quarta-feira, 4 de julho de 2007

A granítica aldeia de Cândida

Na estrada, o Viagente prossegue a sua caminhada. Acompanhavam-no fantasmas de uma conversa que tivera com um companheiro. Adensavam-se nas frases do seu pensamento. O que se passaria com o José? Soubera que o seu amigo de infância entristecia no amor com quem partilhava a vida. Momentos tão bonitos viveram: loucuras de juventude… pedalar até à exaustão, deixar a cidade claustrofóbica e explorar os montes nunca antes vistos por qualquer ser humano… pernoitar, cantando à lua músicas que escreviam no espaço o nome Amizade… Mas o que se passaria com o José? Um amigo tem de aparecer! E o Viagente segue caminho, fortalecido com as suas novas sandálias.

A estrada adensava-se por entre contornos descontínuos de montes que perderam há muito o contacto da enxada. Os terrenos conheciam, agora, o abandono frio das ervas daninhas que já não eram pastos para rezes famintas. Vegetavam ao longe árvores tristes que não frutificavam. O caminho, que se esgueirava por entre socalcos, obrigava-se a apertar. Erguiam-se como uma catedral eucaliptos, que coavam a luz do dia como vitrais, afunilando em ramos de ogiva o caminho, goticamente. A estrada subia, numa tranquilidade aparente, até ao cimo de uma formação granítica de cinzento sujo. Os traços da estrada estavam gastos e esquecidos; as sinalizações, de tinta sumida pelo sol, testemunhavam um desprezo pelo alcatrão andrajoso… Sobe a montanha pelo caminho largo que o eucaliptal lhe oferece. Sobe com facilidade. Ao lado, a terra árida dos eucaliptos esgana-lhe a garganta. Estanca a marcha junto a uma vetusta árvore e bebe um pouco de água, para que a paisagem se torne mais viva. No entanto, a dureza granítica esmaga-lhe a vontade e recomeça a marcha, agora quase correndo. O caminho estreita e um perfume de medo enche o ar. Medo de quê? Estaria doido? Estava só, na floresta, era dia, nada havia a temer! Mas aumenta a passada por entre a ordem mercantilista dos eucaliptos. O caminho é agora um carreiro. Corre para o topo: talvez lá de cima veja as razões para o seu receio.

O Viagente tinha conseguido, enfim, atingir o cume do monte, que não era a ara da natureza salvífica que conhecera em outros contextos. À sua volta, as montanhas desenhavam-se em aridez estranha, esquecida e moribunda. Numa garganta de arestas em granito, a estrada descia para um vale. Com tez de trilho, o caminho vertiginava-se numa inclinação estranha. Ao longe, o monte amortalhava fatalmente a luz do dia que findava.

Esta estrada era a única possibilidade de seguir para cidade… era estranho que não se fizesse uma alternativa, mais ligeira, menos íngreme, mais ténue que agilizasse o tormento das curvas serpenteantes pelas escarpas. O vale era tendencialmente escuro, umbrio, desprezado pelo bafo do sol. As terras estavam gastas pelas lambidelas fustigantes de um vento gélido de Inverno e por tórridas brisas estivais.

Desce.

Junto à berma, uma criança sofria, prostrada exangue na folhagem face à sua impotência de resistir. O Viagente precipita-se; segura-lhe a cabeça. Os olhos estavam fechados e o louro do cabelo confundia-se com a sujidade do solo. O que te aconteceu?! O azul que se abriu dos olhos da menina lembra-lhe o paraíso que nunca encontrara: os olhitos lacrimejavam os gritos mudos da sua dor infantil. Toca-lhe o rosto macio e suaviza uma lágrima com o carinho do seu dedo. Cuidadosamente, coloca a cabeça dela no seu colo e afaga-lhe o cabelo liso e comprido. Limpa o sangue de uma ferida que rasgava a beleza primaveril. Comove-se e revolta-se. Quem teria tido coragem?!... O sangue descia pela face como um pecado pela humanidade. Divinamente linda e marcada eternamente pela atrocidade humana. O sangue descia tão rápido como a cólera subia no Viagente. Rota, desfalecida, ele olhava a menina deitada. O vestidinho azul-bebé, tão grande como a sua infância, conspurcado por manchas escarlates, destapava os joelhos rasgados… O que te fizeram, pequenina? Ela não fala, sucumbida pelo medo e pelo espanto. Abraça-a sofregamente e grita para dentro em desespero lacrimejante: Justiça! Os seus braços e as suas perninhas pareciam ter sido arrancados do seu corpo de menina com uma brusquidão abrupta e selvagem.

É breu. A menina esconde o rosto com as mãos, envergonhada, e ergue-se numa tentativa de fuga superior às suas forças. Ele segura-a, mas ela debate-se até à exaustão. Depois, fecha os olhos e dorme, recostando-se sobre o seu colo como um anjo indefeso. O Viagente deixa escorregar umas gotas de água sobre os seus lábios frágeis. A pouco e pouco, a menina desperta. Pousa um beijo na sua testa, mas ela rejeita-o abruptamente. Tem calma, pequenina…, já passou…, está tudo bem… Como te chamas? Ela olha-o intensamente desde o azul dos seus olhos. Cândida. Pobre menina que foste arremessada do teu pedestal de alvura, como te puderam profanar?!... Ele sorri para a doçura da voz. O que te aconteceu? Os lábios da menina contraem-se nervosos e chora violentamente contra o seu peito. Ele guarda-a junto ao coração, tentando no gesto o conforto que as palavras não sabem. Chora e o Viagente comove-se. Abraça-a para a proteger, ser angelical, de todas as maldades. O que te aconteceu, Cândida? A menina ergue os olhos até encontrar o olhar daquele homem, e soluçante o meu pai, chora, o meu pai…, as palavras ficam-lhe presas à dor. O meu pai…, soluça e chora (as frases lacónicas lancetavam-no), …queria brincar comigo, mas doía…, procura no olhar dele a profundidade do seu ser, …e porque eu não deixava, bateu-me… e bateu, até me aleijar… Chora copiosamente. Seca, desamparada, atirada com desencanto, a frase ecoou no Viagente como se fosse um silvo de comboio agudo e estridente dentro de um túnel sem fim. O pior de todos os cenários acabava de se erguer perante si. A menina, pequeno anjinho destruído, mostrava-lhe num relâmpago como a maldade do homem pode ser tão nitidamente crua, frígida e real.

Ele não podia permanecer imóvel, petrificado perante estas palavras… Tinha de fazer algo, enfrentar esse ser demoníaco, obrigá-lo a pagar pelas consequências indeléveis dos seus actos. Irreflectidamente, num estado de obstinação superior, pega na menina ao colo, e sussurra-lhe: Não tenhas medo! Está tudo bem… Em passos decididos, ardente de justiça, pega nela e segue para a aldeia. E vão… seguem viagem durante a noite, desenhando-se na sombra um quadro dramático de dor: uma criança indefesa, fingindo-se adulta, segurando um anjinho a quem lhe roubaram as asas é apanhado, como um passarinho que caiu do ninho, quando aprende pela primeira vez a voar.

Com Cândida no seu colo, o Viagente tentava que ela se animasse. Cantava uma música que ouvira de sua mãe. Era uma cantiga de embalar. A noite já ia alta, mas Cândida teimava em permanecer acordada. Imprevisivelmente, ela reconheceu a canção e juntou a sua voz à dele. A noite estava escura. Não havia luar. Apenas duas vozes rasgavam o silêncio da mata. A estrada descia. Seguiram caminho por entre os paralelos embebidos em verdete de águas estagnadas. Escorregadio, difícil, esvaído, o caminho levaria este par, de insólito encontro, à aldeia onde vivia Cândida. Até à última gota de sangue, com ela ao colo, as forças percorriam-lhe as veias em ímpetos soluçantes de um quase desespero. Andou alguns quilómetros, carregando um peso que incorporava na inocência, à procura de um sentimento que acreditava existir…

Envolto por um ar abafado do nevoeiro, vê-se do alto em que estavam um aldeamento. É aqui que vives? Mas Cândida já dormia, pura como um anjo. E o Viagente seguiu para o fundo do vale. A noite diluía-se agora em ténues raios de luz, que não tinham a força temerária de trespassar esse manto de humidade. Rodeada por fragas escabrosas, a aldeia escondia-se por entre as paredes asfixiantes de um granito cinzento e sujo, onde as micas não ousavam reflectir a luz do sol. Era um pequeno povoado enclausurado entre duas montanhas, em que o granito das pedras ameaçava esmagá-lo; diante, galgavam algumas terras que talvez tivessem sido cultivadas noutro tempo, mas que estão estéreis. O caminho, único, que atravessava a aldeia até à outra encosta, serpenteava os precipícios das gargantas. As casas, empoleiradas em pedras, não tinham hortas nem galinheiros. Estavam sós, tristes e sem calor, aconchegadas do vento pela encosta que impedia que o sol raiasse. Ao longe, onde ainda estava o Viagente, agora com a menina pela mão, a aldeia parecia camuflada nas pedras, como se estivesse morta. O caminho estreito dirigia-se para o centro. Animados pelo raiar do dia, desceram vertiginosamente em busca de justiça.
André Matias
Ricardo Oliveira