quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A imperfeição sem-ti(r)

Reflexões num instante citadino

No autocarro com destino à cidade de José, o Viagente aproveita para descansar. Descansa de todas as dores. Descansa sobre a esperança. Sobre a esperança de homens sem medo de enfrentar a sua própria humanidade na relação com os outros. Homens sem medo de amar o outro. E dorme. Sonha… Sonha com uma Cândida verdadeira, como todas as crianças devem ser. Ela aproximando-se dele ali deitado, sofrendo, para lhe dar a mão; para juntar os pedaços da gaita-de-foles e arranjá-la, como se fosse uma ilusionista que usasse o poder da pureza infantil. A gaita-de-foles a tocar sozinha no aconchego do regaço na menina. E um som primaveril de início de vida, simples e puro como têm de ser todas as crianças… Cândida sorri e canta. O som da gaita-de-foles é completado por uma percussão que vem de outro sítio qualquer. Há algo que não bate certo, a percussão bate fora do tempo e o Viagente abre os olhos para ver melhor a música.
O autocarro passava pela zona industrial, devia estar quase a chegar à cidade. O ruído das empresas criava uma atmosfera pesada, como o ferro oxidado que se amontoava no final de estradas rectas. Estradas sem saída. Lixo sem princípio. Cruzes em forma de avenidas, como uma marca de um padecimento que todos haviam de passar. Camiões atulhados de importações e exportações sem saber onde descarregar o material. Marginalmente às estradas, as empresas laboravam. Fumo. Ruído. E alguns homens, talvez camionistas, à procura de perceber qual seria o seu destino. Ruído e fumo na cabeça atordoada do Viagente. Todas as indústrias eram como caixotes que acondicionavam homens a baixo preço e prontos a servir.
Pela janela, invade um cenário humano, demasiadamente humano, despido de natureza. Há muito que a estrada abandonara a floresta da paragem em que o Viagente se sentara. O campo deu lugar à zona industrial, as árvores às chaminés, os animais aos trabalhadores por turnos, o som da fonte ao contínuo bater das máquinas. Apenas se mantinha um ar húmido, agora matizado por um aroma desconfortável. Era a zona industrial da cidade. Nela fervilha movimento, carros, mercadorias, homens, dinheiro. Mesmo ao lado de uma grande fábrica de pavimentos e azulejos, ergue-se sorumbaticamente um bairro de lata não muito grande. Com chapas e telhas zincadas, torpes e amolgadas fizeram-se paredes, uma sala com cozinha e quarto comuns. Em cada barraca vivem três gerações com garrafas de vinho tinto, acompanhadas por uma pitada de chuto de cavalo. Vivem ali, a par da grande fábrica de pavimentos.
Na zona industrial, as ruas que atravessam foram todas desenhadas por uma régua e esquadro rectificadores. Tudo foi pensado de acordo com a capacidade logística que um espaço com estas propriedades deve ter. A geometria é uma ciência complexa. E os arquitectos que desenharam esta zona industrial esqueceram-se que os homens também são linhas deste espaço; também são uma espécie de geometria. Uma geometria imprecisa, quente, desarmónica… uma geometria demasiado imperfeita para poder viver em desenhos tão óptimos. Tudo está optimamente desumano por contradição.
O ar estava quente, abafado, dentro da camioneta. Amontoavam-se pessoas pelos corredores, suspensas pelos varões polidos do suor que dia-após-dia, rotineiramente, se empurrava. Era de manhã. O Viagente tinha acordado com um torcicolo, devido à trepidação da camioneta, que lhe inculcava dores desconfortáveis. Com um safanão brusco, o veículo pára: é mais uma paragem em que pessoas se enfileiram para entrar na cidade.
Há um silêncio claustrofobicamente irritante a passear pelo corredor. Impera a solidão. Ninguém fala para ninguém, embora todas as caras sejam conhecidas, e os comportamentos sejam descortinados pelo amontoar do hábito. São pessoas de classe média, média-baixa que ali estão. Muitas delas não têm dinheiro para comprar um segundo carro; e por isso obrigam-se a ir para o trabalho de transporte público. Perfumes misturam-se no ar, numa dança de sabores. Vestidos a rigor para lugares de atendimento ao público, plasticamente mascarados com uma indumentária descaracterizante, muitos são os olhos que lançam desconfiança no Viagente. O seu aspecto transpira os sentimentos e acções de que foi alvo. Por isso, as pessoas preferiram não se sentar no lugar que vagara ao seu lado. Há um silêncio que se passeia no corredor. É o silêncio da multidão que habita nas cidades.
As paisagens iam passando e tornando-se mais nítidas conforme a neblina da manhã se levantava. Ao longe, a cidade ganhava contornos de realidade; o maciço citadino começara agora a desenhar-se à sua frente pelo vidro do autocarro. À medida que iam entrando no coração urbano, adensava-se um cheiro, ainda que artificial, tinha a doçura de flores eternamente primaveris, permitindo uma juventude intocável. As ruas estavam em quadrícula ortogonal, gizadas pelas mãos de um urbanista que pensara sobre a mobilidade do automóvel, para satisfação das necessidades individuais. As árvores estavam dispostas milimetricamente, não descurando as sombras que a certas horas do dia estavam direccionadas para bancos de jardim de estética moderna. Não havia relva nas praças. Apenas lajedos graníticos que contribuíam para a optimização do espaço, quer em funcionalidade, quer em higiene. Todas as praças estavam rentabilizadas por estacionamentos subterrâneos, que possibilitavam a manutenção efectiva do espaço público.
Finalmente chegaram à central de camionagem e, ainda antes do autocarro parar, já estão todos preparados para sair, acotovelando-se como se fossem apanhar um novo transporte. O Viagente permanece sentado à espera que o alvoroço da chegada se desvaneça. Entretanto, vai olhando pelas janelas para ver tanta gente com tantas direcções diferentes e sempre tão iguais. Tanta gente que chega e vai a pensar que pode fazer tanta coisa… para o mundo ser sempre o mesmo. Saiu do autocarro. Àquela hora da manhã, quase meio-dia, a central de camionagem pululava de actividade. Era gente a andar para a frente e para trás, numa azáfama típica de cidade a que o Viagente já não estava habituado. A fome oprimia-lhe o estômago. Não tinha dinheiro. Se ainda tivesse a sua gaita-de-foles capaz, era ali mesmo que tocaria. Decerto que alguém perderia breves segundos da sua vida para mandar com desprezo um ou dois trocos. Mas não valia a pena pensar nisso agora; a fome demandava a decisão mais célere. Não se atemorizou; com facilidade encontraria o caminho certo a seguir. Tinha de chegar o mais rápido possível a casa do José. Deixou para trás os cheiros de comida, que vinham das pequenas lojas de fast-food da central. Não comeria até chegar à casa do seu amigo. Tinha de o abraçar fortemente para que a amizade pudesse ainda ser mais forte. Mas onde é que ele morava? Há tanto tempo que o não o visitava… e a cidade era tão grande… Saiu da central de camionagem empurrado por uma luz filtrante que resplandecia no alcatrão de uma alameda.
Fora da central, estendia-se a alameda até ao coração da cidade. Aí as pessoas pendulavam-se ao ritmo metronímico do semáforo. O espaço era não muito grande, ladeado por prédios de meia-idade, cosmeticamente trabalhados para receber as mais recentes casas de moda. Desorientado, urgia acercar-se de alguém que lhe fornecesse duas ou três indicações. Tinha a morada do amigo escrita na contra-capa do diário, para nunca a perder. Sentia no olhar apressado das pessoas um desdém altivo, aquele com que se esbofeteia os sem-abrigo que fazem já parte da paisagem. Não duvidava que a sua figura inviabilizava a comunicação.
A um canto dessa alameda, buscando a melhor perspectiva, estava um homem que fotografava. Pela lente da sua máquina, captava a realidade numa outra, que só o olhar de um artista pode sentir. De estilo subtilmente aburguesado, trajando com asseio à inglesa, rosto de traço levemente italiano, o velho mirava as sensações que o circundavam em movimento. Não fotografava os edifícios; somente retratava os transeuntes para conseguir uma descrição humana da cidade. Era isso que lhe dava prazer e sorria. Sorria, porque a beleza de uma cidade está em todas as pessoas que a compõem.
O Viagente sentia em si aquela aflição tão própria daquele que chega a um sítio novo. Não sabia como ir, travava-se-lhe o andar face ao desconhecido das ruas. Os outros corriam em demasia, para que se pudessem deter perante um homem que está perdido. Naquela altura, o Viagente não queria ser apedrejado com um agora não tenho tempo, ou mesmo com um indiferente não sou de cá. Por isso, acercou-se daquele velho, que, por um instante, tinha estancado os ponteiros da sua vida, para retratar o que o envolvia. Aproxima-se do homem e pergunta: O senhor, porventura, sabe dizer-me onde é esta rua? (Apontando com o dedo para a contra-capa do diário.) Ele diz-lhe que conhece muito bem a rua e que até o acompanhava. O Viagente aceita a proposta, confiante na bondade humana; devia ser da proximidade do reencontro com o José, estava reanimado novamente e disposto a falar. A falar e a ouvir que é aquilo que tão bem o ser humano sabe fazer. Curioso, até me fica em caminho no passeio que estou a fazer. É a primeira vez que vem à nossa cidade? É, de facto respondi eu, um pouco embaraçado. É uma cidade tranquila, sossegada, e ainda pacatamente segura. E com a curiosidade de quem pinta mandou-me um Então nada conhece daqui, pois não? Larguei um, Apenas um amigo que pretendo visitar, quase monossilábico. Tem graça como as cidades ainda são elementos de união entre as pessoas… Mas venha comigo! que estou aqui entretido a fotografar o que passa. Pergunta-lhe o Viagente: Como se chama? Soltou-se um Cesário. Nome invulgar numa invulgar pessoa. Caminhavam, e Cesário, que conduzia os passos, comandou também o diálogo.
Entretanto, a alameda desembocava numa avenida interminável, com duas faixas de rodagem em cada via e carros. Imensos carros, num atropelamento maldito de sons de motores, e de impropérios lançados pelas janelas dos condutores. Ao centro, havia um separador semeado com alguns bancos, de toque modernista, para ninguém contemplar as vistas largas, pelo menos em altura, dos prédios, de um lado, e dos prédios, do outro lado. Parquímetros tinham substituído os canteiros de hortenses; prédios altos de espelho-escuro ostentavam um metropolitanismo constante. Assobiavam escapes melodicamente, como o chilrear de pássaros idos. Felizmente, nos passeios havia muita gente, correndo para cima e para baixo, que só parava na retina fotográfica do meu amigo Cesário, que em habilidade nipónica fotografava, com palavras, uma loja de roupa que surgia.
Passávamos, falávamos, e ele fotografava: na montra vítrea, dois manequins à luz forte dos holofotes que ofusca, no irreverente verde florescente e no fuschia, os olhos. Num estrado branco, de madeira pintado, dois manequins empoleiram-se. Estas são as cores deste Verão, amigo, são as imposições da moda! Um, recostado, salienta os seios que nunca amamentarão. Os colarinhos, vitorianos, luzem de verde o pescoço espevitado em postura british. Preto, um bolero sobressai honesto sobre os ombros. Uma saia antracite antevê olhares suspeitos, quando andar. O outro, em pé, sem cabeça, veste uma camisa fina de algodão, fuschia; condiz com a antracite-sarja das calças. E nesses manequins estavam todas as pessoas, porque podiam estar, assim como não estava ninguém – esta é a verdade.
Deram mais um passo e um novo clique: a máquina dispara. Lá dentro, por detrás de um balcão de estética moderna, uma rapariga arfa. Para cá e para lá, rodopia em torno de uma máquina registadora, fiscalizante. Dos olhos, o brilho das sombras, a tensão do rímel. Da face, a alvura da base, a fulgência do gloss imposto. As mãos pianam pelas teclas, em capitalistas cálculos de esbanjar. Uma sophisticated girl passa, tchoc, tchoc, tchoc, altiva, segurando numa mão o telemóvel da moda e na outra roupa que pegava e largava. Uma colaboradora olha, séria e muda, a cliente que passava de carteira alçada no braço erguido. Perfumada, elegantíssima e plástica, largava e pegava as roupas com desdém. Via os modelos, os tamanhos; procurava os melhores preços, frenética. E uma repulsa que senti… Ela que apanhasse, se quisesse… Ainda pensei em entrar, mas não havia nada a fazer naquela loja. A moça olha, de baixo, para o espectáculo. Dentro da sua farda de loja da moda, a rapariga curva-se. Simples, mas bela, repetia os gestos maquinalmente. Dobrava roupa, roupa dos que queriam ver, dos queriam passear, dos que queriam rebaixar. Esplêndida, a cliente passa como um adorno que se enfeita. No escuro, a beleza muda da colaboradora sobressaía como um pedaço de franqueza entre o ramalhete de papoulas postiças. O interior da loja sabia a um aroma de ar-condicionado mascarado. O martelado apressado das pop-musics marcavam um ritmo desconcertante. Tudo era artificialmente coberto por uma maquilhagem sazonal de pressa, atrevida. Nada havia ali para ver. Mais um passo e um novo frame captado de intensidade sensorial pelo dedo hábil de Cesário.
Depois daquela porta, apenas uma última montra. E o flash, intenso, rápido, fez-nos reflectir naquele vidro, momentaneamente opaco. Eis que na reflexão vítrea da montra seguinte se vêem os trajes não sofisticados de dois homens que caminham. O cajado a segurar um, que não podia; a máquina fotográfica na mão nervosa do outro, que falava. Passaram rápido, efémeras miragens na loja de roupa em que nunca entraram. As imagens ficaram eternamente retratadas no fundo do vidro daquela montra, como uma pintura deles da nossa presença no mundo.
André Matias
Ricardo Oliveira