Diluências na aguarela de um encontro
A avenida terminava numa grande praça que principiava, monumental, com uma fonte que prendia água no céu limpo e seco de Junho. O céu era imenso como a praça. Estava quente o dia e os recém-companheiros de jornada aproximavam-se vagarosamente do centro da cidade. O Viagente tinha sede, mas não ousou dizer. A água da fonte caía desprendida do céu. Agora, o sol do meio-dia desmaiava o movimento das gentes que se enumeravam pelo infinito da distância. Estava calor. O estio era ainda mais quente ali na praça, onde os prédios se afastavam para o sol cozer as lajes.
Por entre os escombros da memória, o Viagente encontrou uma outra fonte, aquela dos tempos idos da sua infância com o José. Era uma fonte de onde se podia beber. Ele tinha sede… As pedras quentes, cortadas em azulejos rectangulares, formavam naquela praça um mar tépido de um granito não muito polido. Era o chão: nele estava criado um atrito calculado que facilitava uma locomoção apressada, e que permitia uma estadia passageira a pé àquele que se quisesse demorar, preso, a este ou àquele pormenor mais despercebido. Cesário dizia: Pássaros nas lajes, saltitantes, fogem da fonte amedrontados. Ali, uma andorinha limpa as asas não com a água, que suja, mas com o bico, que confia. Uma pomba, doente e frágil, de ter bebido arrependida, cai no chão quente sem cuidado. Pois é, Cesário, é uma fonte sem nascente; água sem vida. Ainda me lembro quando aqui estava aquela simples bica de onde nós bebíamos alegremente depois de nos estafarmos a jogar à bola… Mas agora não, estou estafado ainda, mas repuxos mais altos que os prédios emergem do chão gradeado numa escultura informe.
O perímetro da praça delimitava-se por pilastras que, em sentido, construíam colunatas. Em cima delas, os edifícios antigos, mas modernamente remodelados, mantinham a sua vénia para o centro daquela ágora. Num dos prédios, no ponto-metade daquele terreiro estava um relógio amarelo que, por graça, era ainda de ponteiros. Mantinha-se assim por fora, para mascarar o processo digital que os tempos modernos trouxeram. Já não havia o pêndulo, nem a corda alimentava o processo mecânico. Cesário contava: Subitamente, vejo nas águas formas novas de uma vida que nasce. No topo do repuxo, uma cabeça que ajeita um longo cabelo ondulado; no fluxo que a eleva, um belo corpo de uma mulher. Não é verdade, Cesário, não nasce vida alguma desta fonte. A cidade preferiu que ela fosse um espectáculo que se contemple e não uma arte que nos alimente. O chão daquele fórum era quente e não esquálido. Estava limpo; um batalhão de aspiradores eléctricos sorvia todos os detritos, mantendo tudo em perfeita regularidade. Porém, o Viagente não podia esquecer aquela vénia das construções à dama que ali se exibia. Era a fonte. Tinha sede ainda… Rodeando a praça, enfileiravam-se cafés. Ele não tinha dinheiro e tão-pouco iria pedir ao seu novo amigo.
Cesário divertido e triste surpreendia um novo instantâneo: Por baixo das arcadas, ao canto, o café high-life da cidade. Um homem que veste para a moda, fuma, na esplanada, um charuto esplêndido e rico. As gargalhadas, solenes e distintas, ouvem-se refinadas. A elegância dos perfumes mistura-se com o suor dos que passam para ver as estátuas que, sentadas, conversam devagar. Pessoas tão longe ali ao lado no café, Cesário… Que língua falarão? Será que entenderão as minhas palavras? Não. Elas estão guardadas num círculo que as circunscreve na praça quadrangular. As gargalhadas… ouves? São melódicas como uma música barroca. Quando rio, rio alto, rio sem música, desarticulado na felicidade de ser. Estavam cheios os cafés, homens e mulheres passeavam pela praça cumprimentando-se, por vezes, com acenos breves de quem diz, num só momento, um olá e um adeus. Tudo era estranho. O Viagente pensava: Já era assim quando cá estive?!
Porém, no outro ângulo das colunatas, que rasavam as memórias da minha juventude, estava um café que dos outros se destacava metaforicamente. Arrumado em geometria ao canto, o café vivia há muito tempo em obstinada contrariedade com as mudanças estéticas que o espaço envolvente sofria. O único que teimava em se manter rústico, o mesmo que não queria modernizar a sua imagem, o Café da Arcada era o refúgio para muitos daqueles que queriam conversar. As pedras de dominó e as cartas da sueca eram muitas vezes substituídas por letras e palavras, que se trocavam entre os clientes através do papel já usado das toalhas de mesa. Comiam-se petiscos, cheirava a petinguinhas fritas e a ovos acabados de cozer. Entraram. Era ali que amiúde o Cesário ia tomar religiosamente a sua bica: encontrava-se com outras pessoas, trocava palavras por metáforas, desabafos de sentimentos, e olhares de reflexão. Sentiam-se ali bem, os que frequentavam aquele café. Havia mesmo quem ali tivesse uma mesa reservada, unicamente para estar aí, consigo mesmo, esperando que o seu outro chegasse para mostrar o que ontem tinha visto.
O Viagente e o Cesário sentaram-se a uma mesa, não no canto, de frente para a porta. Saiu um café fumegante, veio uma água mineral fresca. Como era estranho estar ali, naquele café, sentado, com aquele Cesário, homem que desconhecia mas que se afigurava presente todas as vezes que rabiscava no seu diário. Nada disseram, de nada falaram; apenas olhar lá para fora, enquanto pessoas entravam, procurando um pouco da verdade calma na aparência indiferente da cidade. A despesa ficou na conta. Parece que Cesário era um cliente habitual. Teve a gentileza de me curar a sede que tinha, que tantas vezes tinha, de entender o que via na cidade. A fonte, novamente.
...com os seus repuxos intermináveis que ousavam beijar o céu como uma perfeição inalcançável. Jactos de água lançados ao firmamento pelo Homem que se pretende ser o que não pode. Ainda assim, as águas em frenesi cinético mantêm sempre a translucidez de mostrar a vida. Na pulverização controlada, magicando-se uma neblina mecânica, a água continuava a deixar-se fecundar pelos raios de sol que a trespassavam em arco-íris de prazer. O sol está forte naquela já tarde de Verão. De dentro do café, os amigos olhavam. Eis a fonte inesgotável da habilidade do Homem que fazia a água jorrar ciclicamente, como se a urbanização nunca tivesse um fim. A fonte sempre. Sempre a água que se domina naquela aparência de cinema com que o Homem tanto gosta de presentear o homem. Para dentro do café entra uma lufada de ar seco e asfixiante. Os dois homens daquela mesa improvável levantam-se: o tempo escorre-se por entre os poros do corpo e há em cada um a ansiedade de absorver cada instante. Saíram, porque havia um alguém à espera, um outro para visitar, um terceiro para viver. Cá fora, os amigos observavam. Daquela praça apenas lhes ficou na roupa o cheiro das vozes das pessoas que passavam.
Na distância, sobre o flanco esquerdo da alameda, a urbanização onde vivia o José, finalmente. Para o Viagente era tempo para admirar uma última fotografia de Cesário. A urbanização começava a ver-se ao longe. Cesário observava, caminhando: Fechada pela sisudez do porteiro, a urbanização surge, bege nos azulejos da fachada. Ferem a vista os metais brilhantes, que brilham mais à intensa luz do sol. Geométricas e lineares, amontoam-se casas novas de arquitectura cuidada, harmoniosas. Esse bege daquelas quadrículas dos azulejos exalta o brilho do inox, perene. Alguns verdes mascaram a beleza urbana e consumista dos metais com a natureza, nos relvados em volta. Escondido, por trás, brincam crianças no parque infantil, como naquela saudosa juventude em que brincávamos no parque, que não era parque mas já era sítio de brincadeira. Ao lado, dois tenistas no court, deviam ser os pais, e um que fotografava não os homens que praticavam desporto, mas a beleza que os homens não têm. É um senhor de estilo aburguesado, de perfil italiano, dedo nipónico… As crianças ao lado, brincando a ser adultos no presente em que são crianças. A urbanização cadenciava casas geminadas de primeiro andar. Em parada, os carros alinhavam-se pelos estacionamentos de cada moradia. Aquelas crianças, poucas, brincam num parque sem areia. Acabrunhados, os baloiços elevam putos que não brincam ao pião. E o tempo segue por entre os poros, trespassando-nos. Das varandas não se vertem sardinheiras; fulge um inoxidável aço em varões contínuos.
E ele fotografava para poder ser uma vez mais criança e poder uma vez mais existir. Existir na fotografia que tirava. Era um velho que se afastava lentamente por entre os beges matizados pelo inox dos metais. Quem seria? Um velho que queria prender o tempo em fotografias, mais um louco que viajava pela cidade. Um velho que se afastava para lá dos muros desta urbanização fechada. Como se chamava? Foi embora, sem saber sequer o nome do Viagente, não perguntou quem eu sou, ou quem tinha sido. Não disse adeus. Sugou-se na sua simplicidade contornada de sentimentos-vividos. Esteve, ali, apenas com ele. Cá cheguei, finalmente! Aqui estou amigo! José, há tanto que não te via!
André Matias
Ricardo Oliveira