palavras fúteis e ela ouvia apaixonada; aprendia de mim a maneira de existir. Mas eu não via, não a conhecia. Companheiros, fiz uma viagem pelo amor de olhos fechados, pensei que o amor fosse um sentimento meu e que se eu amasse muito… mas não soube que o amor é um sentimento nosso. Certo dia… foi nessa noite. Estávamos na varanda da minha casa. Eu calculava nas estrelas o número infinito do meu amor e ela disse-me que era louco, porque o amor não estava nas estrelas. Disse-me que o amor estava aqui na terra, nas pessoas, e que eram as pessoas que tinham de ser amadas, não as estrelas. Nessa noite, ela despediu-se, foi. Deixou a vila e a mim. Ela tinha falado e, pela primeira vez, eu tinha reparado que a voz dela era ondulada e rouca. Pela primeira vez, reparei que ela discordava de mim. Pela primeira vez, vi que ela existia e que a tinha inundado de mim. E agora, onde estás dentro de mim? Memória de um sentimento meu que encontrei no teu ser. Onde estás? Pela primeira vez… a luz das estrelas que eu lhe espalhava ofuscava-a. Ofuscou-a tanto. Encandeou-a até ela ter de deixar de me ver. Por isso ela foi. Deixou a vila naquela noite. Errei tanto, demasiado. Por vezes, distraímo-nos tanto com o que somos, que esquecemos que os outros também existem tanto como nós; sonham e amam com a mesma intensidade… sentem como um eu que também necessita de gritar ao mundo a sua presença. A música tinha terminado, porém José não se levantava da cadeira. Anabela segurava uma colher de mousse que teimava em não levar à boca. Estava triste Anabela, parecendo reconhecer na vida daquele insólito homem uma qualquer coisa de familiar. Era aquela história. Era o amor, sempre tão difícil de compreender para o Homem. Naquela noite percebi o que tinha feito. Dei somente importância ao amor que sentia e nada fiz para o cultivar. O amor tem de ser cultivado. É como uma planta frágil que, se não recebe os cuidados das mãos hábeis do agricultor, morre à força das intempéries. E eu, amigos…as minhas mãos são ásperas, não sabem cuidar de planta tão subtil. A música retoma como num golpe de mágica. Novamente os tons quentes da sala animam-se pela cadência melódica daquele jazz, agora numa dinâmica crescente de alegria contraditória. Anabela, finalmente, leva a colher à boca e saboreia por dentro as palavras do Viagente. Na manhã seguinte, decidi desfazer-me de toda a vida que tinha como se me pudesse despir das minhas acções anteriores, e saí em busca de mim próprio por essas estradas que a vida nos vai fazendo cruzar. Saí à minha procura. Saí com a esperança de me renovar. Encontrar-me nas estradas que entrecruzo com os outros seres que me habitam e procurar neles, sim, procurar neles a beleza que eles têm, para me construir. Por isso saí, procurando no outro a minha existência. Por isso, hoje sou um peregrino. Um peregrino que deseja encontrar o amor que o faz viver. Por isso, depois de ver os homens e olhá-los profundamente, paro para estar contigo, contigo que me acompanhas sem estares a meu lado, companheira. O jazz fecha-se num emaranhado de sons descruzados, numa desarmonia que se melodia depois. Anabela termina a mousse e adoça a vertigem das memórias do Viagente com um sorriso faiscante e sincero.
O eco das palavras do Viagente refracta-se até à inexistência, o CD termina. O silêncio é uma música de notas ausentes. Ninguém fala. José e Anabela estão fixos nele: a vida, por vezes, arrasta um peso tão grande… aquele homem, aquele homem de sorriso largo e coração aberto, carregava o peso imenso da culpa, a força esmagadora da perda. Anabela e José não ousavam quebrar o silêncio, estavam os três suspensos num daqueles raros momentos em que se dialoga por dentro e se escuta aquela voz, filha do silêncio, que diz: “Tu também erraste!” A tal história que todos queriam que fosse relatada não surgiu. Não apareceu nenhum rio atravessado a vau, nenhuma fogueira acesa no meio do nenhures para aquecer uma lata de feijão. Muito menos uma palavra saiu daquela passagem pela aldeia em que vagueava um fantasma vestido de criança. Não, nada disso fora contado, apenas a dor, a tristeza de um homem que se fez à estrada.
Todavia, Anabela era mulher, estava habituada a sofrer, guardava em si a dor pulsante da vida. Ela sabia que da dor nasce o prazer, por isso compôs um sorriso, com um travo a tristeza. Era preciso desanuviar aquele clima pesado – uma mulher tem sempre a sensibilidade necessária para puxar uma conversa para o rumo certo. Uma vez mais, o jazz que toca soa à primeira faixa do CD. Desta vez levanta-se Anabela. Chega de jazz, já estou saturada! Por isso, dirigindo-se para o aparelho de alta-fidelidade pergunta ao Viagente que tipo de música aprecia. Gosto bastante de música tradicional. Ela sorri, agora sem o sabor da tristeza, porque há momentos em que a felicidade é tão grande que esquecemos as restantes dores que sentimos. Simplesmente, porque sinto naqueles instrumentos uma singeleza original, uma pureza dos ancestrais. Nisto, intervém José: Era só o que mais faltava, essa agora… Com que então vais-me dizer que um so-li-dó trauteado num cavaquinho está carregado dessa abrangência intelectual toda?! Só mesmo tu, olha… Ó José, lá estás tu outra vez. Essa insensibilidade egoísta, não por comentares a música, mas por escarneceres das palavras do teu amigo, empurra-te para fora de qualquer esfera que uma conversa cria. Excluis-te, porque pisas o espaço do outro, esmagas unicamente para que a tua posição sobressaia.
O Viagente, recomposto da viagem que tinha contado e revivido, aconchega os pés num tapete macio que o acarinhava, acrescenta: Mas dentro da música tradicional, o que mais me preenche é, sobretudo, a música celta. É nestes momentos que apetece soltar uma gargalhada, porém Anabela conteve-se, embora o rubor na sua face a denunciasse. Curioso! Também gosto desse tipo de música! Também sinto isso que dizes, tem graça. Aprecio uma boa sinfonia, ou um jazz cheio de swing, mas continuo a ver na nossa música tradicional a voz de um ontem que se mantém aqui. Engraçado! Não era costume Anabela falar assim deste jeito, por metáforas, mas o Viagente tinha-a contaminado pelo seu modo de falar. Na vida, por vezes acontece encontrar alguém que entende as palavras que dizemos, é nesses dias, em que descobrimos que não estamos sós, que nos apetece sorrir, dançar, falar e no fim, ou talvez no princípio, amar.
Vou colocar um CD que comprei há pouco tempo. O tal silêncio retira-se como a sombra ao chegar a noite; não há lugar para as sombras na luz que a música celta faz, por isso José também participa, sorrindo: Lá estás tu com os teus gostos despropositados! É um grupo de inspiração celta, diz Anabela, Muito interessante! De facto, interessante é como as pessoas tocam na vida uma das outras sem o saberem, sem adivinharem que uma simples palavra avulsa e inocente poderá suscitar emoções tão simples como a cheiro a flores ou tão forte como a brusquidão de um vendaval. Anabela não sabia que aquele homem que ali estava diante si era um tocador. Sentia a música para não estar sozinho, assim, simplesmente. Não trovava às damas medievais, nem cantava feitos de heróis míticos. Apenas soprava. Soprava para aquela gaita-de-foles, que agora estava partida. O CD começa a tocar e a sala preenche-se com os sons dos antigos tão sabiamente de hoje. Anabela, dançando sem ousadia, mas sensualmente descomplexada, regressa à mesa.
Se o José não menosprezava verdadeiramente esta música, pelo menos não a considerava tanto como a verdadeira música, a mais intelectual, a mais erudita. Por isso, aqueles sons nada lhe diziam. Gostas?! perguntou Anabela. O Viagente responde-lhe com um brilho nos olhos e um sorriso nos lábios. Vai haver um festival de música tradicional este fim-de-semana cá na cidade – vinha mesmo a calhar para ele, podia encontrar alguém que soubesse arranjar a sua gaita-de-foles. Uma óptima ideia seria irem vocês os dois, atalhou José, temendo que Anabela o arrastasse para meio daquele folclore que não apreciava. No calor do entusiasmo que aquela música oferecia, Anabela dispara: Vamos lá amanhã! José sorri para a ideia como um adulto para o disparate de uma criança. O marido mostrava-se insensível, e por isso quis despachar o frete para o amigo. O Viagente reparando no quadro, percebeu que o melhor seria aceitar: Combinado! Amanhã estamos lá os três.